“A parceria estratégica Rússia-Irã avança paralelamente à entente Rússia-Arábia Saudita, sendo ambos importantes vetores de multipolaridade”, diz Pepe Escobar
Tudo o que importa no complexo processo da integração eurasiana foi colocado novamente em jogo em Astana, quando a – renomeada – capital cazaque foi sede da 6ª Conferência sobre Medidas de Interação e Fortalecimento da Confiança na Ásia (CICA).
A lista de chamada foi um objeto de beleza eurasiana – contando com os líderes da Rússia e de Belarus (UEEA), do Oeste Asiático (Azerbaijão, Turquia, Iraque, Irã, Qatar, Palestina) e da Ásia Central (Tajiquistão, Uzbequistão e Quirguistão).
A China e o Vietnã (Leste e Sudeste Asiáticos) compareceram no escalão de vice-presidentes.
A CICA já estabeleceu uma parceria com a União Econômica Eurasiana (UEEA). Na prática, portanto, ela logo estará trabalhando conjuntamente e lado a lado com a OCX, a UEEA e, certamente, os BRICS+.
A parceria estratégica Rússia-Irã teve presença proeminente na CICA, em especial após o Irã ter sido recebido na OCX como membro pleno.
Para Teerã, ser parceiro da integração da CICA no âmbito de um labirinto de instituições panasiáticas é da máxima importância, após décadas da “pressão máxima” desencadeada pelo Hegêmona.
Além do mais, essa parceria abre uma oportunidade, como observado por Raeisi, de o Irã vir a se beneficiar da “infraestrutura econômica da Ásia”.
Uma das reuniões bilaterais de alto nível na agenda de Putin foi com o Emir de Qatar: todos os atores importantes da Ásia querem conversar com a “isolada” Rússia.
Putin exigiu “compensação pelos danos causados aos afegãos durante os anos de ocupação” (todos sabemos que o Império do Caos, das Mentiras e do Saque irá se recusar a pagar), e enfatizou o importante papel da OCX no desenvolvimento do Afeganistão.
Ele afirmou que a Ásia, “onde novos centros de poder vêm-se fortalecendo, desempenha um grande papel na transição para uma ordem mundial multipolar”.
Ele advertiu: “há um perigo real de fome e de choques de grande escala contra um fundo de volatilidade nos preços da energia e dos alimentos no mundo”.
Ele ainda conclamou pelo fim de um sistema financeiro que beneficia o “Bilhão Dourado” – que vive às custas dos demais” (não há nada de “dourado” nesse “bilhão”: na melhor das hipóteses, essa definição de riqueza se aplica a 10 milhões).
E ele ressaltou que a Rússia vem fazendo todo o possível para “formar um sistema de segurança igualitário e indivisível”. E é exatamente isso que enlouquece totalmente as elites imperiais hegemônicas.
“A oferta que não pode ser recusada” cai por terra
A iminente justaposição da CICA, da OCX e da UEEA é um outro exemplo de como as peças do complexo quebra-cabeças eurasiano vêm-se juntando.
A Turquia e a Arábia Saudita – em tese fortes aliadas militares do Império – estão ansiosas para se juntarem à OCX, que recentemente aceitou o Irã como membro pleno.
Isso explica a escolha geopolítica de Ancara e Riad, de vigoroso repúdio à ofensiva imperial de russofobia-sinofobia.
Erdogan, na qualidade de observador na recente cúpula da OCX realizada em Samarcanda, enviou essa exata mensagem. A OCX vem rapidamente alcançando o ponto em que talvez venhamos a ter, sentados à mesma mesa e tomando importantes decisões consensuais, não apenas os “RIC”s (Rússia, Índia, China) nos BRICS (a serem em breve ampliados para BRICS+) mas também aqueles que podem ser vistos como os principais atores entre os países muçulmanos: Irã, Paquistão, Turquia, Arábia Saudita, Egito e Qatar.
Esse processo atualmente em curso, não sem sofrer sérias ameaças, demonstra a intenção conjunta da Rússia e da China de incorporar as terras do Islã como parceiras estratégicas de importância essencial na construção de um mundo multipolar pós-ocidental. Podemos chamar a isso de uma islamização branda da multipolaridade.
Não é de admirar que o eixo anglo-americano esteja absolutamente petrificado.
Vamos agora a uma ilustração gráfica de tudo o que foi dito acima – a maneira como o jogo vem sendo conduzido nos mercados de energia: a já lendária reunião da Opec+ realizada em Viena na semana passada.
Uma mudança tectônica na geopolítica já veio embutida na decisão – coletiva – de cortar a produção de petróleo em dois milhões de barris diários.
O Ministério das Relações Exteriores saudita publicou uma nota muito diplomática contendo uma informação estarrecedora para aqueles capazes de ler nas entrelinhas.
Para todos os fins práticos, o combo por trás do ledor de teleprompter de Washington havia feito uma ameaça caracteristicamente mafiosa, de suspender a “proteção” a Riad caso a decisão sobre os cortes na produção de petróleo fosse tomada antes das eleições de meio de mandato dos Estados Unidos.
Só que, desta vez, a “oferta que não pode ser recusada” não funcionou. A OPEC+ tomou uma decisão coletiva liderada pela Rússia, Arábia Saudita e UEA.
Depois do encontro altamente cordial entre Putin e Mohammed bin Salman (MBS), coube a Putin receber o Presidente Sheikh Zayed da União dos Emirados Árabes – ou MBZ, o mentor de MBS – no espetacular palácio de Konstantinovsky, em São Petersburgo, que data dos tempos de Pedro o Grande.
Ocorreu ali uma espécie de celebração informal de como a OPEC+ havia provocado, com uma única jogada, um debacle estratégico para a superpotência no que se trata da geopolítica do petróleo, que o Império controlava há um século.
Todos se lembram, depois do bombardeio, invasão e ocupação do Iraque, em 2003, que os neocons se gabavam de serem agora “a nova OPEC”.
Bem, não é mais assim. E a jogada tinha que vir dos russos e dos “aliados” dos Estados Unidos no Golfo Pérsico, quando todos esperavam que isso viesse a acontecer no dia em que uma delegação chinesa aterrissasse em Riad e pedisse que toda a energia que lhes era necessária fosse paga em yuans.
A OPEC+ desmontou o blefe americano e deixou a superpotência na mão. Então, o que ela vai fazer para “punir” Riad e Abu Dhabi? Chamar o CENTCOM no Qatar e em Bahrain para mobilizar seus porta-aviões e desencadear uma mudança de regime?
O que é certo é que os straussianos/neocons dementes, que são quem dá as cartas em Washington, irão dobrar suas apostas na guerra híbrida.
A arte de “disseminar instabilidade”
Em São Petersburgo, ao se dirigir a MBZ, Putin deixou claro que sua OPEC+ – liderada pela Rússia, Arábia Saudita e pela UEA – está agora acertando o passo para “estabilizar os mercados globais de energia”, para que os consumidores e fornecedores “sintam-se calmos, estáveis e confiantes” e que a oferta e a demanda “sejam equilibradas”.
No setor do gás, na Semana de Energia da Rússia, o CEO da Gazprom, Alexey Miller, deixou claro que a Rússia talvez ainda venha a “salvar” a Europa de um buraco negro energético.
O Nord Stream (NS) e o Nord Stream 2 (NS2) podem voltar a funcionar: mas todos os obstáculos políticos devem ser removidos antes do início dos trabalhos de reparos nos gasodutos.
E quanto ao Oeste Asiático, Miller afirmou que acréscimos ao Turk Stream já foram planejados, para a grande alegria de Ancara, a quem interessa se tornar um pólo de energia.
Paralelamente, é absolutamente claro que a desesperada jogada do G7, de impor um teto ao preço do petróleo – que significa a extensão do uso das sanções como arma a todo o mercado global de energia – é uma proposta fracassada.
Pouco antes de um mês antes de receber o G20 em Bali, o Ministro das Finanças indonésio, Sri Mulyani Indrawati, não poderia ter sido mais claro: “Quando os Estados Unidos impõem sanções usando instrumentos econômicos, eles estão criando um precedente para qualquer coisa”, disseminando instabilidade não apenas para a Indonésia, mas para todos os outros países”.
Enquanto isso, todos os países de maioria muçulmana vêm prestando muita atenção à Rússia. A parceria estratégica Rússia-Irã avança agora paralelamente à entente Rússia-Arábia Saudita, sendo ambos os países importantes vetores de multipolaridade.
Em um futuro próximo, todos esses vetores fatalmente irão se unir naquilo que, idealmente, deverá ser uma supra-organização capaz de administrar o andar de cima do século XXI: a integração eurasiana.
Tradução de Patricia Zimbres
Fonte: 247