Turco, árabe ou simplesmente palestino? O exílio e a história dos movimentos de resistência em São Paulo

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Por Luciana Garcia de Oliveira i

  

Saudações …. e um beijo na face

Que mais posso dizer?

Por onde começo? Onde termino?

Implacável esse tempo ….

E o que possuo no exílio?

Uma bolsa, pão seco, paixão

E um caderno que carrega

Uma parte do meu fardo”.

– Folhas de Oliveira, Mahmud Darwich (1964)

Estudar a imigração e os imigrantes árabes no Brasil não é uma tarefa fácil. Isso porque os estudos migratórios existentes nos meios acadêmicos são estritamente centrados nas chamadas “grandes ondas”, ou seja, todo o empenho representativo foram e ainda são dirigidos prioritariamente à imigração italiana, portuguesa, alemã e espanhola, fruto de políticas de incentivo à vinda de imigrantes que necessariamente deveriam adotar o modelo católico europeu e com disposição para trabalhar nas grandes lavouras de café (principal fonte de renda dessa época). Assim, os demais estrangeiros que compõem a sociedade brasileira, por diversas razões, foram considerados como um mero complemento de um projeto de sociedade projetada para ser exibida como triunfante e, acima de tudo, representada sob o viés de um modelo estrangeiro eleito como o responsável direto pela construção do progresso nacional.

Dessa forma e, afim de evitar que a enorme presença árabe no Brasil não seja esquecida, foi necessário a utilização de um novo recurso de estudos, de acordo com as pressões para a renovação dos critérios de produção do saber. O espaço para a “oralidade”, de acordo com o professor José Carlos Bom Meihy, no prefácio da obra Imigração árabe no Brasil – histórias de vida de libaneses muçulmanos e cristãos, de autoria de Samira Adel Osman, “cabiam os testemunhos como expressões de experiências de sujeitos históricos poucos prezados”ii, na história do Brasil.

Essa novidade nos estudos sobre a imigração, passou a ser discutida e tratada com seriedade, após o processo de redemocratização do Brasil e, à medida em que foram constatados incidência de alguns fatos omitidos na história contemporânea brasileira, as violações de direitos humanos, uso de práticas de tortura nos interrogatórios de exceção, censura nos meios de comunicação e nas artes e o exílio de muitas personalidades brasileiras, determinou-se para que o recurso do testemunho, por meio da história oral, fosse considerado um meio que prometia saldar a dívida com aqueles que sofreram inúmeros tipos prejuízos físicos e psicológicos e, no mesmo sentido, permitia reafirmar a existência de importantes grupos nacionais e o processo de interação com a sociedade brasileira.iii

A imigração árabe no Brasil, diferentemente da imigração dos demais grupos nacionais, ocorreu de forma absolutamente espontânea, financiados pelos seus próprios recursos. O que permitiu a adoção de um projeto de vida particular, fora das grandes fazendas de café, a grande maioria dos imigrantes árabes se estabeleceram nos grandes centros brasileiros, como São Paulo e se dedicaram sobretudo ao setor terciário, ao comércio e a prestação de serviços, de uma maneira geral.

Entre os imigrantes árabes, é destacado a presença maciça de sírios e libaneses e, conforme esses agentes desembarcavam no Brasil, houve uma ampla e confusa generalização no registro de entrada desse imigrantes, de modo à desconsiderar a chegada de outros imigrantes árabes, em menor escala, como foi o caso de muitos egípcios, palestinos e iraquianos no Brasil. Tais imprecisões herdadas da confusão no processo imigratório nacionais, resultou em um grande problema nas análises estatísticas acerca da precisão da entrada de estrangeiros no país, sobretudo sobre os detalhes da chegada dos palestinos no Brasil.

Já hospedados no país, pôde ser observado ainda que, os imigrantes árabes recém chegados, de um modo geral, deparavam-se com um novo problema, à medida em que se relacionavam com os nacionais nas grandes cidades, eram lhes atribuídos a denominação de “turcos”. Isso porque, muito embora a procedência desses imigrantes tenha sido bastante variada, durante o período que se iniciou o processo de imigração árabe no Brasil, em fins do século XIX, o Império Turco Otomano ainda dominava a região, por isso era diretamente responsável pela expedição de passaportes aos emigrantes árabes de diversas origens. Nesse sentido e, à medida que se estabeleciam no país, a denominação “turco” tornava-se cada vez mais enraizada, no sentido de humilhar e ofender, uma vez que estavam frequentemente sendo identificados justamente com aqueles que motivaram a saída do país de origem, qual seja, o seu opressor.

Ao adentar, mais especificamente acerca da imigração palestina no Brasil, muito embora tenha tido início antes mesmo da proclamação do Estado de Israel (1948), ocasionada pela fuga de muitos palestinos que se recusavam a se alistarem no exército Otomano, prevaleceu-se a imigração pós-guerra, remetendo a disputa e perda de territórios em função da colonização israelense. Além disso e, de acordo com Denise Fagundes Jardim, “a experiência dos imigrantes palestinos no Brasil revela os nexos com outras guerra, a guerra dos Seis Dias em 1967 e a Intifada em 1987, uma década marcada por guerras civis”iv.

A presença palestina no Brasil pode ser considerada portanto, como uma “imigração recente” e bastante particular. Isso porque o processo de imigração, quantificação e análise da diáspora palestina consiste em um desafio para o pesquisador, além de não ter existido a intermediação de uma política imigratória brasileira, conforme exposto anteriormente, é sempre muito complicado confiar em uma autodenominação e em um identidade reafirmada diante de inúmeros contextos e ciclos de violência na região do Oriente Médio.

Outro fator dificultador refere-se a experiência de diáspora dos palestinos, expressada pela complexidade de seus deslocamentos ao longo da vida. Muitos palestinos que desembarcaram no país, chegaram com o visto da Jordânia e do Líbano, em situação anterior de refugiados e, mesmo já hospedados no Brasil, é bastante comum manterem um movimento constante de deslocamentos em função dos familiares que, por diversas vezes, encontram-se hospedados em outros países e ou mesmo na Palestina, sua Terra Natal.v

Muito além da dificuldade de quantificação, a diáspora palestina, após 1948, deteve a sua humanidade reduzida vertiginosamente, o constante estado de ameaça e supressão, impediu durante muitas décadas a existência de uma autoafirmação palestina completamente unificada. Durante esse período havia algumas mobilizações dispersas por atos de vontade, movidos por um desespero individual. E, até o fim da década de 1960, os palestinos se depararam com um dilema importante, por um lado aspiravam pela necessidade de autodeterminação e, por outro, com a ausência de bases territoriais seguras, que eventualmente poderia permitir o estabelecimento de uma autoridade palestina oficial.

Em certo sentido, a OLP era um grupo nacional – internacional. Logo obteve legitimidade nacional internacional, mesmo que na prática enfrentasse problemas com os governos soberanos. Até hoje, ela não decidiu se é movimento de independência nacional ou de libertação nacional. Mas conseguiu criar serviços sociais bastante avançados para o seu eleitorado, organizou e mobilizou os palestinos exilados com enorme sucesso e, ao longo dos anos, conquistou o comprometimento da maioria absoluta de palestinos exilados, sitiados ou residentes em Israel”vi.

Por outro lado e como consequência das lutas por uma representatividade unificada e segura, desde 1967, houve um embate progressivo entre os palestinos e os outros árabes. O prestígio diplomático da OLP frente às graves demandas palestinas, permitiu um atenuamento do interesse palestino pelo cenário árabe em geral. O que culminou para que, em março de 1968, o movimento palestino adquirisse um novo status, de modo a se afastar politicamente do cenário árabevii.

Nessa mesma ocasião, em 1969, a primeira ministra de Israel, Golda Meir, afirmou publicamente que os palestinos não existiam. A negação frontal da identidade palestina foi decisiva para que a OLP se empenhasse a assumir a responsabilidade por todos os palestinos e, de modo concreto, a OLP pôde utilizar de sua autoridade internacional para interpretar a história e a realidade palestina ocultada por décadas. A OLP tornou possível ser palestino e a sua genialidade, de acordo com Edward Said, “foi transformar o ser politicamente passivo que era o palestino em um ser politicamente participativo”viii.

No Brasil, a OLP instalou a sua sede em 1975, sob a representação de Farid Suwan e, ainda na década de 1970, houve o início de uma intensa programação política – cultural em solidariedade ao povo palestino.

Logo no dia 29 de novembro de 1977, foi instituído pela resolução 32\40 da Organização das Nações Unidas (ONU) o Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino. E, mais tarde no Brasil, a comunidade árabe palestina foi surpreendida com um mais novo ataque aos palestinos, dessa vez, um massacre de grandes proporções havia sido perpetrado contra dois campos de refugiados palestinos no Líbano em 1982. Os massacres de Sabra e Chatila, repercutiram internacionalmente, juntamente com as informações precisas acerca da responsabilidade das autoridades israelense pelo crime, o que motivou a diáspora palestina em São Paulo, mais notadamente os mais jovens da recém fundada Associação Cultural Sanaúdixa organizarem, nesse mesmo ano, uma grande passeata pelas ruas da Avenida Paulista, na capital paulista, com uma estimativa de dez mil pessoas que pediam o fim dos massacres e a instauração de um Estado palestino livre, soberano e democrático. A grande manifestação de rua em São Paulo foi capaz de mobilizar setores bastante reconhecidos da sociedade civil brasileira, como a União Nacional dos Estudantes (UNE), muitos sindicatos e alguns partidos políticos brasileiros que gritavam: “OLP estamos com você!” e “Israel assassino do povo palestino!”x.

No ano seguinte e em meio a atmosfera pela redemocratização do Brasil, no dia 01 de dezembro de 1983, em São Paulo e, por solicitação feita ao presidente da Câmara dos Deputados, pelo então líder do Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara, Aírton Soares, houve uma sessão solene especial pelo Dia Internacional em Solidariedade ao Povo Palestino, com a presença de 30 embaixadas. Ainda, durante o grande movimento pelas Diretas Já! o então presidente nacional do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, junto ao então presidente da UNE, Alcidon de Matos, discursaram publicamente em favor da causa em pleno estádio do Pacaembu. Foi nessa mesma ocasião que os integrantes da juventude Sanaúd permaneceram durante 12 horas entregando panfletos que esclareciam sobre a questão internacional da Palestina em língua portuguesa.

Ainda com atenção aos ciclos de violência na Palestina e em meio à uma atmosfera bastante emocional diante dos massacres em Sabra e Chatila no Líbano e acima de tudo na observância às inúmeras manifestações de solidariedade em São Paulo e em outras cidades brasileiras, Farid Suwan, representante da OLP no Brasil, em um artigo intitulado Aos amigos brasileiros reproduzido pela publicação do Centro Cultural Palestino Brasileiro, reafirmou publicamente:

Golda Meir se notabilizou por uma frase, tão distante da realidade quanto é permissível no limiar da sanidade: “Palestinos? Nunca houve tal coisa”. Declaração ao jornal Sunday Times.

Pois eu digo que sempre existimos, que nunca deixamos de ser palestinos, que desde tempos imemoráveis o meu povo habitou a pacífica e bela Palestina. Seus vales, seus campos, seus templos, seus pomares. Nas costas da Palestina os palestinos se notabilizaram como marinheiros mais notáveis como constam inúmeros relatos mantidos até hoje em Jafa.

(…)

Em meados dos anos 60 foi formada a OLP, a organização que restaurou a identidade nacional palestina que ia sendo impiedosamente massacrada. Hospitais foram construídos nos campos de refugiados, escolas para crianças, maternidades que se especializaram no parto de prematuros, já que suas mães viviam sob bombardeio constantes. Criamos uma infraestrutura industrial e agrícola, cuidamos para que os mutilados os aprendessem mesmos a arte da prótese ortopédica e tantas outras coisas. Criamos o nosso ser política social. Preservamos a milenar arte do nosso povo, arte que vinha sistematicamente e indebitamente apropriada por Israel.

(…)

Nesses dias de luto e tristeza para nós, com nossos mortos insepultados mutilados, quero agradecer a todos os brasileiros pela sua solidariedade que, para nós, foi fundamental. Jamais esqueceremos as manifestações que presenciamos.

Em vista de tudo isso, gostaria de reafirmar os amigos brasileiros que a OLP não morreu. Jamais morrerá. A OLP renasce com a mitologia fênix, só que não das cinzas: renascemos do sangue dos nossos mártires e resistiremos até que a pátria seja libertada”xi.

As agitações concernentes aos inúmeros eventos na Palestina, juntamente ao processo de redemocratização do Brasil durante a década de 1980, concomitantemente possibilitaram o estabelecimento de uma instituição representativa da diáspora palestina, como um todo. A Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL), fundada no dia 09 de novembro de 1980, foi criada a fim de sanar uma profunda crise de unificação e legitimidade palestina no Brasil. E, indubitavelmente, desde o surgimento da Associação Cultural Sanaúd até a fundação da FEPAL, presumia-se como objetivo primordial fazer com que as vozes palestinas fossem ouvidas em um ambiente em que a causa palestina não era muito bem conhecida e, por diversas ocasiões bastante distorcida pelos meios de comunicação ocidental.

Pode ser observado que, é muito comum entre os integrantes da FEPAL, sobretudo entre os que nasceram no Brasil, narrarem sobre determinados acontecimentos na Palestina de modo a se posicionarem como se tivessem participado ou vivenciado de maneira plena alguns fatos considerados marcantes na longa história da ocupação da região. Era observado, por sua vez, que esses militantes de origem palestina, tornaram-se gradativamente palestinos por convicção.

E, muito além da questão da representação da diáspora palestina no Brasil, a criação da FEPAL no Brasil e a existência da Associação Cultural Sanaúd, durante a década de 1980, permitiu que a cidade de São Paulo fosse palco do primeiro Congresso das Entidades palestinas da América do Sul, Central e Caribe, em julho de 1984, evento este que reuniu 300 congressistas, representantes dos cerca de 500 mil palestinos do Continente Latino Americano. Foi nessa oportunidade que algumas personalidades brasileiras se posicionaram publicamente em apoio à causa palestina, entre eles, o mais notável e de maior repercussão foi o posicionamento do então presidente nacional do Partido dos Trabalhadores, Luis Inácio Lula da Silva:

Gostaríamos, nesta noite, de dizer aos senhores congressistas, que o Partido dos Trabalhadores não está apenas solidário com o povo palestino, porque é muito pouco. Na verdade estamos irmanados à luta do povo palestino, liderada pela OLP, porque entendemos que a capacidade de resistência que esse povo tem demonstrado, a capacidade de luta que esse povo tem dado ao mundo inteiro, é a razão maior pela qual qualquer cidadão que ama a liberdade se coloque solidária nessa luta.

Quando assistimos aqui no Brasil, através da televisão, as matanças que os palestinos foram vítimas no Líbano, quando vimos crianças serem metralhadas, sem saber por que, nos lembramos que existe aqui no Brasil, algumas crianças que morrem por falta de um pedaço de pão. Quando lemos alguma coisa sobre o sofrimento e ao mesmo tempo sobre a resistência do povo palestino, ficamos mais convictos, mas esperançosos e começamos a entender porque os soldados de Israel, porque o governo de Israel têm tanto ódio do palestino. Começamos a compreender que existe uma justificativa, que os palestinos não respeitam o direito de Israel”xii.

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Na esteira do primeiro Encontro de entidades palestinas da América do Sul, Central e Caribe, nesse mesmo ano, a cidade paulista de Piracicaba pôde recepcionar outro evento marcante na história da diáspora palestina no Brasil. O Primeiro Encontro da Juventude Árabe Palestina da América Latina e Caribe serviu para reaproximar a juventude palestina com muitos jovens brasileiros, legitimamente representados pela UNE, em apoio à questão internacional da Palestina, sob as diretrizes da OLP e a seu presidente Yasser Arafat, como a único e legítimo representante do povo palestino.

O evento, de dimensão regional, reuniu muitos observadores internacionais e representantes da OLP de muitos países latino-americanos, como México e Nicarágua. Logo durante a solenidade de abertura, no salão nobre da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP, pôde ser destacado o discurso de abertura dos trabalhos, realizados pelo bispo da Arquidiocese de Piracicaba, Dom Eduardo Koiaik, que por ser de origem árabe libanesa, deixou transparecer sua emoção naquele momento, marcado pelas tragédias no Líbano e pelo andamento dos movimentos de abertura política brasileira:

O direito do povo palestino é de voltar a sua terra – esta palavra Sanaúd quer dizer: voltaremos! – quando o povo palestino fala Sanaúd, está dando testemunho de esperança; um povo que apesar de estar oprimido, apesar de estar assim espalhado pelo mundo, é um povo que tem esperança de voltar a sua terra. Por isso empreende a sua luta. Uma luta que merece o apoio, a solidariedade de todos os povos. O povo palestino está fora de sua terra mas não perdeu o direito de sua terra e ele vai lutar para conquistar de novo a sua terra”xiii.

  1. Da narrativa individual à um sentimento coletivo

It was not just that Palestinians fought back; it was that they projected a vision, and in their own lives emboaied a nation in exile rather than a collection of individuals”

After the last sky – Edward Said, 1999.

Com o avanço da ocupação e do confisco de novos territórios na Palestina, consumados com a construção de grandes assentamentos e, mais tarde, pela construção de um enorme muro, em vistas à separar as cidades israelense da Cisjordânia ocupada, fomentaram para que as narrativas individuais passassem a tornar-se narrativas coletivas, de modo à representarem as experiências daqueles pelos quais viviam sob a ocupação e, ou em exílio nas mais diversas regiões, notadamente no países vizinhos ao Estado de Israel. E, de modo semelhante ao realizado no passado, enquanto juventude Sanaúd, o exílio, por diversas vezes foi invocado como cenário que agora os integrantes e simpatizantes da FEPAL se unem e dialogam com outros movimentos políticos e sociais já existentes no Brasil. Era notado uma identificação das reinvindicações desses movimentos políticos com a questão internacional da Palestina, conforme havia sido exposto no discurso do Lula, esse é o caso da interação dos palestinos com o tradicional Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), alguns movimentos feministas brasileiro e o movimento negro.

A crescente insatisfação pelo retrato do árabe na imprensa e no meio acadêmico brasileiro, principalmente o árabe-palestino em estado permanente de ocupação e em conflito com Israel e, a observância de um foco exacerbado pela questão da segurança israelense nos mais variados meios de comunicação, principalmente na televisão, motivaram para que os antigos companheiros e amigos da já extinta juventude Sanaúd, da colônia árabe de São Paulo voltassem a se reunirem a fim de criar um grupo de estudos e debates, de forma a habilita-los à publicarem textos e artigos jornalísticos em resposta ao que consideravam como informações tendenciosas, omissivas e mentirosa nas matérias e nas análises internacionais sobre o Oriente Médio na imprensa brasileira.xiv

No fim do ano de 2008, com a instauração da operação israelense denominada “Chumbo Fundido” (Cast Lead) e o acompanhamento atento das notícias da Faixa de Gaza pelo público árabe brasileiro, foram os fatores determinantes para a fundação do GT Árabe, conforme havia sido intitulado pelos seus percussores, no ano de 2010. Nessa ocasião e, de acordo com os fundadores do GT Árabe, foram durante os massacres de 2008-2009 que a imagem do árabe palestino associada frequentemente ao terrorismo, fundamentalismo e sobretudo, avesso à quaisquer resolução pacífica do conflito, não poderia ser assistida de um modo passivo, sem um contraponto consistente, com argumentos e fontes seguras.

Nesse sentido, o GT Árabe absorveu a causa palestina como a percussora da sua existência, tendo a FEPAL como uma das instituições protagonistas do grupo de estudos, por outra parte e, de modo amplo, pôde, da mesma forma, integrar uma série de representantes de diversas instituições políticas e culturais da comunidade árabe – brasileira de São Paulo. Dessa forma, o GT Árabe, pode ser considerado hoje, um grupo plural, com integrantes de origem sírio, libanesa, palestina e brasileira, com religiões diversas. E, muito embora ainda persista uma atenção especial pela causa palestina, o grupo se prontificou a estudar e à discutir textos sobre a atualidade dos demais países e contextos árabes, como a Síria, Líbano, Egito e Iraque.

Além da inserção ao GT Árabe, outra maneira encontrada entre os integrantes e simpatizantes da FEPAL de se aliarem à um número maior de movimentos políticos e sociais e partidos políticos da esquerda brasileira foi a inauguração de um comitê de solidariedade ao povo palestino, aproveitando o momento político propício para a criação de um organismo sob uma concepção frentista, o comitê batizado “Estado da Palestina Já!”, nasce em 2011, em função do requerimento para o reconhecimento do Estado palestino na Organização das Nações Unidas (ONU). A partir de então, a FEPAL, pôde integrar oficialmente o comitê, juntamente com uma diversidade de instituições, organizações, movimentos sociais e partidos políticos brasileirosxv.

A criação de um comitê brasileiro, em São Paulo, de certo modo, reascendeu a esperança pela possibilidade de um maior diálogo com a sociedade brasileira e assim, pôde almejar um espaço maior nos meios de comunicação. O lançamento público oficial realizado em agosto de 2011 no auditório do Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo contou com a presença de cerca de 150 pessoas e mais 50 entidades nacionais e estaduais. Nessa mesma ocasião, uma coletiva de imprensa foi concedida e as informações sobre a campanha pelo reconhecimento do Estado da Palestina pela ONU havia sido divulgado em centenas de sites alternativos, blogs e em inúmeras notas em jornais e revistas.

Desde então, o comitê “Estado da Palestina Já!”, têm dado orientação em plano nacional para que possam surgir comitês unitários em outros Estados e assim habilitá-los à promoverem uma vasta programação política e cultural, conforme têm sido desempenhado pelo comitê pioneiro de São Paulo. Desde o lançamento público do comitê de São Paulo, em 2011, uma série de eventos políticos e culturais abertos ao público brasileiros vem acontecendo nos mais variados locais da capital paulista. Um desses eventos de sucesso ocorreu no mês de setembro, em 2012, em memória ao inesquecível massacre de Sabra e Chatila, no auditório do clube Homs, na Avenida Paulista, momento pelo qual muitos poetas brasileiros se reuniram para declamar suas próprias criações poéticas em prol da causa Paulista e da memória dos massacres, mais especificamente. Ao mesmo tempo, estava em cartaz uma grande Mostra fotográfica intitulada Palestina – Uma ferida aberta, na Biblioteca Alceu Amoroso Lima, com retratos da Palestina, composto por alguns retratos do movimento de resistência palestino.

Mais tarde, a eleição do Brasil como sede para o que seria o primeiro Fórum Social, inteiramente dedicado à questão internacional da Palestina tendeu a comprovar a importância do Brasil dispensado pelo povo palestino. O Fórum Social Mundial temático, ocorrido entre os dias 28 de novembro até o dia 01 de dezembro de 2012 na cidade de Porto Alegre (RS), revelou através de inúmeras conferências, oficinas e debates a inabalável legitimidade da OLP, representada pela FEPAL, presente nas inscrições e nos discursos das principais mesas do evento internacional. A predominância de um discurso a favor de uma resolução diplomática para o conflito, em oposição à uma revolução armada, revela acima de tudo a mudança progressiva dos anseios da OLP e da FEPAL ao longo do tempo, sobretudo no que cerne a reconstrução da identidade palestina da diáspora no Brasilxvi.

Muito além da readaptação da identidade palestina e da sua legítima representante, a mobilização internacional de antes e durante os trabalhos do Fórum Social Mundial Palestina Livre deixou como legado a dimensão ampla da responsabilidade e do protagonismo do Brasil frente aos avanços e recuos com relação a situação da Palestina, dentro do contexto internacional. E, muito além da mobilização da diáspora palestina no Brasil e nos demais países latino americanos como o Chile e a Argentina, os eventos políticos e culturais citados ao longo do texto ajudaram a sociedade brasileira a compreender um conflito considerado demasiadamente distante no passado e que, gradativamente passou a ser mais assimilado, tornando-se bastante presente na atual conjuntura brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASFORA, João Sales. Compacto Palestina. Olinda: Centro Cultural Palestino Brasileiro, 2010.

JARDIM, Denise Fagundes (org). Cartografias da imigração – Interculturalidade e Políticas Públicas. Porto Alegre: editora UFRS, 2007

MIRHAN, Lejeune. Ali El Khatib, uma vida dedicada aos árabes. Portal Vermelho, disponível em: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna=25&id_coluna_texto=2851

MEIHY, José Carlos Bom. In. OSMAN, Samira Adel. Imigração árabe no Brasil: história de vida de libaneses muçulmanos e cristãos. São Paulo: Xamá, 2011.

SAID, Edward. A Questão da Palestina. São Paulo: editora UNESP, 2012.

I- Luciana Garcia de Oliveira – Pós-graduada em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP), mestranda no Programa de Estudos Árabes e Judaicos do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (DLO-USP), integrante do grupo de pesquisa “Conflitos Armados, Massacres e Genocídios da Era Contemporânea” da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisadora associada da Interdisciplinary Research Network on Latin America and the Arab World (RIMAAL). Email: luciana.garcia83@gmail.com.

II- MEIHY, José Carlos Bom. In. OSMAN, Samira Adel. Imigração árabe no Brasil: história de vida de libaneses muçulmanos e cristãos. São Paulo: Xamá, 2011.

III- Para poder redigir esse artigo, muito além do convívio e diálogo constante com muitos personagens citados ao longo do texto, foi realizada uma minuciosa análise das fotos e de algumas matérias publicadas em jornais e revistas que estavam guardados em acervos particulares nas residências de muitas famílias sírias, libanesas e palestinas de São Paulo.

IV- JARDIM, Denise Fagundes. Estratégias da imigração em tempos de globalização: os palestinos e suas viagens internacionais. In. JARDIM, Denise Fagundes (org). Cartografias da imigração – Interculturalidade e Políticas Públicas. Porto Alegre: editora UFRS, 2007

V- Ainda, de acordo com Denise Fagundes Jardim, no capítulo Estratégias da imigração em tempos de globalização: os palestinos e suas viagens internacionais, extraído do livro Cartografias da imigração – Interculturalidade e políticas públicas, na página 248 é descrito que, “por conta dessas escolhas limitadas é difícil saber quantos são os imigrantes palestinos. Não temos a precisão da burocracia mesmo para os casos de regularização de papéis no Brasil. Para exemplificar, por trás da regularização de papéis de um jordaniano no Brasil pode haver uma história de uma evasão de uma família palestina que seguiu para a Jordânia e depois enviou o seu filho para a América. Mais adiante, através de contatos familiares e por casamentos por procuração, a família pode custear a vinda da esposa desse filho, que por hipótese, pode vir do Kwait. Isso revela a conexidade da carreiras de trabalho no Oriente Médio, e nos aproximam ainda mais da singularidade da experiência recente dos palestinos, referida pelos informantes e por especialistas em imigração palestina, como uma diáspora.

VI- SAID, Edward. A Questão da Palestina. São Paulo: editora UNESP, 2012, p. 154.

VII- Ainda, de acordo com A Questão da Palestina, nas palavras deEdward Said, na página 180: “a sequência narrativa dessa transformação é, creio eu, ilusoriamente simples. O Al Fatah surgiu em 1965 com um pequeno ataque a Israel. Desde então, o número de organizações militares palestinas aumentou, assim como a série de conflitos militares importantes com (e, em) Israel. Até março de 1968, porém, o esforço palestino era encarado, na melhor das hipóteses, como incluso no desenvolvimento árabe em geral (especificamente nasserista ou baathista).

VIII-SAID, Edward. Op.cit, p. 161.

IX- A Associação Cultural Sanaúd foi fundada por um grupo de jovens de origem síria, libanesa e palestina que se reuniam frequentemente para discutir política nacional e internacional na sede da Sociedade Árabe Palestina, localizada na Avenida Senador Queirós, em São Paulo. Sanaúd em árabe significa “Voltaremos!”.

X- MIRHAN, Lejeune. Ali El Khatib, uma vida dedicada aos árabes. Portal Vermelho, disponível em: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna=25&id_coluna_texto=2851. Ainda, em 1982 foi lançada candidatura à Deputado Estadual pela legenda do PT do primeiro presidente da Federação Palestina Souheil Sayegh. Foi nesse momento que todos os integrantes da juventude Sanaúd ajudaram ativamente na campanha daquele que poderia vir a ser o primeiro palestino a ocupar uma vaga na Assembleia Legislativa de São Paulo. De acordo com os ex-integrantes da Sanaúd, a campanha havia sido tão intensa que, ao final, faltaram apenas 800 votos para eleger Souheil.

XI- ASFORA, João Sales. Compacto Palestina. Olinda: Centro Cultural Palestino Brasileiro, 2010, p. 295.

XII- ASFORA, João Sales. Compacto Palestina. Op.cit, p. 125.

XIII- ASFORA, João Sales. Compacto Palestina. Op.cit, p. 221.

XIV- Entre os atuais integrantes da FEPAL e do GT Árabe, permaneceram alguns nomes da antiga juventude Sanaúd, como é o caso de Claude Fahd Hajjar (coordenadora do GT Árabe), Marie Christine Bonduki (esposa de Souheil Sayegh),Ali El-Khatib e Emir Mourad.

XV- Entre os partidos políticos, movimentos sociais e instituições mais conhecidas o comitê “Estado da Palestina Já!” integra em sua composição, além do Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Marcha Mundial de Mulheres, a União Brasileira de Mulheres (UBM), o Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento Negro Unificado (MNU), a União dos Negros pela Igualdade (Unegro), o Sindicato dos professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) e o movimento “Nação Hip Hop”.

XVI-Durante os trabalhos do Fórum Social Mundial Palestina Livre (FSMPL), mais especificamente no dia 29 de novembro, foi finalmente votado pela maioria dos Estados membros, o reconhecimento do Estado palestino como membro observador na Assembleia da ONU. Nesse mesmo dia, houve uma grande passeata no centro de Porto Alegre, reunindo uma estimativa de 10.000 pessoas, mesma quantidade de inscrições do FSMPL.

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