Pepe Escobar: O Cazaquistão talvez possua o segredo para a Grande Eurásia

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A localização de encruzilhada do Cazaquistão entre a Europa e a Ásia está transformando-o na ‘nova Genebra’ da diplomacia do século XXI’, analisa o jornalista Pepe Escobar

Nur-sultan, ex-Astana, capital do Cazaquistão

Nur-sultan, ex-Astana, capital do Cazaquistão (Foto: REUTERS/Shamil Zhumatov)

Por Pepe Escobar, para o Asia Times

O vale-tudo da competição estratégica entre os Estados Unidos e a China talvez esteja nos levando à total fragmentação do “sistema mundial” dos dias atuais – tal como definido por Wallerstein.

No entanto, se comparada ao Mar do Sul da China, à península coreana, aos Estreitos de Taiwan, à fronteira Índia-China nos Himalaias e a outras latitudes do Grande Oriente Médio, a Ásia Central brilha como uma imagem da estabilidade.

Isso é bem intrigante quando levamos em conta que o tabuleiro revela que os interesses dos grandes atores globais intersectam-se bem no coração da Eurásia.

E isso nos leva a uma pergunta de importância crucial: como o Cazaquistão, o nono maior país do mundo, conseguiu permanecer neutro em meio à incandescente conjuntura geopolítica dos dias de hoje? Quais as características daquilo que poderia ser descrito como o paradoxo cazaque?

Tudo remonta à situação do Cazaquistão na época em que a URSS foi dissolvida, em 1991. Os cazaques herdaram uma estrutura etnodemográfica bastante complexa, com a população de língua russa concentrada no norte, questões territoriais não-resolvidas com a China e a proximidade geográfica com o extremamente instável Afeganistão, que então vivia a trégua, que precedeu à violenta conflagração dos senhores da guerra de inícios da década de 1990, que criou as condições para o surgimento do Talibã.

Para dificultar ainda mais as coisas, o Cazaquistão não tinha acesso ao mar.

Quem tem poder brando viaja

Entra em cena Nazarbayev como um bom estrategista político. Desde o começo, ele viu o Cazaquistão como um ator importante, e não como um peão, no Grande Tabuleiro da Eurásia.

Um bom exemplo foi a criação, em1992, da Conferência sobre Interação e Medidas de Geração de Confiança na Ásia (CICA, em inglês), baseada no princípio da “indivisibilidade da segurança asiática”, mais tarde proposta para toda a Eurásia.

Nazarbayev também tomou a decisão crucial de abandonar o que, à época, era o quarto potencial de mísseis nucleares do planeta – e um importante trunfo nas relações internacionais. Todos os grandes atores no arco que vai do Oriente Médio à Ásia Central sabiam que algumas nações islâmicas estavam extremamente interessadas no arsenal nuclear do Cazaquistão.

Nazarbayev preferiu apostar no poder brando, e não no poder nuclear. Ao contrário da Coreia do Norte, por exemplo, ele privilegiou a integração do Cazaquistão na economia global em termos favoráveis, em vez de tentar garantir a segurança nacional com base em poderio nuclear. Ele, certamente, estava preparando o caminho para o Cazaquistão vir a ser visto como um ator confiável, neutro e pragmático, e como um mediador nas relações internacionais.

A confiança e a boa-vontade em relação ao Cazaquistão é algo que vi com meus próprios olhos em minhas viagens pan-eurasiáticas e em minhas conversas com analistas, da Turquia e Líbano até a Rússia e a Índia.

O melhor exemplo atual é Astana, atualmente chamada de Nur-sultan, ter-se tornado o quartel-general dessa complexa obra em andamento: o processo de paz na Síria, coordenado pelo Irã, pela Turquia e pela Rússia – seguindo-se à importantíssima e bem-sucedida mediação cazaque para solucionar o impasse entre Moscou e Ancara, após a derrubada de um Sukhoi Su-24M nas proximidades da fronteira sírio-turca, em novembro de 2015.

E na importante questão da Ucrânia pós-Maidan, em 2014, o Cazaquistão conseguiu, simultaneamente, manter boas relações com Kiev e o Ocidente, e também sua parceria estratégica com a Rússia.

Como eu já havia relatado no ano passado, Nur-sultan está agora assumindo o papel da nova Genebra: a capital da diplomacia do século XXI.

O segredo desse paradoxo cazaque é a capacidade de criar um equilíbrio delicado em suas relações com os três grandes atores – Rússia, China e Estados Unidos – e ao mesmo tempo assumir a liderança das potências da região. O gabinete de Nazarbayev ousadamente argumenta que Nur-sultan poderia ser vista como o lugar ideal para as negociações Estados Unidos-China: “Estamos firmemente encaixados no triângulo Estados Unidos-China-Rússia, e mantemos relações de confiança com todos eles”.

No coração da Eurásia

E isso nos traz ao porquê de o Cazaquistão – e Nazarbayev, pessoalmente – se envolverem tanto na promoção de seu conceito especial da Grande Eurásia – que se sobrepõe à visão russa, discutida em detalhes exaustivos no Valdai Club.

Nazarbayev conseguiu estabelecer um paradigma segundo o qual nenhum dos principais atores se sentem compelidos a exercer um monopólio sobre as manobras cazaques, o que inevitavelmente levou o Cazaquistão a expandir seu alcance em termos de política externa.

Em termos estratégicos, o Cazaquistão está exatamente no coração geográfico da Eurásia, tendo imensas fronteiras com a Rússia e a China, e também com o Irã no mar Cáspio. Seu território é nada menos que uma ponte estratégica da maior importância, unindo a totalidade da Eurásia.

O enfoque cazaque vai muito além da conectividade (comércio e transporte), dois dos principais suportes da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative – BRI) chinesa, aproximando-se mais da convergência da BRI e da União Econômica da Eurásia, liderada pela Rússia: um espaço eurasiano único e integrado.

Nazarbayev vê a integração dos “istãos” da Ásia Central com a Rússia e com os países de língua túrquica como a base de seu conceito de Grande Eurásia.

O corolário inevitável é que a ordem atlanticista – bem como o predomínio anglo-americano nas relações internacionais – vem declinando e, certamente, não convém à Ásia e à Eurásia. Um consenso vem se formando entre as principais latitudes  quanto a que a força motriz para a reinicialização da economia global após o Covid-19 – e até mesmo um novo paradigma – virá da Ásia.

Paralelamente, o gabinete de Nazarbayev colocou um ponto de importância crucial: “Uma resposta puramente asiática ou oriental tem pouca chance de ser conveniente à coletividade do Ocidente, que também está à procura de modelos ótimos para a estrutura mundial. A Iniciativa Cinturão e Rota chinesa mostrou claramente que os países ocidentais não estão psicologicamente preparados para ver a China como líder”.

Nur-sultan, no entanto, continua convencida de que a única solução possível seria exatamente um novo paradigma para as relações internacionais. Nazarbayev argumenta que as chaves para a solução do atual tumulto não se localizam em Moscou, Pequim ou Washington, mas sim em um nó de trânsito estratégico, como o Cazaquistão, onde se intersectam os interesses de todos os atores globais.

Portanto, o impulso para que o Cazaquistão – uma das principais encruzilhadas entre a Europa e a Ásia, juntamente com a Turquia e o Irã – venha a se tornar o mediador ótimo que permitirá que a Eurásia prospere na prática. Essa é a opção otimista: de outro modo, parecemos condenados a passar por uma nova Guerra Fria.

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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