MK Bhadrakumar, Indian Punchline. Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu.
O mais recente movimento da Arábia Saudita, que incluiu mais grupos em sua lista de “organizações terroristas”, pode parecer parte de algum novo pensamento em Riad, para livrar-se de seus velhos laços com grupos extremistas; na realidade, está começando um novo capítulo da política no Oriente Médio. Em particular, a inclusão da Fraternidade Muçulmana e do movimento Houthi do Iêmen, na “lista” de vigilância saudita, é muito visivelmente baseada em considerações políticas, muito mais do que motivada por alguma ameaça de segurança.
O desafio imposto pela Fraternidade é sobretudo ideológico e político. A atratividade do grupo político transnacional espalha-se entre a classe média letrada saudita e o regime vê, aí, um perigo existencial. Curiosamente a Fraternidade está usando o Qatar como base de operações (desde depois do golpe no Egito, ano passado), para disseminar sua mensagem política para outros estados árabes do Golfo. Criaram-se por isso tensões nas relações sauditas-qataris, mas Doha não deu atenção às repetidas demandas, por Riad, para que cercasse os Irmãos.
Na 4ª-feira passada (26/2/2014), em movimento coordenado, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrain retiraram de Doha os seus embaixadores, em protesto contra o apoio do Qatar à Fraternidade Muçulmana. Os qataris manifestaram desapontamento, mas mais nada; e seguiram adiante. Mas não há dúvidas de que surgiu uma grave divisão dentro do Conselho de Cooperação do Golfo, que pode vir a revelar-se letal para a própria existência, que já dura 33 anos, do grupamento.
Entrementes, Omã e Kuwait dissociaram-se do movimento dos sauditas, de retirar os embaixadores. Mas não se veem sinais de que esses dois países estejam interessados em acompanhar o ataque dos sauditas contra os Irmãos. Essa é a mais recente evidência de que a capacidade saudita para comandar as decisões dentro do CCG está corroída. As antigas tensões entre sauditas e qataris, que já vêm de há um século, tomaram nova direção com o advento da Primavera Árabe. O Qatar identifica-se com o programa político da Fraternidade, para a transformação democrática do Oriente Médio.
Nisso, tem um aliado no atual governo da Turquia do primeiro-ministro, Recep Erdogan. Não surpreendentemente, a junta militar que governa o Egito já rebaixou os laços diplomáticos do Cairo com Ankara e Doha – o que não parece ter abalado os dois países, que permanecem convencidos de que estão do lado certo da história. Assim também, o movimento Houthi no Iêmen é essencialmente movimento de libertação nacional e é, mais uma, ameaça política, para a Arábia Saudita; as credenciais dos houthis como “grupo terrorista” são difíceis de comprovar.
Os houthis são conectados a uma plataforma que exige que Riad devolva territórios do Iêmen, fabulosamente ricos em petróleo, que a Arábia Saudita anexou em 1934, e que são contíguos ao território tradicional dos houthis. É claro que a Arábia Saudita não devolverá aqueles fantásticos campos de petróleo. Agora, com o advento da Primavera Árabe no Iêmen, os houthis identificaram-se com as aspirações democráticas do povo. De fato, o Qatar apoia os houthis (e o Irã também é simpático ao grupo). A ameaça comum, que liga os Irmãos (que são sunitas) aos Houthis (que são xiitas) é que ambos são movimentos progressistas com extensas e profundas raízes de apoio popular de base, que pregam princípios democráticos e tolerância política; e ambos foram vítimas de repressão pelo estado.
Pode-se dizer que o que tem de ser olhado de perto e examinado é o passado apoio que a Arábia Saudita deu a grupos salafistas e ao Al Islah no Iêmen afiliado da al-Qaeda. De fato, os houthis efetivamente resistiram contra esses, sim, grupos terroristas. Logicamente a Arábia Saudita aumentará, agora, a pressão contra o Qatar. Talvez classifique o Qatar como “estado patrocinador de terroristas”? Riad pode esfriar as relações com o Qatar. Mas, seja como for, o Qatar não pode ser facilmente isolado.
O Qatar é o país mais rico do mundo em termos de riqueza per capita e mantém política externa pragmática, que se alinha com os EUA (e às vezes negocia abertamente com Israel), mas que também cuida de manter boas relações com o Irã e com o Hezbollah no Líbano. O Comando Central dos EUA está baseado no Qatar, o que não impede o Irã de manter contatos com Doha (e vice-versa). Com a aproximação da Copa do Mundo da FIFA de 2022, as frustrações sauditas só crescerão. Qatar, como país anfitrião, espera usar o evento para integrar-se ainda mais à comunidade internacional. E mobilizará tudo que o dinheiro possa comprar.
Também nisso o Qatar agarra-se à modernidade como peixe às águas; em comparação, a Arábia Saudita parece poça de água podre. Mas as ambições do Qatar permanecem como enigma, envoltas em mistério. Como explicar as afinidades do Qatar com a Fraternidade e com os houthis? A verdade nua e crua é que ambos, os Irmãos e os Houthis, são perigo existencial aos olhos da família real saudita. Mas o Qatar não é exatamente uma pujante democracia.
Para entender paradoxos, às vezes, é útil remexer na história e recordar, nesse caso, que, em 1913, o fundador do moderno estado saudita, Abdul Aziz, tomou a fatídica decisão de ocupar o Qatar e anexá-lo à província Ahsa da Arábia Saudita; foi necessária imensa pressão, pelo então patrão imperial britânico por dois anos, para dissuadir o saudita de sua intenção, e convencê-lo a, em vez da anexação, fazer o reconhecimento formal das fronteiras do Qatar.
Mesmo assim, muitos anos depois, já em 1965, Riad usou forças militares para tomar do Qatar o posto de fronteira de al-Khafous. E, claro, o Qatar fez muito barulho para expor o papel dos sauditas como articuladores de um golpe militar abortado, em 1995. Como tantas vezes acontece, há memórias históricas que simplesmente se recusam a morrer e permanecem aninhadas na consciência dos povos.
É surpreendente MK Bhadrakumar chamar de “moderada” a irmandade muçulmana, que instituiu uma constituição islâmica no Egito, apoiou a destruição da infra estrutura e o massacre da população síria, e está por trás dos surtos de concentração de poder do governo Erdogan na Turquia. Se o autor se refere à uma moderação comparativa ao governo saudita, de fato não há, pois tal governo é um monarquia absolutista, enquanto que a irmandade muçulmana tem uma fachada de partido moderado, adequada à sua aceitação em ambientes minimamente democráticos. Mas tal fachada diz pouco sobre suas reais pretensões.