‘Argo’ em cartaz não é coincidência

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Ao olharmos para a atual conjuntura de incertezas, o filme ‘Argo’, de Ben Affleck, torna-se um importante componente na campanha de desinformação sobre as instabilidades no Oriente Médio. Trata-se de uma produção recheada de estereótipos que difamam o Oriente e os orientais (no caso, os iranianos), e reforçam o velho maniqueísmo hollywoodiano, baseado na “luta do bem contra o mal”.             A estréia do longa Argo nas salas de cinema não é por acaso. O filme dirigido pelo ator norte-americano Ben Affleck já pode ser considerado um forte concorrente a muitas premiações no Oscar 2013. Ao atentarmos à atual conjuntura de incertezas e ameaças, ‘Argo’ torna-se um importante componente na campanha de desinformação com relação às instabilidades no Oriente Médio e no mundo. Isso porque a produção, muito elogiada por diversos especialistas, é recheada de estereótipos e clichês tendentes a difamar o Oriente e os orientais (no caso, os iranianos), e a reforçar o velho maniqueísmo hollywoodiano, baseado na “luta do bem contra o mal”.

Muito oportunamente, há poucos dias, antes das eleições israelenses, assistimos a uma campanha movida pelo tema da “segurança” contra o Irã, e, nesse sentido, altamente favorável à expansão dos assentamentos judaicos nos territórios ocupados. Para isso, foi utilizado o seguinte slogan: “Eu não vou tirar uma família judia de seu lar”, então proferido por Naftali Bennet, candidato e idealizador de uma agremiação religiosa e ultranacionalista, o Lar Judaico. O mesmo assunto esteve, da mesma forma, presente em um dos últimos discursos do premier Benjamin Netanyahu, o qual chegou inclusive a comparar a ameaça nuclear do Irã com as atribuições da Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.
O enredo de ‘Argo’ inicia-se no dia 4 de novembro de 1979, data da grande manifestação em frente à embaixada dos Estados Unidos em Teerã, motivada pela exigência do retorno do Xá para que fosse devidamente julgado por seus crimes. Nessa ocasião, muitos manifestantes invadiram a embaixada e sequestraram norte-americanos, que ficaram retidos por 444 dias. Para melhor entendermos os motivos da insurreição, é necessário compreender o contexto histórico sem omissões sobre a conjuntura do filme.
Precisamente entre os anos de 1925 e 1979, as relações entre o Irã e o Ocidente foram marcadas por subordinação, pouca autonomia e muita corrupção. A dinastia Pahlavi havia sido instaurada por intermédio de um golpe militar, liderado pelo general Reza Khan. A partir de então, a dinastia iniciou um processo político caracterizado por uma relação de intensa proximidade com o Ocidente e pela falta de democracia e agenda social, o que acarretou numa série de crises sistêmicas e tensões internas na sociedade iraniana.

O aumento dos conflitos internos desembocou na nomeação de Mohammad Mosadegh para o cargo de primeiro-ministro em 1951. Mosadegh detinha ideias nacionalistas, sobretudo com relação ao controle do petróleo. Por isso, atuou contra a exploração injusta do óleo e promoveu a nacionalização do insumo com a criação da Companhia Nacional Iraniana do Petróleo (NIOC). Atitude que irritou as potências anglo-saxãs, pois não aceitavam perder todos os benefícios anteriores. Para isso, foi instaurado imediatamente um embargo contra o país.

Ainda por temer a ascensão de um governo comunista, principalmente com o advento da guerrilha denominada de Fedayin-e-Khalk (de ideologia marxista e islâmica) em plena Guerra Fria, e a fim de manter o fornecimento contínuo de petróleo, Estados Unidos e Grã Bretanha derrubaram o governo Mossadegh através da operação conhecida como Operação Ajax. Foi por meio dessa operação que possibilitaram a restituição de todo o poder do Xá Mohammad Reza Pahlavi, o que gerou, a parti daí, um regime muito repressivo, simbolizado na conduta da polícia secreta Savak, em 1957. O governo norte-americano tolerava todos os abusos de direitos humanos desde que mantivesse o Irã como aliado regional. Nesse ínterim, as relações políticas e comerciais com as potências ocidentais cresceram. Até mesmo com Israel o governo iraniano se aproximou.

Houve levantes na cidade sagrada de Qom e muitas greves foram violentamente reprimidas, com um saldo de mais de mil mortos na cidade. Na capital Teerã, houve assassinatos em massa, episódio conhecido internacionalmente como a “Sexta-Feira Negra”. Todo o movimento em oposição ao regime havia sido liderado pelo Aiatolá Ruhollah Khomeini, que, em decorrência disso, foi preso e exilado em 1965 no Iraque, e, por um curto período, na França.

O projeto islâmico, por sua vez, era simbolizado pela autonomia política e o nacionalismo a partir da religião. Visava-se, portanto, um Estado que teria por base uma sociedade mais justa e, de acordo com o plano islâmico, o Irã não seria mais explorado externamente. A invasão da embaixada representou, no entanto, o rompimento das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e o Irã, e isso possibilitou que a sociedade iraniana se reorganizasse e eliminasse os vestígios do regime anterior e da ocidentalização do país.

Os Estados Unidos reagiram à revolução em 1979 com a promulgação da Doutrina Carter, medida a qual visava o uso de tropas americana para a garantia do acesso ao petróleo do Golfo Pérsico, além de pressões adicionais, como o ataque de Israel (com o apoio dos Estados Unidos) a um reator nuclear em 1981, e o estímulo de intensos conflitos no Líbano, Síria e na Palestina durante a primeira Intifada em 1987. As ações israelo-americanas contra o Irã chegaram ao ápice na derrubada de um airbus civil iraniano, divulgado nos meios de comunicação como sendo “por engano”.
O atual presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, é apontado pelos americanos como sendo um dos responsáveis pelo episódio do sequestro da embaixada, além de comprovadamente ter participado na linha de frente da revolução em 1979, o que imediatamente torna o filme ‘Argo’ excepcionalmente essencial para os dias de hoje.

De acordo com a obra ‘Orientalismo’, de Edward Said, foi após a guerra árabe-israelense em 1973 que o árabe e o oriental (iraniano) apareceu como algo mais ameaçador. Muitos estereótipos eram utilizados a fim de aterrorizar o mundo ocidental, ou o “mundo civilizado”, como é dito em uma das cenas do filme, e esses povos geralmente apareciam com narizes grandes “e um olhar malévolo sobre o bigode”.
Todos esses estereótipos surgiram em um era de crise, em 1973, portanto não é de modo algum coincidência que esses mesmo modelo continue a permear o imaginário durante a atual crise financeira que assola os Estados Unidos. É interessante manter a região do Oriente Médio, mais precisamente o Irã, sob um sentido desumanizado, o que de certo modo facilita a veiculação dos discursos ameaçadores, podendo chegar até a legitimar futuramente um possível ataque militar. Edward Said, nunca esteve tão atual.

Luciana Garcia de Oliveira – Agência Carta Maior – dia 01/02/2013

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