Se o sistema político e o aparelho de Estado cazaque estão majoritariamente sob o controle de oligarcas nacionais e tribais, o território econômico implica em posição radicalmente inversa.
por Bruno Beaklini
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A crise no Cazaquistão nos apresenta um paradoxo na análise. Por um lado, é impossível desenvolver uma opinião qualificada sem levar em conta os fatores de política doméstica e a disputa intraoligárquica. Tampouco é factível analisar esta crise sem colocar na balança os elementos do cenário complexo regional. Se o sistema político e o aparelho de Estado cazaque estão majoritariamente sob o controle de oligarcas nacionais e tribais, o território econômico implica em posição radicalmente inversa. Neste texto, apresentamos uma abordagem compreensiva buscando a complexidade necessária para uma análise responsável e não ocidentalizada.
A revolta e a reação do governo Tokayev
No dia 02 de janeiro protestos explodiram na cidade de Zhanaozen, em função do preço do gás liquefeito (LGP), principal fonte de energia doméstica do país. Apesar de ser um grande produtor de petróleo e derivados, os preços internos e a inflação galopante acentuaram a desigualdade tendo como mola propulsora o custo deste bem de primeira necessidade. Em 06 de janeiro o presidente Kassym-Jomart Tokayev autorizou o emprego de força letal e denominou a operação repressiva como contra-terrorista.
Tropas russas, totalizando um efetivo de mais de 2500 militares, foram requisitadas pelo governo cazaque. Junto das forças policiais e guarda nacional, “estabilizaram” a situação, coibindo o dano ao patrimônio, cessando a queima de automóveis e a tentativa de interdição no aeroporto de Almaty; ex-capital, centro financeiro e maior cidade do país.
Segundo o ministro do interior do gabinete de Tokayev, Erlan Turgumbayev, o epicentro da rebelião se deu na mais populosa cidade do país. Nesta localidade, mais de 300 policiais e guardas nacionais teriam sido feridos, sendo oito mortos. O total de presos quando da escrita deste texto é da ordem de 5135 pessoas e 164 cidadãos mortos pelas forças repressivas.
A disputa política também motivou a revolta
Inicialmente motivados pelo preço do combustível (gás liquefeito, LGP), passando pela revolta contra a continuidade dos postos-chave nas mãos de aliados do ex-presidente, a rebelião sofre suspeita de ter sido insuflada por agentes externos. Pela “lógica”, operadores da OTAN de forma direta ou indireta teriam se somado às legítimas demandas da população. Um dos passos do governo foi afastar dois elementos de confiança do ex-presidente e até então a pessoa mais poderosa do país, Nursultan Nazarbayev.
As defecções continuaram com a demissão do seu ex-primeiro ministro Askar Mamin e a nomeação de Alikhan Smailov como provisório. A ideia do governo que assumira em 2019 era satisfazer a população, revendo o aumento do combustível e se afastando da herança política de Nazarbayev.
Uma das teses para a rebelião interna, além do típico conflito distributivo, é somar o problema da desigualdade a questão dos vínculos familiares ou de clãs. Tomando em consideração a tragédia do sistema político sectário do Líbano e a eterna tensão de redes de tipo ergenekon na Turquia, essa possibilidade é perfeitamente plausível. As tradições túrquicas e mongólicas na Ásia Central podem remontar ao sistema de chingisismo, incluindo genealogia e ancestralidade.
Interessante observar que tanto o ex-presidente que criou uma capital com seu nome como o atual pertencem ao todo poderoso Nur Otan, Partido da Terra Mãe (ou Terra Natal), controlando 80% do parlamento e evidentemente os postos-chave no aparelho de Estado. Tokayev também procede da Elder Zhuz, a maior das confederações tribais do país, com laços de lealdades e indicações para controle de recursos e ocupações. Como a Zhuze majoritária domina os recursos de hidrocarbonetos oriundos majoritariamente da costa do Mas Cáspio, onde habita a Zhuze (horda nômade) minoritária, a exploração econômica de petróleo e derivados é vista como mais um fator de descontentamento e injustiça de oportunidades.
Nazarbayev propositadamente se confunde e mistura com a lenda fundacional do país, Karasaj Altynay-uly – conhecido como Karasaj Batyr – oriundo da tribo Shaprashty, parte do clã Yeskozha, considerada a primeira linha de defesa da estepe. O mais longevo governante pós-soviético se autodenomina o “líder da nação”, e tem nos seus protegidos uma capacidade de mobilização política, econômica e religiosa que de fato, por pouco não levou a uma derrubada do atual governo. As manobras de Samit Abish (ex-diretor do KNB) e de seu irmão, Kayrat Satyboldy – uma mescla de líder empresarial e incentivador de uma estreita visão do Islã – quase resultou em vitória sectária e golpe de Estado.
O Cazaquistão é país membro da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO), estrutura securitária eurasiática liderada pela Rússia e que conta com a presença da Armênia, Bielorússia, Quirguistão e Tadjiquistão. Foi a partir deste tratado formal que o governo em Nursultan (antiga Astana), requisitou e obteve a presença de efetivos militares russos.
A temporalidade da revolta cazaque foi “perfeita” se a meta fosse deixar o Kremlin com dois flancos abertos simultaneamente. A crise na Ucrânia continua com a constante ameaça da OTAN fazer deste país um membro efetivo da aliança liderada pelos EUA. Para o governo de Vladimir Putin, a estrutura do Tratado de Segurança Coletiva opera como uma excelente projeção de poder, garantindo tanto a presença russa em países da antiga União Soviética, como equilibrando o jogo de complementaridade e alguma concorrência com a China.
Podemos trazer como hipótese agravante na dimensão internacional, o papel de difusão do oligarca opositor cazaque – vivendo entre a França e Kiev – Muchtar Ablyazov. O ex-presidente do banco BTA é o epicentro da oposição exterior e certamente incide sobre parte da revolta. Como Ablyzaov se opõe tanto a Nazarbayev como a Tokayev, o operador da fraude de mais de 5 bilhões de dólares e também fundador do partido Escolha Democrática seria mais uma opção alinhada com a OTAN e EUA do que necessariamente uma alternativa de poder real no país.
A complexidade do Cazaquistão
É preciso reconhecer o Cazaquistão como pivô da segurança energética da Ásia Central e quiçá de toda a expansão da economia asiática. Outro fato inequívoco é que nenhuma análise unilateral, ocidentalizada ou preconceituosamente orientalista vai dar conta de interpretar as bases desta revolta e das disputas domésticas. O destino do país é fruto de um arranjo múltiplo e delicado, onde incide pressão externa, alianças político-militares rivais, disputa dentro da oligarquia pós-soviética e intertribal, além de causas justas como desenvolvimento e distribuição de renda.
Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini), militante socialista libertário de origem árabe-brasileira, cientista político e professor de relações internacionais e jornalismo. Escreve semanalmente para o MEMO e tem seus textos publicados regularmente em portais como IHU, GGN, Brasil de Fato, Repórter Popular, Semana On, El Coyote, Blog de Canhota, Brasil de Fato, Fórum, Outras Palavras, Brasil Debate e artigos especiais na Carta Maior. Tem presença frequente em rádios latino-americanas e de língua espanhola, além de participação em entrevistas para Hispan TV, Press TV, RT e Radio Sputnik. Editor dos canais do portal Estratégia & Análise.