Uma matrioshka de operações psicológicas: e porque o General Armagedom fica onde está

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O principal problema enfrentado pela Rússia não é o Hegêmona nem a OTAN, e sim interno

Sergei Surovikin

Sergei Surovikin (Foto: Ministério da Defesa/Rússia)

O segredo de uma operação psicológica perfeita é que ninguém realmente entende o que aconteceu. 

Uma operação psicológica perfeita  cumpre duas tarefas: estontear e confundir o inimigo e, ao mesmo tempo, atingir uma série de objetivos de máxima importância.

Nem é preciso dizer que mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais cedo do que tarde, veremos emergirem os verdadeiros objetivos do jogo estratégico russo a que chamei de O Dia Mais Longo.

O Dia Mais Longo pode ou não ter sido uma operação psicológica exacerbada.

Para dissipar o nevoeiro, comecemos por arrebanhar os “vencedores”, que são os suspeitos de sempre..

O primeiro deles é, sem dúvida, Belarus. Graças à inestimável mediação do Velho Luka,  Minsk agora conta com o exército mais experiente de todo o mundo: os músicos do Wagner, mestres em guerra convencional (Líbia, Ucrânia) e não convencional (Síria e República Centro Africana)

Só isso já basta para infligir o Medo do Inferno na OTAN, que de repente se vê enfrentando, em seu flanco oriental, um super exército profissional, muito bem equipado e de fato incontrolável e, ainda por cima, acolhido por um país agora munido de armas nucleares.

Simultaneamente, a Rússia reforça a dissuasão em seu front ocidental. Tal como um mecanismo de alta precisão que vem levando a OTAN a investir em orçamentos militares cada vez mais inchados (com fundos que ela não possui). Acontece de esse processo ser um ponto crucial da estratégia russa desde pelo menos março de 2018.

E, como bônus extra, a Rússia cria uma ameaça 24/7 a todo o front norte de Kiev.

Nada mal para um “motim”.

A dança dos oligarcas 

Muito mais complexa é a dinâmica interna da Rússia. As difíceis decisões, atuais e subsequentes, que caberão a Putin talvez venham a acarretar perda de popularidade acoplada a perda de estabilidade interna, dependendo da maneira como as vitórias estratégicas definidas pelo Kremlin forem apresentadas à opinião pública.

O que quer que as narrativas da mídia convencional do OTANistão venha a fabricar, a explicação oficial do Kremlin para o 24 de junho se resume a uma exibição de força por parte de Prigozhin: ele estava apenas tentando dar uma sacudida na situação.

É muito mais complicado do que isso. Houve ganhos estratégicos, é claro, e Prigozhin parece ter seguido um roteiro muito arriscado, que acabou favorecendo a Moscou. Mas ainda é cedo demais para saber ao certo.

Um subenredo importante é como a Dança dos Oligarcas irá se desenrolar. A mídia independente russa já vinha esperando que alguns atores traiçoeiros, entre eles certos funcionários do estado, corressem para comprar suas passagens só de ida quando a barra começasse a pesar (ou a dizer que estavam “doentes”, recusando-se a atender telefonemas importantes). A Duma – alimentada pelo FSB de Bortnikov – já vem trabalhando em uma lista de nomes de peso.

O sistema russo – e a sociedade russa também – vê gente como essa como supremamente tóxica: de fato, muito mais perigosa que a demshiza (termo que mistura “democracia” e “esquizofrenia”, aplicado aos globalistas neoliberais).

No front militar, fica ainda mais complicado. Putin encarregou o Ministro da Defesa Shoigu de compilar a lista dos generais a serem promovidos após o Dia Mais Longo. Para usar termos brandos, para um bom número de pessoas, de muitas matizes políticas diferentes, Shoigu tornou-se um elemento tóxico na política russa.

O Wagner – reformulado e sob nova direção – continuará a servir aos interesses da Rússia via Minsk, inclusive na África.

O Velho Luka, astuto como sempre, já afirmou firmemente que o Wagner não será usado para provocar a OTAN. Postos de recrutamento do Wagner não serão abertos em Belarus. Os bielorrussos poderão se juntar a ele diretamente. No momento, a maioria dos combatentes do Wagner ainda está em Lugansk.

Para todos os fins práticos, o governo russo, de agora em diante, não terá nada a ver com o Wagner, nem militar nem financeiramente.

Adicionalmente, não há armas pesadas a serem confiscadas. Já na segunda-feira 26 de junho, o Wagner havia transferido seus armamentos pesados para Belarus. O que restou – e que não havia sido transferido no decorrer do Dia Mais Longo – foi devolvido ao Ministério da Defesa.

A dança dos generais 

Um dos óbvios vencedores, em todo esse processo, foi a opinião pública russa: isso ficou evidente em Rostov. Todos apoiavam Putin, os soldados russos, o Wagner e Prigozhin – ao mesmo tempo. O objetivo maior era aperfeiçoar o exército russo para vencer a guerra. Simples assim.

O expurgo dentro do Ministério da Defesa será duro. Sob o pretexto de repressão  ou “rebelião”, os generais de opereta (termo usado pelo próprio Putin) que não treinaram corretamente seus soldados, não organizaram corretamente a mobilização ou que foram incompetentes em batalha serão decididamente exonerados.

O problema é que todos eles fazem parte do círculo interno de  Gerasimov. Para usar termos diplomáticos, ele terá que responder a muitas e sérias perguntas.

O que nos traz à fake news monstruosa de “o General Armagedom foi preso”, alegremente papagueada  por todo o universo midiático do OTANistão.

O General Surovikin de fato recebeu Prigozhin em Rostov – mas nunca foi cúmplice da “rebelião”. O Vice-Ministro da Defesa Yevkurov também esteve presente no quartel-general em Rostov, e recebeu  Prigozhin ao lado de Surovikin. Yevkurov talvez tenha desempenhado o papel de observador estrategicamente posicionado.

O novelão da revolta de Prigozhin, na verdade, começou ainda em fevereiro – e nada foi feito para interrompê-lo. Independentemente de compartilharmos – ou não – da narrativa oficial.

O que fica implícito é que o estado russo tinha conhecimento do que vinha acontecendo. Será que isso faz do Dia Mais Longo a Mãe de Todas as Maskirovskas?

Repetindo: é complicado. Ao contrário do Coletivo Ocidental, a Rússia não pratica nem impõe a cultura do cancelamento. O Wagner foi protegido pela lei marcial. Qualquer insulto a um “músico” que luta contra o Banderistão neonazista seria punido com até 15 anos de cadeia. Todos os combatentes do Wagner, oficialmente, são Heróis da Rússia  – algo que o próprio Putin sempre ressaltou.

No front da maskirovka, não há a menor dúvida de que as fervilhantes tensões ocorridas nos círculos militares russos antes do Dia Mais Longo foram manipuladas, ao estilo nevoeiro de guerra, para desorientar o inimigo. Funcionou como uma mágica. No fatídico 24 de junho, Surovikin estava comandando uma guerra, e não bebendo conhaque com Prigozhin.

O eixo do OTANistão está realmente se agarrando no vazio. Bastou um boato relacionado a Surovikin para jogá-los em êxtase – provando mais uma vez o quão profundamente eles temem o General Armagedom.

Um vetor da maior importância é a opinião que o público tem de Surovikin, em comparação aos “generais de opereta” sobreviventes.

Ele construiu a agora lendária defesa de três níveis que já vem sepultando a “contraofensiva”. Ele introduziu os loucamente exitosos drones iranianos  Shahed-136 no campo de batalha. E ele organizou a devastação moedor de carne em Bakhmut/Artemyovsk – que já entrou para os anais militares.

Ainda no outono de 2022, foi o General Armagedom que disse a  Putin que as forças russas não estavam prontas para uma ofensiva de larga escala.

O que quer que os 5ª colunistas venham a inventar, o General Armagedom vai ficar onde está – para ganhar a guerra. E a Rússia não está “deixando” a África. Ao contrário: um Grupo Wagner reformulado está na África para ficar, e continua a todo o vapor em diversas latitudes.

A tendência, no curto prazo, parece apontar para uma – complexíssima – drenagem do pântano militar russo. O Dia Mais Longo parece ter galvanizado russos de todos os matizes, fazendo-os identificar o verdadeiro inimigo e como derrotá-lo, custe o que custar.

“Nada acontece por acaso”

O historiador Andrei Fursov, revivendo Roosevelt, observou que, “na política, nada acontece por acaso”. Se aconteceu, pode apostar que foi planejado.

Bem, a maskirovska ataca novamente.

Mas o principal problema enfrentado pela Rússia não é o Hegêmona nem a OTAN, e sim interno.

Com base em conversas com analistas russos sobre suas impressões sobre pessoas muito perspicazes que viveram na Rússia, na Ucrânia e no Ocidente, seria possível identificar basicamente quatro grupos que tentam impor a ideia  que eles fazem da Rússia.

1. A turma do “Back to the USSR”, que inclui, é claro, alguns ex-agentes do KGB.  Ela conta com algum apoio em meio à população. Há, entre eles, muitos especialistas cultos (profissionais de velha escola, a maioria deles em idade de aposentadoria). Esse projeto sugere uma revolução – um 1917 turbinado. Mas onde está o Lenin?

2. A gente da “Volta do Tzar”. Isso implicaria a Rússia como uma “Terceira Roma” e um papel de proeminência para a Igreja Ortodoxa. Muito dinheiro por trás deles. Uma grande interrogação é quanto apoio popular eles realmente teriam, principalmente na “Rússia profunda”. Esse grupo nada tem a ver com o Vaticano – que se vendeu para o Grande Reset.

3. Os Saqueadores – que querem roubar a Rússia até a última gota em favor do Hegêmona. Esse grupo congrega 5ª colunistas e todos os tipos de “neoliberais totalitários” que veneram os “valores” do Coletivo Ocidental. Os que restaram logo terão o FSB batendo à sua porta. Seu dinheiro já foi bloqueado.

4. Os Eurasianistas. Esse é o projeto mais praticável – em estreita colaboração com a China, e visando a um mundo multipolar. Aqui não há lugar para oligarcas russos. O grau de colaboração com a China, entretanto, ainda é muito discutível. A verdadeira pergunta incandescente: como realmente integrar, na prática,  a Iniciativa Cinturão e Rota e a Parceria da Grande Eurásia?

Esse é apenas um esboço – aberto a discussão. Os três primeiros projetos talvez nunca venham a funcionar – por uma série de razões complexas.  E o quarto ainda não reuniu força suficiente na Rússia.

O que é certo é que todos esses quatro grupos lutam entre si. Que a atual drenagem do pântano militar sirva também para clarear os céus da política.

 

Tradução de Patricia Zimbres

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