A Terceira Guerra Mundial está aqui, desenrolando-se de forma assimétrica em campos de batalha militares, financeiros e institucionais, e a luta é existencial. A Hegemonia ocidental, na verdade, está em guerra contra o direito internacional, e só a “ação militar cinética” pode fazê-la subjugar-se.
Pepe Escobar
23 DE FEVEREIRO DE 2024
O Eixo da Assimetria está em pleno andamento. Estes são os atores estatais e não estatais que empregam movimentos assimétricos no tabuleiro de xadrez global para marginalizar a ordem ocidental baseada em regras liderada pelos EUA. E a sua vanguarda é o movimento de resistência iemenita Ansarallah.
Ansarallah é absolutamente implacável. Eles derrubaram um drone MQ-9 Reaper de US$ 30 milhões com apenas um míssil indígena de US$ 10 mil.
Eles são os primeiros no Sul Global a usar mísseis balísticos antinavio contra navios comerciais e da Marinha dos EUA com destino a Israel e/ou que protegem.
Para todos os efeitos práticos, Ansarallah está em guerra com nada menos que a Marinha dos EUA.
Ansarallah capturou um dos ultra-sofisticados veículos subaquáticos autônomos (AUV) da Marinha dos EUA, o Remus 600, de US$ 1,3 milhão, um drone subaquático em forma de torpedo capaz de transportar uma enorme carga útil de sensores.
Próxima parada: engenharia reversa no Irã? O Sul Global aguarda ansiosamente, pronto a pagar em moedas que contornem o dólar americano.
Tudo o que foi dito acima – uma remixagem marítima do século XXI do percurso de Ho Chi Minh durante a Guerra do Vietname – revela que o Hegemon pode nem sequer ser qualificado como um tigre de papel, mas sim como uma sanguessuga de papel.
Lula conta como vê o Sul Global
No panorama geral – ligado ao implacável genocídio perpetrado por Israel em Gaza – surge um verdadeiro líder do Sul Global, o Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva .
Lula falou em nome do Brasil, da América Latina, da África, dos BRICS 10 e da esmagadora maioria do Sul Global quando foi direto ao assunto e definiu a tragédia de Gaza pelo que ela é: um genocídio. Não admira que os tentáculos sionistas em todo o Norte Global – mais os seus vassalos do Sul Global – tenham enlouquecido.
Os genocidas em Tel Aviv declararam Lula como persona non grata em Israel. No entanto, Lula não assassinou mais de 29 mil palestinianos – a esmagadora maioria dos quais eram mulheres e crianças.
A história será implacável: são os genocidas que acabarão por ser julgados como personae non grata para toda a humanidade.
O que Lula disse representou o BRICS 10 em acção: isto foi obviamente esclarecido antes com Moscou, Pequim, Teerã e, claro, com a União Africana. Lula discursou em Adis Abeba e a Etiópia é agora membro do BRICS 10.
O presidente brasileiro foi extremamente inteligente ao programar a sua verificação de factos sobre Gaza para ser colocada na mesa durante a reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros do G20, no Rio. Muito para além dos BRICS 10, o que está a acontecer em Gaza é um consenso entre os parceiros não ocidentais do G20 – que são na verdade uma maioria. Ninguém, porém, deveria esperar qualquer seguimento sério dentro de um G20 dividido. O cerne da questão permanece nos fatos reais.
A luta do Iémen pelo “nosso povo” em Gaza é uma questão de solidariedade humanística, moral e religiosa – estes são princípios fundamentais das potências “civilizacionais” orientais em ascensão, tanto a nível interno como nos assuntos internacionais. Esta convergência de princípios criou agora uma ligação direta – extrapolando para as esferas moral e espiritual – entre o Eixo da Resistência na Ásia Ocidental e o Eixo da Resistência Eslavo no Donbass.
Extrema atenção deve ser dada à escala de tempo. As forças da República Popular de Donetsk (RPD) e a Rússia passaram dois anos de muita luta em Novorossiya apenas para chegar à fase em que se torna claro – com base no campo de batalha e nos factos cumulativos no terreno – que “negociações” significam apenas os termos de A rendição de Kiev.
Em contraste, o trabalho do Eixo da Resistência na Ásia Ocidental nem sequer começou. É justo argumentar que a sua força e o total envolvimento soberano ainda não foram mobilizados (pense no Hezbollah e no Irão).
O secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, com a sua proverbial subtileza, deu a entender que não há, de facto, nada a negociar sobre a Palestina. E se houvesse um regresso a alguma fronteira, estas seriam as fronteiras de 1948. O Eixo da Resistência entende que todo o Projeto Sionista é ilegal e imoral. Mas permanece a questão: como jogá-lo, na prática, na lata de lixo da História?
Os cenários possíveis – declaradamente optimistas – no futuro incluiriam a tomada de posse da Galileia pelo Hezbollah como um passo em direcção à eventual retomada das Colinas de Golã ocupadas por Israel. No entanto, permanece o facto de que mesmo uma Palestina unida não tem capacidade militar para reconquistar terras palestinas roubadas.
Assim, as questões colocadas pela esmagadora maioria do Sul Global que está ao lado de Lula podem ser: Quem mais, além de Ansarallah, Hezbollah, Hashd al-Shaabi, se juntará ao Eixo da Assimetria na luta pela Palestina? Quem estaria disposto a vir para a Terra Santa e morrer? (Afinal, no Donbass, são apenas russos e russófonos que estão morrendo por terras historicamente russas)
E isso leva-nos ao caminho para o fim do jogo: só uma Operação Militar Especial (SMO) da Ásia Ocidental, até ao amargo fim, resolverá a tragédia palestiniana. Uma tradução do que acontece em todo o Eixo de Resistência Eslavo: “Aqueles que se recusam a negociar com Lavrov, negociem com Shoigu”.
O cardápio, a mesa e os convidados
Aquele neoconservador excêntrico e enrustido, o secretário de Estado Tony Blinken, deixou escapar o gato quando na verdade definiu a sua tão querida “ordem internacional baseada em regras”: “Se você não está na mesa, você estão no cardápio.”
Seguindo a sua própria lógica hegemónica, é claro que a Rússia e os EUA/NATO estão na mesa enquanto a Ucrânia está no menu. E o Mar Vermelho? Os Houthis que defendem a Palestina contra os EUA-Reino Unido-Israel estão claramente na mesa, enquanto os vassalos ocidentais que apoiam Israel por via marítima estão claramente no menu.
E esse é o problema: o Hegemon – ou, na terminologia académica chinesa, “os cruzados” – perdeu o poder de colocar os cartões com nomes na mesa. A principal razão para este colapso de autoridade é a realização de reuniões internacionais sérias patrocinadas pela parceria estratégica Rússia-China durante os últimos dois anos desde o início do SMO. É tudo uma questão de planejamento sequencial, com metas de longo prazo claramente delineadas.
Só os Estados civilizacionais podem fazer isso – e não os casinos neoliberais plutocráticos.
Negociar com o Hegemon é impossível porque o próprio Hegemon impede as negociações (ver o bloqueio em série das resoluções de cessar-fogo na ONU). Além disso, o Hegemon destaca-se na instrumentalização das elites dos seus clientes em todo o Sul Global através de ameaças ou kompromat: veja-se a reacção histérica da grande mídia brasileira ao veredicto de Lula sobre Gaza.
O que a Rússia está a mostrar ao Sul Global, dois anos após o início do SMO, é que o único caminho para ensinar uma lição à Hegemonia tem de ser cinético, ou “técnico-militar”.
O problema é que nenhum Estado-nação se compara à superpotência nuclear/hipersónica/militar da Rússia, na qual 7,5% do orçamento do governo é dedicado à produção militar. A Rússia está e permanecerá em pé de guerra permanente até que as elites da Hegemonia recuperem o juízo – e isso pode nunca acontecer.
Entretanto, o Eixo de Resistência da Ásia Ocidental observa e aprende, dia após dia. É sempre crucial ter em mente que, para todos os movimentos de resistência em todo o Sul Global – e isso também inclui, por exemplo, os africanos ocidentais contra o neocolonialismo francês – as divisões geopolíticas não poderiam ser mais acentuadas.
É uma questão do Ocidente coletivo versus o Islão; o Ocidente coletivo versus a Rússia; e mais cedo ou mais tarde, uma parte substancial do Ocidente, mesmo com relutância, contra a China.
O fato é que já estamos imersos numa Guerra Mundial que é ao mesmo tempo existencial e civilizacional. Enquanto nos encontramos numa encruzilhada, há uma bifurcação: ou uma escalada no sentido de uma “ação militar cinética” aberta, ou uma multiplicação de Guerras Híbridas em diversas latitudes.
Portanto, cabe ao Eixo da Assimetria, frio, calmo e controlado, forjar os corredores, passagens e trilhos subterrâneos capazes de minar e subverter a ordem internacional unipolar, baseada em regras, liderada pelos EUA.
As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente as do Oriente Mídia