H. Arendt: um julgamento político em Jerusalém

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Por Luciana Garcia de Oliveira.

Ainda em cartaz, ‘Hannah Arendt’ foi dirigido por Margarethe Von Trotta, uma das diretoras mais reconhecidas do Novo Cinema Alemão, pertencente à mesma geração que revelou Wim Wenders e Volker Schlondorff. Foco está em um episódio crucial na vida de Hannah – sua viagem a Israel para cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann.

Hannah Arendt, considerada como uma das mais importantes pensadoras do século XX, possui uma história de vida que se confunde com as suas obras mais notáveis, como ‘As Origens do Totalitarismo’, ‘Homens em tempos sombrios’ e, sobretudo, ‘Eichmann em Jerusalém – relatos sobre a banalidade do mal’. Foi exatamente por isso que o filme, dirigido por Margarethe von Trotta, priorizou parte da vida da professora e filósofa enquanto correspondente da revista ‘New Yorker’ em Jerusalém, durante o julgamento do nazista Otto Adolf Eichmann no Tribunal de Israel, em 1960.

Antes de ser instaurado o tribunal em Jerusalém, o sequestro de Eichmann em Buenos Aires, em maio de 1960, feito pelo serviço secreto de Israel, Mossad, é descrito por muitos juristas como um ato de violência contra a Argentina, isso porque o ato em si representou uma violação à soberania da Argentina, do ponto de vista do Direito Internacional. É possível visualizar alguns debates acerca da legalidade do Tribunal de Israel, entre os professores alemães e o seu marido, Heinrich, que, assim como ela, refugiou-se nos Estados Unidos na década de 1950.

E, mesmo não tendo formação jornalística, foi a partir de seus relatos sobre as diversas sessões do julgamento que foram suscitadas reflexões históricas, filosóficas e jurídicas, como noções de culpa e de responsabilidade no Estado burocrático moderno. Além das análises acerca do holocausto nazista e que a tragédia serviu para reformar o conceito usual de soberania e as relações entre os Estados.

Na obra, Arendt relatou os esforços do juiz Landau para evitar que o julgamento se tornasse um episódio sensacionalista, como fora o comportamento, desde o início, adotado pelo promotor frente ao auditório lotado. Tanto no livro como no filme, por sua vez, foi demonstrado que as pessoas presentes se posicionavam como se fossem assistir a um espetáculo (semelhante ao julgamento de Nuremberg), só que dessa vez a preocupação central seria tão somente a tragédia do judaísmo como um todo. Muito embora os crimes cometidos por Eichmann não tivessem sido somente voltados contra o povo judeu, mesmo assim o promotor em seu discurso de abertura não se refutou em dizer: “não fazemos distinções étnicas” (ARENDT, p. 16).

Era acreditado, no entanto, que somente por meio de um tribunal judeu se poderia fazer justiça de forma concreta. Por isso, a hostilidade quase que generalizada em Israel refrente à possibilidade de instauração de uma Corte Internacional a qual pudesse julgar devidamente Otto Adolf Eichmann pelos crimes contra a humanidade e não pelos crimes “contra o povo judeu”, conforme foi largamente mencionado.

Ao longo dos trabalhos no julgamento, houve uma demasiada exposição de detalhes violentos, como o fato de muitas vítimas terem de cavar as suas próprias valas para, em seguida, posicionar-se e serem imediatamente fuziladas. Mesmo diante de tantas atrocidades apresentadas “ao público”, a defesa aparentemente teria preferido que o réu se declarasse inocente, com base em que Eichmann não havia feito nada de errado, uma vez que todas aquelas acusações perpetradas não poderia ser considerado como sendo crimes, mas “atos de Estado”.

Apesar de todos os protestos, Eichmann alegava que a acusação de assassinato estaria equivocada, uma vez que, segundo ele, nunca havia matado nenhum ser humano. Assim, só poderia ser acusado de “ajudar a assistir” toda a aniquilação do que, para ele, foi “um dos maiores crimes da história da humanidade”. E, independentemente dos fatos então apresentados em pleno tribunal, a verdade era que Eichmann iria ser enforcado pelos fatos que já estavam estabelecidos.

Por outra parte, Hannah Arendt levanta algumas considerações importantes, como o fato de o acusado ter sido empregado no transporte e não diretamente no extermínio. Assim, Eichmann realmente sabia o que estava fazendo? Além disso, outra questão não poderia da mesma forma ser omitida: ele seria responsável para julgar a enormidade de seus atos?

O auge do espetáculo no julgamento, segundo a obra, foi o momento em que a acusação chamou testemunha por testemunha para narrar suas impressões pessoais sobre o episódio do levante do gueto de Varsóvia e outras tentativas semelhantes em Vilma e Kovno (assuntos pelos quais Arendt fez questão de enfatizar que não havia nenhuma relação com os crimes do acusado).

No filme, a intenção política do governo israelense foi nitidamente demonstrada, ao apresentar toda a resistência ao Reich, como sendo unicamente proveniente do movimento sionista. No entanto, a obra detalha que essas intenções não foram de fato bem sucedidas, uma vez que todas as testemunhas arroladas eram sinceras ao dizer à corte que o papel da resistência não deveria de maneira nenhuma ser distinguida entre sionistas e não-sionistas, mas entre povo organizado e desorganizado.

Outra circunstância no julgamento, com destaque na obra e no filme, foi o momento que se apresentou uma testemunha que aceitou corajosamente relatar sobre a relação de cooperação entre os governantes nazistas e alguns líderes judeus, o que impulsionou sérios incidentes na plateia, como algumas manifestações em voz alta que fizeram com que a sessão fosse interrompida por alguns momentos.

Alguns depoimento testemunhais apresentados no filme são bastante semelhante a um outro caso, apresentado na obra, em um dado momento do julgamento em que é apresentada a única testemunha alemã (não judia), o pastor Grüber, a qual pertencia à um grupo numericamente pequeno de indivíduos que se opuseram a Hitler. Segundo as palavras de Arendt, seu testemunho foi extremamente vago, e ele já não se lembrava de quando havia falado com Eichmann. Um dos poucos instantes que se recordava foi o momento que havia viajado à Suíça durante a guerra, com o intuito de contar aos seus amigos cristãos sobre a grave situação da Alemanha e insistir para que houvesse mais oportunidade de imigração.

O testemunho do pastor Grüber, em suma, não contribuiu em praticamente nada para o significado legal e histórico do julgamento. Em seu depoimento, demonstrou estar cheio de preconceitos sobre Eichmann, denotado em algumas expressões como: ele era como um “bloco de gelo”, como “mármore”, um “Landsknechtsnatur”, “um ciclista” (expressão idiomática alemã para alguém que abaixa a cabeça para seus superiores e chuta seus subordinados). Tais declarações e interpretações normalmente seriam descartadas em qualquer tribunal, porém em Jerusalém tiveram grande relevância (ARENDT, p. 147).

Diante das alegações, a defesa não perdeu a oportunidade de formular algumas questões pertinentes: “O senhor tentou influenciá-lo? Tentou, como religioso, apelar para os sentimentos dele, fazer um sermão para ele e lhe dizer que sua conduta era contrária à moralidade? (ARENDT, p. 148).

O pastor inquirido não havia feito nada disso, continuou, por sua vez, expressando-se com clichês, sem nenhuma relação com a realidade daquela situação. Por meio do depoimento do pastor Grüber, segundo Arendt, mais parecia que buscava a isenção do sofrimento para algumas ‘categorias’ de judeus, considerados bem estabelecidos, como foi o caso dos judeus alemães (acima dos judeus poloneses) e judeus veteranos de guerra (acima dos judeus comuns). O que, para ela, fora o começo do grande colapso da respeitável comunidade judaica até então.

Inevitavelmente e, muito devidamente à grande repercussão da obra ‘Eichmann em Jerusalém’, de acordo com o filme, Hannah Arendt sofre muitas retaliações da opinião pública internacional, na comunidade judaica nos Estados Unidos, do Movimento Sionista da Europa e de seu círculo de amizades mais próximas. Recebe uma grande quantidade de cartas inconformadas com o seu texto, acusam de “sair em defesa de Eichmann”.

Muito além dos leitores incomodados, o conselho da universidade em que lecionava passa a pressioná-la a deixar o cargo, diante da má reputação instalada. Ainda, alguns líderes sionistas europeus viajam aos Estados Unidos na tentativa de interromper a impressão do livro sobre o julgamento em Jerusalém. “Vocês proíbem livros e pedem para eu ter bom senso?”, indaga, inconformada com a perseguição, de uma análise política e acadêmica de um julgamento de um indivíduo que, para ela, “era uma pessoa assustadoramente normal”.

O filme soube retratar o grande legado da vasta obra de Hannah Arendt resumida na seguinte expressão: “tentar entender não quer dizer perdoar”. Somente a compreensão dos chamados “homens supérfluos” que se poderá evitar, ou ao menos amenizar, a extensão da “banalidade do mal” nas mais diversas sociedades.

Texto originalmente publicado no Carta Maior

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