Nos 71 anos da catástrofe contínua, a Palestina resiste para não desaparecer

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Seria lógico afirmar que os direitos nacionais do povo palestino nunca estiveram tão ameaçados. Trump reconheceu Jerusalém como a capital de Israel, a Lei do Estado-Nação desvelou o apartheid a quem ainda não o via, Netanyahu foi reeleito prometendo mais colônias e as potências seguem negligentes diante do asfixiante cerco a Gaza e dos crimes cotidianos na Palestina ocupada, apelando por um desfecho negociado, como se tratassem de um conflito cujo fim depende da “vontade das partes”. Mas nos 71 anos da Nakba, sabemos: este é o projeto e nenhum acordo mediado pelos EUA corrigiria tal tragédia.

Por Moara Crivelente*

Se consolidada, a solução final de Trump seria talvez o último prego no caixão da chamada solução de dois estados, ainda considerada o consenso global para o “fim do conflito”, pendente do estabelecimento de um estado palestino independente. Donald Trump delegou ao genro, Jared Kushner, porta-voz do lobby sionista no governo, o projeto do acordo que ninguém poderia recusar. No linguajar do magnata que gere uma nação, um negócio imperdível, o “acordo do século”, uma surpresa.

Mas suas intenções há tempos estão escancaradas. Na prática, a continuidade da presença militar israelense em território palestino, a anexação das vastas áreas tomadas por colônias, a desmobilização das brigadas palestinas, a relativização esdrúxula do direito dos refugiados a retornar e, em suma, o estabelecimento de um Estado da Palestina inviável, recortado e desmilitarizado são alguns dos pontos já apresentados em outros intentos, inclusive do Governo Obama, em 2013-2014. Em 9 de maio, quando o Conselho de Segurança da ONU debatia a expansão das colônias israelenses, o enviado especial dos EUA para o Oriente Médio, Jason Greenblat, rechaçou o que classificou como enviesamento contra Israel, enquanto o chanceler da Palestina, Riyad Al-Maliki, denunciou os planos estadunidenses como “condições para a rendição”, cita o órgão do Partido Comunista de Israel, Maki.

A ocupação militar israelense do restante da Palestina em 1967, na sequência da Guerra de Junho, ergueu um dos entraves determinantes à solução de dois estados. A proposta de partilha aprovada pela Assembleia da ONU 20 anos antes foi injusta à partida. Com base nos planos elaborados durante a ocupação britânica para apaziguar a população, contra a vontade dos árabes, propunha-se a partilha de um território em linhas étnico-religiosas e desproporcionais entre árabes autóctones —embora a população incluísse judeus, recorde-se — e imigrante, europeia, estadunidense e de outros países, inclusive árabes, para sanar em termos essencialistas um conflito inerentemente geopolítico, instigado pelas pretensões imperialistas, primeiro do Reino Unido e da França na partilha do Levante entre si e, depois, manobrado pelos EUA.

Defendido por alguns como movimento de libertação nacional em enganosa leitura da natureza do movimento político, o sionismo implantou na Palestina mais um projeto colonial que só vingaria com base em massacres, despojo, expulsão e opressão sistemática, dada a firmeza da resistência da população agredida. Só se sustenta num regime de arquitetura securitária, política e jurídica de constante estrangulamento de uma população inteira com base em linhas racistas — um regime de apartheid. É, portanto, a sentença de catástrofe perpétua, embora a Nakba seja demarcada em 15 de maio de 1948, a seguir ao estabelecimento do Estado de Israel. Neste processo, mais de 750 mil pessoas foram obrigadas a deixar suas terras e casas, cerca de 15 mil foram massacradas e 500 vilas, destruídas, no que é amplamente denunciado como limpeza étnica, crimes perpetrados por paramilitares que logo comporiam as Forças Armadas israelenses.

O historiador pan-arabista e diplomata sírio Constantine Zureiq cunhou o termo Nakba, “catástrofe”, em árabe, já em 1948, para descrever o martírio do povo palestino, embora esses massacres não tenham data marcada. Desde o início da ocupação britânica da região — oficialmente sob o Mandato Britânico dos anos 1920 a 1947, outorgado pela Liga das Nações — há resistência, revolta e levante; os massacres acumularam-se na história, antes e depois de 15 de maio de 1948.

Hoje, além dos que resistem sob o cerco e a ocupação militar, mais de cinco milhões de palestinos lutam pela realização do seu direito a retornar às suas terras desde os campos de refugiados, na vizinhança ou no exílio mundo afora, milhares de quilômetros distantes da sua pátria. Antes mesmo da alvorada desta quarta-feira (15), cerca de 20 palestinos foram detidos na Cisjordânia durante batidas israelenses a residências e 65 ficaram feridos, segundo o Palestinian Information Center, por munição letal e bombas de gás lacrimogêneo disparadas pelas forças israelenses contra manifestantes que participam há mais de um ano da Grande Marcha de Retorno, próximo à zona de separação entre a Faixa de Gaza e Israel. E é essa a realidade que vigora na Palestina ocupada por Israel.

Da colonização à resistência

Não faltam análises dos mitos construídos para justificar a colonização sionista da Palestina. O historiador palestino Nur Masalha e os israelenses Avi Shlaim e Ilan Pappé são alguns de muitos a acessaram arquivos para expor políticas como a da “transferência” de população e sua natureza racista, criticando os eufemismos usados para promovê-las. Por exemplo, na introdução à edição em inglês do famoso livro do historiador marxista Maxime Rodinson, Israel: Estado Colonial? —precedido pelo importante artigo de 1967, Israel: Fato Colonial?, publicado em francês— Peter Baruch cita uma entrada de 1940 do diário de Joseph Weitz, que foi chefe do Departamento de Colonização da Agência Judaica e do “Comitê de Transferência” do Fundo Nacional Judaico.

Weitz escreveu: “Entre nós deve estar claro que não há espaço para ambos os povos, juntos, neste país. […] Não alcançaremos nosso objetivo de ser um povo independente com os árabes neste pequeno país. A única solução é uma Palestina, ao menos a Palestina ocidental (a oeste do Rio Jordão) sem árabes […]. E não há outra forma que não a transferência dos árabes daqui para os países; transfiramos todos eles; nenhuma vila e nenhuma tribo deve restar”. Em outras fontes a referência à Palestina aparece como Eretz Israel. Mas este é só um exemplo da forma como a política orquestrada para a expulsão dos árabes palestinos era promovida. A então premiê Golda Meir também defendia tal política, consolidando a tática de negar a existência de um povo palestino abertamente, em entrevistas a jornais como o New York Times em 1969 e no início dos anos 1970, para assim rechaçar seu direito a um estado enquanto nação.

Porque palestinos e vizinhos árabes rejeitaram uma solução vista como colonizadora e imposta por estrangeiros, sua oposição ao estabelecimento do Estado de Israel foi deturpada por sionistas como um tipo de fundamentalismo religioso e “antissemita” —numa manipulação política de um termo mais abrangente— até hoje dado como prova da responsabilidade dos palestinos pela sua opressão. Trata-se de deplorável justificativa da ocupação e da colonização da Palestina por Israel, ainda que há muito a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), reconhecida como a representante do povo palestino pela ONU ainda na década de 1970, já tenha aceitado Israel e a solução de dois estados, até mesmo negociando detalhes práticos e fundamentais para sua realização sob a pressão externa por mais e mais concessões, como no caso dos infames Acordos de Oslo da década de 1990, mediados pelos EUA. Mesmo assim, as sabotagens no terreno até destes acordos tornam a situação insustentável, patrocinada pela cumplicidade imperialista com que conta Israel.

A independência do Estado da Palestina foi declarada em 1988, no exílio, da Argélia, um ano após o início da primeira intifada. No fim de 1988 cerca de 80 países já o reconheciam. Foi um significativo avanço estratégico diante da expansão do colonialismo entranhado na Palestina por Israel em detrimento da partilha proposta pela ONU em 1947, que já repartia desproporcionalmente o território entre “judeus e árabes”. Hoje o Estado da Palestina é reconhecido por mais de 130 países, inclusive após a exitosa campanha que alcançou o reconhecimento pela Assembleia Geral das Nações Unidas como estado observador não-membro.

Entre novas conquistas na defesa da legitimidade internacional, campo em que sofre represálias brutais por parte dos EUA e de Israel, como o corte da ajuda humanitária ou do repasse dos recursos palestinos provenientes dos impostos coletados por Israel, o Estado da Palestina aderiu a diversos órgãos importantes, como a UNESCO e o Tribunal Penal Internacional —onde busca a condenação dos líderes israelenses pelos crimes de guerra cometidos no âmbito da ocupação militar e das reiteradas ofensivas que compõem repetidas catástrofes. Mais recentemente, também assumiu a presidência do Grupo dos 77, o maior bloco na ONU, estabelecido em 1964 pelos signatários da “Declaração Conjunta dos 77 Países em Desenvolvimento” emitida na primeira sessão da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês).

Entretanto, os desafios são imensos. O governo Trump compete com o de Barack Obama, que por sua vez competia com seus antecessores, no posto de patrono de Israel. O premiê israelense, Benjamin Netanyahu, vangloria-se. Embora tivesse relação mais complicada com Obama, o então presidente dos EUA esbanjava o aumento da ajuda militar estadunidense a Israel, hoje em cerca de quatro bilhões de dólares anuais, além do obsessivo bloqueio de resoluções ou outras medidas ditas “anti-Israel” —leia-se, que condenem a política israelense de colonização da Palestina ou as sistemáticas violações— no seio da ONU.

Como tratar os EUA por mediador? Este é o caixão que precisa ser selado e enterrado de vez: a farsa que, desvelada, deve deixar de ser ponderada, deve ser superada para que a luta pela libertação da Palestina avance. Israel e os EUA isolam-se exponencialmente. A Lei do Estado-Nação aprovada pelo Parlamento israelense, dando privilégios à população judaica em detrimento dos não judeus e reconhecendo o direito de autodeterminação apenas aos primeiros, foi um dos mais recentes pontos sem retorno. A crescente perseguição a defensores dos direitos humanos e do fim da ocupação, sejam palestinos, israelenses ou estrangeiros, também, assim como a anexação ilegal de Jerusalém, reconhecida por Trump, a expansão das colônias em terra roubada aos palestinos, a cada vez mais escancarada retórica e prática racista e protofascista e os reiterados massacres como forma de reprimir protestos e a resistência.

Por outro lado, enquanto movimentos diversos fazem a válida denúncia da injustiça da solução de dois estados, a proposta alternativa deixa também muito para trás. A consolidação do direito nacional do povo palestino ao seu estado não pode ser comissionada nem mesmo ao movimento de solidariedade internacional: cabe ao povo palestino decidir e há tempos o clamor mais retumbante é pela consolidação do seu estado nacional. A solução de estado único é a realidade em vigor: uma realidade brutal, opressiva, segregadora, colonialista.

Por mais atrativos e idealmente apelativos os chamados à luta por um estado democrático, secular e igualitário para os dois —ou mais— povos ali residindo, em detrimento da solução de dois estados que a potência ocupante e seus aliados imperialistas buscam enterrar em colônias e apartheid, não se pode terceirizar a decisão nem apagar toda uma trajetória que conquistou avanços às custas de tanta luta e tanto martírio. Ao movimento de solidariedade internacional cabe apoiar incondicionalmente a luta do povo palestino pela libertação.

Pelo fim da catástrofe contínua da ocupação e da colonização da Palestina por Israel – e pelo fim do apartheid em que se sustenta – lutam palestinos, israelenses e estrangeiros dedicados à construção da paz e da justiça na Palestina e em Israel. Nesta luta unitária, e não nos acordos forjados pelos EUA, está a solução.

* Moara Crivelente integra a Direção Executiva do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), é doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos e compõe a Comissão de Política e Relações Internacionais do PCdoB

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