Philip Khoury Hitti e Albert Habib Hourani: Coragem e Erudição na Batalha pela Palestina

Share Button

Tufy Kairuz 

“É o vencedor que escreve a história e conta os mortos e para o vencido resta apenas a memória entorpecida de uma dor não contada e não escrita.”

Crônica da Batalha de Culloden, Escócia, 1746.

 

“As escolas dominicais nos causaram muito dano porque ao cobrir as paredes das salas de aula com mapas da Palestina, eles a associam aos judeus na mente do americano e do inglês médio. Hitti traçou a história da Palestina até 7.000 anos. Por todo esse tempo, disse ele, a Palestina tinha sido o lar imemorial dos árabes cananeus. Philip Hitti afirmou que o sionismo era indefensável e inviável em termos morais, históricos e práticos. Foi uma imposição aos árabes de um modo de vida estrangeiro do qual eles se ressentiam e ao qual nunca se submeteriam.”

Bartley Cavanaugh Crum. Behind the Silken Curtain: A Personal Account of Anglo-American Diplomacy in Palestine and the Middle East. 

Philip Khoury Hitti 

Deu no The New York Times em 09/11/1918 no dia que o Kaiser Guilherme II abdicou colocando um fim na I Guerra Mundial: “500 sírios da Sociedade dos Jovens de Ramallah do estado de Nova York, reunidos no Hotel Bossert, no Brooklyn, manifestam sua oposição ao movimento sionista e a proposta em criar um Estado Judeu da Palestina” (The New York Times, 11/09/1918).

Entre os 500 jovens “sírios” (um dos rótulos identitários dos levantinos na Diáspora na época) se encontrava um Ph.D. na Columbia University, de 32 anos, que então era professor na American University of Beyrut (AUB). Seu nome era Philip Khoury Hitti nascido em Shemian, Monte Líbano, no meio do “caldeirão” druso-maronita, para o melhor e para pior.

Hitti era um típico “filho do seu tempo”,  pois era um maronita cuja família certamente havia experimentado as agruras do caos no Monte Líbano em décadas anteriores. Hitti vinha de uma família de pequenos proprietários e seu pai, considerado um “intelectual” por saber ler e escrever, como tantos outros na época, tinha um pequeno negócio dedicado ao fabrico de seda.

De maneira totalmente acidental (por meio de um acidente ainda na infância), o jovem Philip Hitti se envolveu com os missionários norte-americanos, baseados em Beirute, e com tantos outros levantinos, que se destacaram na Diáspora, a relação com os norte-americanos e suas instituições abriram as portas para a imigração, e no seu caso, para a carreira acadêmica.

Nos Estados Unidos, Philip Hitti ascendeu no mundo acadêmico se tornando pioneiro e figura de proa, por boa parte do século XX, nos estudos sobre o Oriente Médio, Mundo Árabe e Islã. Na Diáspora, Hitti se identificava como “maronita” e “sírio” (com origem cananeia/fenícia) já que entendia ser o termo “árabe” sinônimo de “muçulmano”. Isto, certamente, lhe rendeu críticos ferozes no universo dos nacionalistas, mas, por outro lado, ele nunca adotou um posicionamento oportunista hostil as causas árabes que lhe seria mais conveniente e abriria muitas portas nos Estados Unidos.

A manifestação no Brooklyn, em 1918, não foi a primeira participação de Hitti e tampouco foi a última, em favor dos seus e da terra em que nasceu. Ainda em 1916, quando terminava seu Ph.D. em Columbia, escreveu uma carta ao Departamento de Estado denunciando a situação dramática dos habitantes do Monte Líbano em tempos de guerra com bloqueio aliado e a fome que matou 200.0000 seres humanos ou cerca de 50% da população naquelas regiões.

Hitti foi um dos primeiros e mais destacados imigrantes “sírios” a se opor ao projeto sionista e a defender a ideia, após a I Grande Guerra, de uma Grande Síria única, federativa e sob supervisão de uma potência ocidental, de preferência os EUA.  Em 1919, o presidente Woodrow Wilson criou a “Comissão King & Crane”, que trabalhava com uma outra comissão interaliada, na Turquia ocupada, com a missão de percorrer a Síria e coletar a opinião dos habitantes sobre o futuro da região.

A Diáspora “síria”, nos Estados Unidos, se mobilizou, mas como se tornou um padrão até nossos dias, não tinha como enfrentar os judeus-americanos que ocupavam altos cargos no governo e privavam da amizade do presidente. Para piorar, Woodrow Wilson, era um sulista presbiteriano afiliado ao Partido Democrata e havia sido governador de Nova Jersey. Portanto, Wilson, como outros membros da elite política no universo anglo-saxão havia sofrido a tradicional “lavagem cerebral” de mitologia bíblica e, como político, também sabia que a máquina eleitoral Democrata não podia se arriscar a perder o voto judeu.

A conclusão da “Comissão King & Crane”, em resumo, revelava o apoio maciço dos povos nativos a uma Grande Síria unificada e se mostrava totalmente contrária ao projeto sionista. No entanto, Wilson, era um idealista “seletivo” e apesar de seu discurso de apoio a autodeterminação dos povos e a crença na vontade popular, ignorou solenemente as conclusões da comissão por ele criada. Além disso, Wilson adoeceu e misteriosamente as conclusões da comissão não foram reveladas ao público por três anos quando então o maquiavélico “Mandato Britânico” já era realidade.

Philip Hitti, na ocasião, era docente na AUB, em Beirute, mas mantinha contato com a comunidade síria nos Estados Unidos e seus argumentos abalizados contribuíram para as conclusões da “Comissão King & Crane” tragicamente ignoradas. De volta aos Estados Unidos, em 1926, Hitti se tornou professor na renomada Princeton University, mas seu ativismo não esmoreceu. Em 1938, enviou uma carta ao Departamento de Estado, órgão com o qual ele mantinha contato direto, criticando severamente a política norte-americana na Palestina, desde Woodrow Wilson, como “politicamente comprometida” e, mais uma vez, sugeria que os Estados Unidos assumissem o Mandado na Palestina diante, segundo ele, da incapacidade dos britânicos.

Em 1944, Hitti depôs no Congresso norte-americano diante do “Comitê de Relações Exteriores” de forma corajosa e contundente, não obstante, sua fala ter causado pouco impacto pelo fato de não representar formalmente a posição de um grupo organizado ou associação. O líder do Comitê lhe perguntou: “Quem você representa?” Hitti: “Ninguém, exceto eu mesmo.” Ato contínuo, Hitti externou sua simpatia pelos judeus europeus responsabilizando o regime nazista pela tragédia na Europa, mas argumentado que não cabia aos palestinos o ônus de resolver o problema judeu. E prosseguiu advertindo que a criação de uma entidade judaica à custa dos palestinos iria condenar a região a um “estado perpétuo de conflito e instabilidade.”

Mesmo correndo o risco de ser acusado de insensibilidade diante do sofrimento dos judeus na Europa, Hitti não hesitou em responsabilizar moralmente o governo norte-americano que se recusou a rever suas leis de imigração para permitir que milhões de refugiados pudessem ser assentados nos Estados Unidos (SHIBLEY, 2019).

Hitti reconhecia a presença judaica na Palestina, de acordo com o Antigo Testamento, mas lembrava que muitos árabes, na Palestina e no resto do Levante, descendiam dos cananeus que lá habitavam antes dos hebreus e certamente muito antes do tempo de Jesus. E concluiu afirmando que a infame “Declaração de Balfour” interpolou promessas anteriores feitas pelos britânicos aos árabes criando um emaranhado legal no qual os palestinos foram esquecidos.

Nesta altura, pode-se conjecturar se Hitti tinha qualquer esperança em reverter, do alto de sua autoridade inquestionável, um quadro predisposto, como de hábito, a favorecer as exigências sionistas por mais absurdas que fossem. Dessa maneira, não estaria a Causa Palestina perdida já com o “Acordo de Sykes-Picot” (1915), com a “Declaração de Balfour” (1917) ou com a negativa de se implementar as conclusões da “Comissão King & Crane” (1919)? Afinal uma população esquecida, a milhares de quilômetros do Ocidente, seria capaz de despertar o senso de justiça, convenientemente colocado em segundo plano, em favor de outra, na Europa, que havia submetida a um longo processo de perseguições, discriminação e até extermínio perpetrado no próprio Ocidente? Era uma tentação irresistível “varrer a sujeira da Europa para debaixo do tapete alheio” invocando razoes humanitárias e mitos religiosos.

Em 1946, Philip Hitti foi convidado pelo “Instituto de Assuntos Árabes” para falar em Washington D.C. perante o “Comitê Anglo-Americano de Investigação Sobre A Palestina.” Hitti, na ocasião, definiu o sionismo como a “forma mais detestável de imperialismo” e uma “forma disfarçada de conquista.”  Obviamente, nada que Hitti ponderou na ocasião influenciou Harry S. Truman, o presidente norte-americano da vez, já devidamente cooptado de longa data pelo sionismo a ponto de ignorar a recomendação expressa, em 1948, de seu Secretário de Estado, General George C. Marshall e de seu Secretário de Defesa, James Forrestal, de não reconhecer a entidade sionista.

Afinal, Truman era apenas mais um político evangélico na “angloesfera” a quem agradava a ideia de se imaginar como “restaurador” do reino judeu na Palestina, unindo o útil ao agradável, e de quebra, garantindo o tão desejado voto judeu na reeleição que se aproximava. Para um “caipira” bem-sucedido como Truman apoiar o projeto sionista era sopa (goulash) no mel.

A participação de Hitti, em 1946, no “Comitê Anglo-Americano de Investigação Sobre a Palestina” o colocou em rota de colisão com Albert Einstein, um físico genial recrutado velhacamente pelo sionismo no pressuposto de uma absurda “falácia da autoridade” que angariasse o apoio das legiões de incautos no Ocidente. O vencedor do Prêmio Nobel de Física e “pai” da Teoria da Relatividade também era professor em Princeton e era afiliado a algo chamado “sionismo cultural”, que advogava o assentamento de judeus europeus na Palestina, mas não a criação de um estado judeu, como desejava o sionismo político.

O confronto entre Hitti e Einstein se materializou, ao longo de 1946, em forma de uma troca áspera de correspondência. Einstein, talvez por falta de argumentos para discutir História com um erudito do calibre de Hitti, o acusou, na base do “ouvi falar”, de ser “agente dos governos árabes a das companhias de petróleo.” Hitti havia prestado consultoria ao governo do Iraque de forma pública e transparente e a acusação poderia ser vista como uma manifestação combinando impotência e o subconsciente relativamente, sem trocadilhos, sionista de Einstein, que na impossibilidade de sustentar o debate apelava para difamação de seu oponente.

Hitti, indignado pelo “golpe-baixo”, respondeu chamando Einstein de um “sionista cego pelo preconceito”, o que certamente era uma acusação grave contra quem construiu sua reputação pautada no rigor científico, não em fofocas, narrativas pseudo-históricas e mitos religiosos. Hitti, sem se importar com o status de seu adversário, aplicou o coup de grâce no recipiente do Prêmio Nobel de Física afirmando que Einstein sabia tanto da história da Palestina quanto ele sabia sobre a Teoria da Relatividade.

Einstein percebeu que era um amador fadado a perder o debate com um profissional. Porém, talvez tenha pensado que dois amadores “pesos-leves”, em História, pudessem fazer frente a um “peso-pesado” da categoria de Hitti. Assim, um cambalaente Einstein, “nas cordas”, recrutou Erich Kahler, judeu tcheco e especialista em Literatura no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, que desafiou Hitti em um artigo publicado no “Princeton Herald” co-assinado por seu amigo em apuros Albert Einstein. Os dois refutaram, baseados em uma tese absurda, o argumento de Hitti de que o problema judeu não era obra dos árabes. Hitti, por sua vez, em sua réplica, acusou Kahler e Einstein de tentarem “vender” o discurso simplista e passional sionista que havia espaço suficiente para os palestinos no vasto mundo árabe enquanto a pequena Palestina era o único lugar no mundo ligado ao “povo” judeu.

Para terminar a arenga, indigna de dois expoentes em suas respectivas áreas de conhecimento, mas com erudição pífia no assunto, a dupla concluiu que os “colonos” judeus tinham direito à Palestina porque transformaram “solo estéril em fazendas floridas e plantações”.

Hitti, por sua vez, comparou a justificativa da dupla aos apologistas italianos das invasões coloniais italianas na Líbia e na Etiópia. Ambas aventuras coloniais feitas à custa da caridade imperial com intuito de torná-las economicamente sustentáveis. O autor da fórmula mais famosa da Física moderna E=mc² aprendeu que no debate sobre a Palestina a fórmula era outra: “Einstein + Kahler < Hitti.”

Nas décadas seguintes e por toda sua vida Philip Hitti se manteve fiel a suas ideias sobre a Questão Palestina, até sua morte em 1978, mas a longo prazo, se enganou sobre a união dos estados árabes em torno da tragédia palestina. Porém, acertou em prever que uma entidade sionista artificial criada sob falsas premissas e cujo catalizador foi uma tragédia humanitária na Europa, sem a menor relação com os palestinos, seria uma fonte perene de instabilidade naquelas regiões.

As obras de Hitti se tornaram clássicos da literatura acadêmica nos Estudos Árabes, sobre o Oriente Médio e sobre Islã e a Diáspora árabe. Seus livros “The Syrians in America” (Os sírios na América) e “The History of the Arabs” (A História dos Árabes) já foram reeditados dezenas de vezes. Por certo, suas abordagens devem ser contextualizadas até porque sabemos, por exemplo, que etnicidade e identidade são rótulos fluidos e Hitti, viveu e escreveu, durante um século XX de mudanças dramáticas no Oriente Médio.

Como mencionado, no início do texto, Philip Hitti foi produto do “zeitgeist” de sua época, mas ao contrário de outros maronitas não se aliou de forma oportunista ou submissa aos inimigos do povos do Levante.  Hitti, portanto, precisa ser lembrado como merece: como um maronita que conquistou por sua coragem e talento o status de primus inter pares na Diáspora árabe, em um território hostil como a América do Norte, e abriu caminho, com sua luta solitária e militância no meio acadêmico, para gerações de intelectuais de origem árabe na América do Norte e além.

Vejo a situação dos árabes atualmente como uma continuação de um período de renascimento que começou no século XVIII, sob influência do Ocidente, após a invasão napoleônica. Os árabes caminhavam em uma direção quando o conflito israelense desviou grande parte da energia dos árabes para a destruição e a guerra. Mas o tempo está do lado dos árabes … Os cruzados vieram e conquistaram a Palestina criando o Reino Latino da Palestina em 1099. Eles tinham um principado em Trípoli, outro em Antioquia e ainda outro em Edessa. Mas… o Reino Latino dependia para existir, de soldados vindos de fora, de pessoas vindas da Europa e do envio de suprimentos que não produziam. Era um estado artificial como alguém que vive graças a transfusões de sangue e por isso durou apenas 88 anos. A terra foi devolvida aos povos nativos e agora lemos sobre o Reino Latino apenas nos livros de História (Hitti, 1971)

Philip K. Hitti Biography - Lebanese-American academic and authority on the Middle East (1886-1978) | Pantheon

Philip Khoury Hitti (1886-1978)

Albert Habib Hourani 

A Revolta Palestina (1936-1039) mergulhou os irmãos Hourani – Cecil, Albert e George em uma crise de identidade. Nascidos e criados em um ambiente liberal vitoriano, tipicamente inglês, mesclado com suas raízes levantinas, os irmãos Hourani, por causa da Revolta Palestina, decidiram se reconectar com suas raízes árabes e esta busca diaspórica moldaria suas vidas e os arrastaria para o turbilhão da batalha pela Palestina.

Albert Habib Hourani nasceu em Manchester, Inglaterra, no ano de 1915. Os Hourani tinham origem em Marjayoun, sul do Líbano, e eram cristãos gregos-ortodoxos, como a maioria da população daquela localidade, que convivia, por séculos, com xiitas, sunitas, maronitas e drusos. O pai de Albert, Fadlo Hourani, como outros afiliados ao cristianismo oriental levantino, se converteu ao presbiteranismo escocês e a conversão lhe proporcionou acesso à educação universitária na AUB (American University of Beyrut).

A educação formal, nos moldes ocidentais, e a conversão à seita reformada escocesa facilitaram a imigração e o assentamento da família Hourani no coração do capitalismo industrial inglês onde Fadlo, mais um imigrante despossuído de qualquer recurso financeiro, se tornou um próspero comerciante de algodão.

Albert, em Manchester, vivia em uma atmosfera multicultural que reproduzia em seu bairro uma miniatura do Império Otomano onde estavam representadas quase todas suas minorias. Recusado pela escola local por ser muito “estrangeiro”, apesar de ter nascido na Inglaterra, Albert se preparou para os estudos universitários na escola fundada por seu pai que permitiu acesso à educação a jovens “estrangeiros” discriminados pelo sistema educacional inglês. Como “vingança”, o jovem Albert se destacou nos estudos preparatórios e conquistou uma bolsa de estudos disputadíssima no Magdalen College, na Universidade de Oxford.

Até 1936, o jovem Albert não tinha o menor interesse no Oriente Médio, mas naquele ano algo mudaria para sempre a vida dos três jovens Hourani, além da Revolta Palestina. A família Hourani, em 1935, recebeu uma visita ilustre vindo da Diáspora levantina do além-Atlântico: Philip Khoury Hitti. Hitti estava na Inglaterra para tratar da publicação do seu futuro clássico “A História dos Árabes” e fez uma parada em Manchester para visitar Fadlo Hourani.

A presença de Hitti, já professor na famosa Princeton University, e as longas conversas sobre os árabes e o Islã, fascinaram os três irmãos Hourani. Dessa maneira, George, o mais velho, seguiu para Princeton, com Hitti, onde fez seu Ph.D. em História da Filosofia Islâmica, Cecil e Albert foram para Oxford onde fizeram seus respectivos Ph.D.s. Albert escolheu como tópico de pesquisa o “Acordo de Sykes-Picot” e a “Correspondência entre McMahon e o Sherif Hussein”, durante a I Guerra Mundial.

Em Oxford, os irmãos Hourani, Albert e Cecil, faziam parte do “Clube Trabalhista” e lá sentiram o primeiro gosto da influência tóxica do sionismo no mundo acadêmico. Oxford vivia uma atmosfera universitária dominada pelo chamado “sionismo trabalhista” e com figuras de destaque no corpo acadêmico como Isaiah Berlin, russo judeu, “campeão” do liberalismo e do anticomunismo que operava como “leão de chácara” para garantir que Oxford contratasse somente docentes simpáticos ao sionismo (HANSSEN, 2016).

Albert não demorou muito a sentir a mão invisível do sionismo, pois teve sua candidatura a uma posição administrativa no Saint John, em Oxford, rejeitada o que levou o “snob émigré” russo Isaiah Berlin comentar: “pobre Albert, ele é uma alma perdida.” (HANSSEN, 2016).

Porém, em 1937, antes de terminar seu Ph.D., Albert conseguiu uma bolsa de dois anos, em Beirute, para ser professor na AUB. No campus universitário, na sua primeira viagem a terra do seus pais, ele passou a viver em uma fervilhante atmosfera política com todas as tendências ideológicas. Lá se encontravam intelectuais como nacionalista sírio Antun Saadeh (fundador do Partido Social Nacionalista Sírio), o nacionalista árabe Constantine Zurayk e Charles Malik, filósofo, diplomata e teólogo que iria influenciar o extremismo cristão no Líbano. Por último e não menos importante se encontrou com George Antonius, intelectual pan-arabista autor do clássico “The Arab Awakening” (O Despertar Árabe). Sendo assim, a temporada de Albert Hourani em Beirute foi uma oportunidade que certamente forjou sua identidade e vida intelectual de forma decisiva.

Em 1939, Hourani estava de férias na Inglaterra quando a guerra se iniciou e em 1942 o Foreign Office (Ministério das Relações Exteriores) o recrutou para uma missão no Oriente Médio com o objetivo de levantar informações sobre os movimentos nacionalistas árabes na condição de “Conselheiro de Assuntos Árabes” do Ministro-Residente britânico no Cairo. Dividindo o tempo entre o Cairo e Jerusalém, Hourani, durante a guerra, fez parte de um círculo de líderes e intelectuais árabes anglófilos que se reuniam regularmente para discutir o presente e futuro da região.

Convém lembrar que Hourani havia sido recrutado, na ocasião, para substituir o então falecido George Antonious na burocracia colonial britânica. George Antonious, por sua vez, havia sido uma dos poucos intelectuais árabes a enfrentar, com algum êxito, o poderoso lobby sionista no mundo anglo-saxão antes da Segunda Guerra Mundial.

No pós-guerra as atividades de Albert Hourani no Foreign Office despertaram suspeitas nos círculos árabes, mas em 1946 ele demonstrou de forma indelével seu compromisso com a Causa Palestina antes de retornar em definitivo a reclusão no mundo acadêmico. Em março de 1946, o “Comitê Anglo-Americano de Investigação sobre a Palestina”, o mesmo que deu origem a troca áspera entre Hitti e Einstein, se reuniu pela última vez em Jerusalém encerrando seus trabalhos que haviam se iniciado em Washington e Londres.

Em realidade o comitê era resultado das divergências entre britânicos e norte-americanos sobre Palestina na Conferência de Potsdam (1945) quando Truman, corrompido pelo sionismo e sob impacto do Holocausto na Europa, pressionou os britânicos, inclusive economicamente, a suspender as restrições a imigração em massa dos judeus europeus para a Palestina previstas no “White Paper”, em vigor desde 1939.

A arena para a batalha final entre sionistas e árabes estava montada em Jerusalém e a última palavra era de Albert Hourani em cujos ombros jovens recaía uma responsabilidade gigantesca. No entanto, como havia se tornado norma na luta dos árabes e palestinos contra o sionismo, era um jogo de cartas marcadas. Depois da guerra o Reino Unido estava enfraquecido e os norte-americanos eram os novos incontestáveis donos do poder.

Assim, o impacto do Holocausto e as atividades do lobbies sionistas nos Estados Unidos estavam transformando o Mandato Britânico em um condomínio no qual os norte-americanos eram sócios majoritários. Além disso, a liderança árabe-palestina estava desorganizada após a Revolta Palestina (1936-1939), às voltas com disputas internas e sofrendo com falta de recursos.

No lado sionista era o contrário, dinheiro não era problema, estavam extremante organizados e percebiam que os ventos não sopravam mais de Londres, mas sim de Washington. A “troca de donos” pelos sionistas já havia sido decidida, em Nova York, na Conferência de Biltmore, em 1942, quando o eslavo David Grün (transformado por um “milagre biológico” no semita “Ben-Gurion”) descartou os britânicos e se agarrou com garras e presas aos norte-americanos. Como resultado, os sionistas na Palestina iniciaram uma campanha terrorista contra os britânicos no melhor estilo “o cão que morde a mão dono.”

Albert Hourani no ultimo depoimento ao comitê “agarra a besta sionista pelos chifres”. Lembrava que a Inglaterra e os Estados Unidos não eram apenas juízes, mas eram atores naquela tragédia e que não obstante as razões humanitárias invocadas, o que os sionistas realmente queriam era um estado em terras palestinas, nada menos.

Hourani reiterou que a ideia da partilha era um erro porque qualquer que fosse a fronteira traçada sempre haveria uma população palestina considerável que não poderia ser removida a força. Segundo Hourani, a liderança palestina se dispunha a receber os refugiados judeus europeus que haviam entrado legalmente na Palestina concedendo aos mesmos cidadania plena no estado palestino a ser criado e esta generosidade não deveria ser subestimada e concluiu: “Se tal atitude não era um compromisso, o que era então?”

Sobre a retórica sionista que colocava em dúvida a igualdade de direitos de cidadãos judeus em um estado palestino, Hourani argumentava que foram os europeus os inventores dos guetos judeus na Europa e, por fim, não se poderia esquecer a realidade inescapável: a Palestina era habitada por uma população indígena árabe e fazia parte geograficamente e historicamente do mundo árabe.

Hourani terminou sua fala com uma nota pessoal lembrando que nasceu e cresceu na tradição cristã europeia e nutria um profunda empatia pelo sofrimentos dos judeus europeus no Holocausto. Porém, refutava o argumento falacioso que o projeto sionista na Palestina iria curar os europeus do seu “antissemitismo” histórico com falsa promessa de normalizar a situação dos judeus europeus.

Na realidade, tal atitude significaria para os europeus reconhecer o fracasso de ideais tão caros ao Ocidente como pluralismo e democracia. Hourani também observava que o sionismo afetaria profundamente as relações do Ocidente com o Oriente Médio colocando em risco a existência do cosmopolitismo árabe, eliminando intermediários culturais como ele e empurrando o mundo árabe para o isolamento e radicalismo. Profético, não?

O depoimento impecável de Alberto Hourani impressionou o “Comitê Anglo-Americano de Investigação”, em Jerusalém, e segundo alguns, teria adiado a partilha da Palestina (HANSSEN, 2016). No entanto, Hourani sabia que os sionistas iriam triunfar “assassinando a sangue frio”, com a igualmente fria cumplicidade do Ocidente, a História e a Geografia da Palestina.

De volta a Londres, Hourani continuou sua batalha a frente do “Arab Office” tentando convencer a opinião pública britânica que a Questão Palestina não era uma disputa entre dois oponentes no mesmo nível, cada um tentando levar mais vantagem sobre o outro, que na impossibilidade de se chegar a um acordo recorriam a arbitragem de terceiros.

O cerne da questão era os direitos inalienáveis da população originária em decidir por si mesmo assuntos como imigração em geral e, em particular, o caso de um grupo imigrante minoritário tentando criar um estado em um território de outro povo com ajuda de potencias estrangeiras.  Em carta para Sir Reginald Coupland, um dos autores do “Relatorio de Peel”, que em 1937 argumentava que não era possível os judeus europeus serem deixados sob responsabilidade de um governo árabe

Hourani rebateu afirmando, que de forma análoga, uma imensa população palestina não poderia ser deixada sob responsabilidade de um governo judeu europeu. Hourani terminava a carta cobrando de Sir Reginald o que foi acordado em 1939 no “White Paper” e a apuração de responsabilidades relacionadas aos atos do terrorismo sionista.

No entanto, para falar de Hourani nada melhor que saber o que um dos seus poderosos desafetos no establishment britânico pensava dele. Richard Crossman era uma figura-chave do corpo britânico no “Comitê Anglo-Americano de Investigação” e por isso foi transformado em alvo-preferencial para a conversão ao culto sionista. Ele era um britânico eclético, em vários aspectos, além de ser um intelectual, político do Partido Trabalhista, informante/espião, anticomunista e lobista do sionismo.

Em vidas passadas tinha sido antissionista até ser “convertido” pelo russo Chaim Weizmann, o mesmo que conseguiu extorquir dos britânicos a “Declaração de Balfour”, e se tornou, mais tarde, presidente da entidade sionista. Crossman, em seu diário, afirmava que Hourani e outros intelectuais árabes nunca tiveram chance contra o sionismo.

Para Crossman os intelectuais árabes, como Hourani, eram homens educados nos moldes anglo-saxões e possuíam uma elegância francesa de pensar e de se expressar combinadas com um senso aguçado para negociar e um idealismo inventivo. No entanto, eram inspirados pela História e Filosofia ocidentais, embora leais a sua cultura original, o que resultava em homens de personalidade dividida inclinados a viver em realidades paralelas, mas concluía concedendo que os “árabes educados eram homens interessantes e charmosos” (HANSSEN, 2016).

Crossman, do alto de seu pedestal imaginário, prosseguiu em sua “análise” dos labirintos da mente anglo-árabe descrevendo Hourani e outros intelectuais de forma estereotipada.  Por outro lado, a “personalidade dividida” dos intelectuais árabes da “angloesfera” parecia incomodar o ambíguo Crossman e seus pares da igualmente ambígua esquerda trabalhista, que então governava o Reino Unido no período pós-guerra.

A irritação de tipos como Crossman era que Hourani e outros intelectuais árabes ameaçavam o weltanschauung (visão de mundo) anglo-saxão e a interpretação imperialista da História em seus próprios termos. Afinal, Hitti, Hourani e tantos outros não eram figuras que se pudesse demonizar tão facilmente como fizeram com o Mufti de Jerusalém Mohammed Amin al-Husseini (KAIRUZ, 2021).

Ironicamente, o lado sionista não havia produzido nada que se pudesse comparar com as obras de excelência intelectual sobre a Palestina (e os árabes) produzidas por Hourani, Hitti e George Antonius. O que lhes restou foi recrutar celebridades e politicamente ingênuas e idealistas, como Albert Einstein, cooptar políticos proeminentes no mundo anglo-saxão, recorrer a narrativas fictícias bíblicas e apelar para tática rasteira binária chantagem/pressão nos bastidores dos poderosos.

Curiosamente, a alegada superioridade da “cultura de elite anglo-árabe” fez socialistas “chics” como Crossman revelarem suas inclinações sionistas até para justificar terrorismo do Haganah como fiel aos ideais socialistas. Vale ressaltar, que no lado palestino, não havia nada comparável aos movimentos socialistas-sionistas “Hashomer” ou “Ahdut HaAvoda” considerados por tipos como Crossman como a fina-flor do socialismo europeu.

Ademais, o proletariado árabe estava longe de se encaixar no modelo socialista idealizado pelos europeus como ficou claro durante as “turnês de turismo socialista”, na Palestina, assim denominadas por Crossman.  Nestas “turnês” Crossman era acompanhando por seu novo parceiro e mentor, o ucraniano David Horowitz, economista da colonialista “Agencia Judaica” e futuro presidente do Banco de israel.

Ambos, o ucraniano e o britânico, tinham em comum a visão da Palestina através de suas lentes distorcidas pelo eurocentrismo na sua versão liberal e até progressista. Para a dupla estava claro a dicotomia entre árabes e judeus europeus: os primeiros “rebeldes primitivos” presos a um regime feudal e os últimos “colonos” que simbolizavam a produtividade e a eficiência em tudo o que faziam.

Crossman, em sua “turnês” também visitou sindicatos palestinos, mas percebeu que eles eram dirigidos por indivíduos despolitizados ou por adeptos de um “estalinismo universal” já defenestrado por muitos nas hostes socialistas europeias.  Sendo assim, para Crossman, e certamente para tantos outros socialistas europeus, os “pioneiros” trabalhistas sionistas tinham a vantagem de “não precisar reconstruir uma sociedade capitalista, pois ao invés de socializar as indústrias decadentes, eles construíram novas indústrias que já nasceriam socialistas” (SHIBLEY, 2019).

A proposta de Hourani para um único estado palestino democrático foi relegada a um relatório minoritário de três países dissidentes e na votação das Nações Unidas, em 26 de novembro de 1947, todos os países europeus, inclusive do Bloco Comunista, os Estados Unidos, Canadá e a URSS votaram pela partilha, enquanto quase todos os países asiáticos votaram contra.

Na América Latina, a nota vergonhosa ficou para o Brasil, a favor da partilha, e a honrosa foi para Cuba que votou contra. Na subsequente Assembleia Geral da ONU, a Resolução 181 alocou 56% do Mandato da Palestina para a minoria judaica e 42% para maioria palestina ficando Jerusalém sob administração internacional.

Em dezembro 1947 quando a Grã-Bretanha terminou o Mandato e David “Ben Gurion” Grün, em maio de 1948, declarou unilateralmente a “independência do estado de israel.” Os sionistas em seguida adquiriram pela força, com a cumplicidade do Bloco Comunista e do Ocidente, e por meio de uma limpeza étnica 77% da Palestina iniciando uma gigantesca tragédia humanitária.

Albert Hourani ficou arrasado com o triunfo da violência e a derrota da razão e da justiça na Palestina, mas foi obrigado a aceitar que em face da aquiescência ocidental para a agressão militar sionista a divisão era inevitável. Percebendo que seu posicionamento por um estado único era publicamente insustentável se retirou, em 1948, definitivamente para a docência em Oxford.

Home - Albert Habib Hourani 1915-1993 - LibGuides at Holy Spirit University of Kaslik

Albert Habib Hourani (1915-1993)

Nunca tantos árabes deveram tanto a dois cristãos libaneses

A luta por justiça na Palestina atravessou o século XX e continua no século XXI. Porém, neste texto, mais uma vez tento resgatar das brumas da radicalização, do desconhecimento e do esquecimento indivíduos que arriscaram reputações e carreiras para denunciar um crime perpetrado por um grupo extremista com a cumplicidade, não menos criminosa, de uma parcela significativa da comunidade internacional. Eis que neste contexto, dois intelectuais do passado, Philip Khouri Hitti e Albert Habib Hourani, brilham como fachos de luz na escuridão em tempos de covardia, alienação e cumplicidade da comunidade acadêmica, aqui e alhures, no que se refere à tragédia palestina.

Dessa maneira, a frase de Isaac Newton, “Se enxerguei mais longe foi por estar no ombro de gigantes” traduz exatamente o que representaram “gigantes” como Hitti e Hourani, pois foram deles os ombros em que se ergueram Edward Said (Allah Yerhamo), Ussama Makdisi, Rashid Khalidi, Joseph Massad, Ramzy Baroud, Leila Fawaz, Nur Marsalha, entre tantos outros intelectuais árabes.

O resgate de Philip Khouri Hitti e Albert Habib Hourani não apenas constrange os que parasitariamente e covardemente se escondem nas “torres de marfim” do centro e nas torres “com muito menos marfim” da periferia. A lembrança, mais que justificada dos dois eruditos, também nos faz lembrar e refletir que houve um tempo em que os cristãos árabes, maronitas e ortodoxos, estavam no front da luta contra o projeto sionista arriscando tudo, em terras que eram uma minoria invisível e em establishments dominados por lobbies poderosos e hostis, apenas movidos pela coragem, ideal e colocando sua erudição a serviço da batalha pela justiça na Palestina. Noblesse oblige.

ANGLO-AMERICAN COMMITTEE OF INQUIRY

Comitê Anglo-Americano de Investigação” em Jerusalém, março de 1946. Na imagem, Richard Crossman, Chaim Weizmann e o Mufti Mohammed Amin al-Husseini. Comitê Anglo-Americano de Investigação” em Jerusalém, março de 1946. Na imagem, Richard Crossman, Chaim Weizmann e o Mufti Mohammed Amin al-Husseini.

Gregory J. Shibley. Revisiting Hitti’s Thoughts on Palestine and Arab Identity. Arab Studies Quarterly, Volume 41, Issue 2 (April 2019): 150-171.

Albert’s world: historicism, liberal imperialism and the struggle for Palestine, 1936-48. In Jens Hanssen (ed.), Arabic Thought Beyond the Liberal Age : Towards an Intellectual History of the Nahda. Cambridge University Press, 2016.

Gilbert Achcar. The Arabs and the Holocaust: the Arab-Israeli war of narratives. Translated from the French by G.M. Goshgarian. London : Saqi, 2011

Tufy Kairuz. Pérolas aos porcos. Site GGN, 15 de maio de 2021. https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/perolas-aos-porcos-por-tufy-kairuz/.

John R. Starkey. A Talk With Philip Hitti. Saudi Aramco World, July/August 1971: 23-31. https://web.archive.org/web/20070930154635/http://www.saudiaramcoworld.com/issue/197104/a.talk.with.philip.hitti.htm

OPPOSE ZIONIST PLAN; Syrians Adopt Resolutions of Protest at Brooklyn Meeting. Nov. 9, 1918. The New York Times Archives. https://www.nytimes.com/1918/11/09/archives/oppose-zionist-plan-syrians-adopt-resolutions-of-protest-at.html

A matéria aqui publicada é da responsabilidade do autor. O Oriente Mídia não necessáriamente concorda com estas idéias.

Share Button

Deixar um comentário

  

  

  

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.