Brexit morto que caminha :Europa tem uma oportunidade para se reconstruir

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1/7/2016, Pepe Escobar, Sputnik
Traduzido por Vila Vudu

Onde se metem os Monty Pythons, quando se precisa deles?

Todo o inferno político completo está desabando sobre o Reino Unido. O primeiro-ministro já era – versão pós-moderna do Sketch do Papagaio Morto de Monty Python (ing. Dead Parrot Sketch).

Uma batalha suja, de Tories arrogantes, pelo poder, reproduzida numa insurgência do Labour a qual, só ela, já merece sketch novinho, só para ela, dos Pythons. O nível geral do “debate” é medonho. Paralelamente, ícones do establishment britânico querem que o [resultado pró] Brexit seja simplesmente ignorado (“ilegal”, “antilei”) ou remixado, até que as massas mal lavadas (os trabalhadores brancos) sejam obrigadas a votar direito.

Um exército de advogados disseram à Câmara dos Lords que, sim, a Grã-Bretanha tem de mudar de ideia, custe o que custar, mesmo que haja “consequências políticas substanciais”. Como raciocina o establishment britânico, a União Europeia afinal de contas tem, sim, vasta experiência nesse assunto. A Dinamarca votou contra Mastricht em 1992; a Irlanda votou contra os dois tratados, de Nice, em 2001; e de Lisboa, em 2008. A União Europeia levou na conversa os dois países em todos esses casos.

Por seu lado, a União Europeia parece exibir forma até que bem unida. Se vai sair, que saia. De preferência, rapidamente. Bruxelas está praticamente obrigando Londres a mexer-se, para que uma esfacelada União Europeia possa voltar ao, em teoria, trabalho.

Os eurocratas, off the record, insistem que nem “rapidamente” será rapidamente que chegue – porque Londres só fez se automarginalizar durante, já, duas décadas. Ao mesmo tempo, esperam que quanto mais as consequências desastrosas do Brexit se tornem autoevidentes, mais razoáveis serão os britânicos.

A narrativa oficial emana agora da nova troika do poder – chanceler alemã Angela Merkel, presidente francês François Hollande e primeiro-ministro italiano Matteo Renzi. Incontáveis europeus fugiriam de comprar um Fiat usado dessa gente. Mas, que seja, são a nova troika, e a mensagem deles é clara. Invocar imediatamente o artigo 50, nada de negociação sem notificação; discutir a futura relação, ok, mas só depois de você pedir formalmente o divórcio.

Bem-vindos à UE remixed

Nesse ambiente tóxico entra em cena – surpresa! – o secretário de Estado John Kerry. Brexit “pode ser retrocedida”, ideia dele – de um jeito Brexit Morto Que Caminha. Aparentemente, Kerry ficou impressionadíssimo ante o que ouviu de David Cameron na 2ª-feira passada, na Rua Downing, que ele jamais invocaria o artigo 50 e se declarava impotente para “negociar uma coisa na qual não acredito”.

Kerry tem certeza de que há “um monte de jeitos” de esse cenário Brexit Morto Que Caminha dele, funcionar. Naturalmente, não pode admitir publicamente o que aterroriza o governo pato manco de Obama. Nada tem a ver com o Reino Unido “voltar ao fim da fila” – terminologia da Casa Branca – na renegociação de um acordo comercial com os EUA.

O problema é que, com o Brexit, se acaba o Cavalo de Troia norte-americano em Bruxelas. Adeus parceria trans-Atlântico, TTIP. Alemanha e França tomando grandes decisões para a Europa, sem a ‘supervisão’ dos Cinco Olhos. Não surpreende que os chefes de gangue Excepcionalistas tenham começado imediatamente a ‘noticiarque a única solução para esse Brexit é muito mais OTAN. Corolário: mais e mais demonização da Rússia.

Ocultado por trás de todas essas maquinações está o fato claro de que o único propósito da OTAN agora – além de perder guerras na Ásia Central e destruir nações no Norte da África – é perpetuar a ocupação militar da Europa. Para tanto, a OTAN depende muitíssimo da histeria anti-Rússia.

Pelo menos, há movimento em outras frentes. O ministro alemão das Finanças Wolfgang Schäuble já está explorando um modo de saída que renderá a posição de “membro associado” para o Reino Unido. De fato, esse é o real status quo: o Reino Unido não é parte do euro nem parte do [acordo] Schengen. A questão chave, para a Grã-Bretanha, é ter acesso ao mercado único. Mas isso, no que tenha a ver com Bruxelas, nunca será caso de “você pode servir-se do chá com bolinhos e comer tudo”. Sim, mas, só, se aceitar imigrantes da União Europeia.

Tateando em território não mapeado, com perfeito timing, irrompe em cena o mapa vazado do caminho para uma União Europeia remixed, concebida por um duo de ministros de Relações Exteriores, um francês, Jean-Marc Ayrault; e um alemão, Frank-Walter Steinmeier.

A visão franco-alemã, como se poderia prever, privilegia segurança, imigração e o euro, com ênfase no crescimento econômico. Querem até “mais Europa” (com o que os britânicos jamais concordarão); Defesa e Política Exterior intimamente interconectadas; e um exército europeu unificado (imaginem as síncopes e ataques cardíacos no governo dos EUA na Av. Beltway, em Washington).

Querem total coordenação – de inteligência a encarceramento –, para combater o terrorismo, e vigilância integrada nas fronteiras da Fortaleza Europa.

Até se aventuram num projeto para “estabilização, desenvolvimento e reconstrução” da Síria (antes, alguém deve dizer à CIA e ao Pentágono que parem com aquele bate boca sem fim sobre quais “rebeldes moderados” armarem).

No departamento “siga o dinheiro”, o duo franco-germânico quer as mesmas políticas fiscais para todos, “convergência dos orçamentos nacionais” (boa sorte, com essa) e uma Assembleia Europeia para controlar a política monetária. OK, agora tentem vender tudo isso a uma verdadeira “Europa dos povos”.

E sobre a China?

E há também o panda gigante na sala (já colapsante) europeia: a China. Pequim está ainda analisando atentamente o atual circo político em Londres e Bruxelas, antes de ajustar a própria estratégia.

Não há dúvidas de que Londres, até aqui, foi porta privilegiada de entrada dos chineses à UE – além de principal centro offshore de comércio para o yuan. Pequim também contava com Londres para facilitar a obtenção do status de economia de mercado, que imediatamente se traduziria em mais exportações chinesas para a Europa, tudo isso conectado intimamente com as Novas Rotas da Seda. Por fim, mas não menos importante, o Reino Unido – para grande desprazer do “relacionamento especial” – é membro fundador do Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura (BAII) comandado pela China.

Londres, por sua vez, estava satisfeitíssima ante a possibilidade de firmar-se como portal de entrada da China para a Europa, ao mesmo tempo em que garantia torrentes de investimentos – ganha-ganha ao estilo chinês.

Até aqui, contudo, nada muda. Considerem por exemplo a gigante de equipamento para telecomunicações Huawei, que continua a apostar na Grã-Bretanha.

China-Reino Unido foi saudado ano passado como um “relacionamento de ouro”. Mas com bancos e serviços financeiros do Reino Unido considerando a mudança para a UE pós-Brexit (HSBC, por exemplo, já anunciou que está transferindo mil postos de trabalho para Paris), a verdade é que a China pode perfeitamente considerar outros cenários de “ganha-ganha” também com Paris, Frankfurt e Milão. Aquele Brexit morto que caminha sempre será como um backup. E se acontecer de aquele “ilegal”, “antilei” Brexit partir dessa para melhor, tudo voltará a ser “puro ouro” outra vez.

Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como:  Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today e Al-Jazeera.

 

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