EUA-China: jogo realmente pesado ainda nem começou

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Guerra comercial: visando liderança global, EUA e China não devem recuar

11/5/2019, Pepe Escobar, Asia Times

Comecemos pelo “longo” século 16 – o qual, como o século 21, assistiu a um processo turbulento de marquetização. Naquele momento, os Jesuítas e a Contrarreforma tentavam expandir-se pela Ásia, mas num contexto no qual a rivalidade entre as superpotências ibéricas do tempo, Espanha e Portugal, ainda vigia.

A Reforma ligou-se primeiro à talassocracia comercial holandesa – império nascido no mar, com o correspondente comercio marítimo – a partir da mais estrita propaganda do dogma religioso. O reino marítimo da Grã-Bretanha ainda ganhava tempo e preparava seu jogo. A emergência do Protestantismo avançou paralelamente à emergência do Neoconfucionismo no Leste da Ásia.

Avance a narrativa até nossos tempos turbulentos. A marquetização – renomeada para “globalização” – parece em crise. Mas não no Império do Meio, que agora investe na globalização 2.0, enfrentando a crescente rivalidade da outra superpotência, os EUA.

A talassocracia norte-americana está sendo superada pela Vingança da Terra Central [ing. the Heartland, terminologia de Mackinder], na forma da pareceria estratégica Rússia-China – parceria que vê a integração do comércio eurasiano, como manifesta pelas Novas Rotas da Seda, ou Inciativa Cinturão e Estrada (ICE), vistas como crucialmente decisiva, acima do dogma MAGA [ing. Make America Great Again, “Fazer a América Grande Outra Vez”].

Entrementes, o ressurgimento do populismo de direita no ocidente reproduz a ressurgimento do Neoconfucionismo pragmático em toda a Ásia.

ICE – principal veículo para a integração da Eurásia – jamais teria surgido sem as quatro décadas de desenvolvimento chinês, em velocidade vertiginosa.

Meus leitores mais bem informados sobre geopolítica, como o magnificamente enigmático Larchmonter, estão em sincronia com o que ouço – já há anos – em minhas conversas com os mais importantes analistas na Rússia, na China, no Irã, na Turquia e no Paquistão: depois do confuso “pivô para a Ásia” do governo Obama, a resposta do governo Trump ao surgimento da China tem sido meter todas as cunhas possíveis em todas as engrenagens à vista.

Daí a histeria em curso sobre tarifas, a ofensiva comercial, a demonização da ICE, de Made in China 2025 e da prevalência da 5G da Huawei, e todas as modalidades de táticas para perturbar, de Guerra Híbrida, das repetidas ‘questões’ sobre “liberdade de navegação” no Mar do Sul da China, ao processo acelerado de armar Taiwan.

E tudo isso devidamente empurrado por avalanche sem fim de ‘análises’ compradas para publicação nos veículos de mídia, sempre apresentando a empresa Huawei como “suspeita” ou permanentemente “não merecedora de confiança”.

Trabalhadores descarregam soja no Porto de Nantong, na província de Jiangsu. Foto: AFP

Soja da Ucrânia é descarregada no porto em Nantong, na China oriental. A soja era importada dos EUA, mas tudo mudou depois do início da guerra comercial. Foto: AFP

Do ponto de vista da hiperpotência, só pode haver um final para esse jogo: uma economia chinesa amputada, incapacitada para sempre e de preferência em estado de permanente agonia –, e com demografia desfavorável, para começar.

Onde estão nossos trabalhos?

Pausa no som e fúria, para alguns necessários detalhes precisos. Ainda que o governo Trump aplique 25% de tarifas em toda as exportações chinesas para os EUA, o FMI já projetou que haverá mínimo impacto – menos 0,55% – no PIB da Rússia. E os EUA dificilmente terão qualquer ganho, porque as super tarifas não trarão de volta aos EUA os empregos de manufatura – precisamente o que Steve Jobs disse, a eras, a Barack Obama.

O que acontece é que essas cadeias globais de suprimento serão redirecionadas para economias que oferecem vantagens comparativas em relação à China, como Vietnã, Indonésia, Bangladesh, Cambodia e Laos. Redirecionamento que já está mesmo acontecendo – acionado inclusive por empresas chinesas.

A Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) representa investimento geopolítico e financeiro massivo pela China, e também por parceiros da China; já são mais de 130 estados e territórios signatários. Pequim está usando seu imenso pool de capital para fazer a própria transição rumo a uma economia baseada no consumidor, ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento necessário da infraestrutura paneurasiana – com todos aqueles portos, ferrovias para trens de alta velocidade, fibra ótica, redes de fornecimento de energia elétrica que se expandem para a maioria das latitudes do Sul Global.

O resultado final, até 2049 – prazo para expansão da ICE –, será o advento de um mercado integrado de não menos que 4,5 bilhões de pessoas, naquele momento, com acesso a alguma cadeia chinesa de exportação de produtos high-tech e também dos mais prosaicos itens de consumo.

Quem tenha acompanhado os acertos e parafusos do milagre chinês lançado pelo Pequeno Timoneiro Deng Xiaoping em 1978 sabe que Pequim está, na essência, exportando o mesmo mecanismo que levou todos os próprios 800 milhões de chineses, num relâmpago, a se tornarem membros de uma classe média global.

Por mais que o governo Trump possa apostar na tática de “pressão máxima” para conter ou até bloquear o acesso dos chineses a todos os setores do mercado dos EUA, o que realmente conta é que o avanço da ICE saberá gerar mercados múltiplos, extra EUA, ao longo dos próximos 20 anos.

Não fazemos ‘ganha-ganha’

Não há ilusões no Zhongnanhai, assim como tampouco há ilusões em Teerã ou no Kremlin. Esses três atores top da integração da Eurásia estudaram exaustivamente o modo como Washington, nos anos 1990s, devastou a economia da Rússia pós-URSS (até que Putin, afinal, arquitetou uma recuperação); e o modo como Washington só faz tentar destruir também completamente o Irã, já há 40 anos.

Pequim, como Moscou e Teerã, sabem tudo que há para saber sobre Guerra Híbrida, que é conceito criado pela inteligência dos EUA. Sabem que o alvo estratégico crucial da Guerra Híbrida, seja qual for a tática, é gerar caos social e mudança de regime.

O caso do Brasil – um dos BRICS, como China e Rússia – foi até mais sofisticado: uma guerra Híbrida inicialmente arquitetada por espionagem da Agência de Segurança Nacional dos EUA, envolveu para guerra dita ‘jurídica’ [em que o aparelho judiciário é usado como arma de guerra] e mudança de regime [golpe] pela via eleitoral. Mas concluiu-se com ‘missão cumprida’ – o Brasil já foi reduzido ao status degradado de neocolônia dos EUA.

Não esqueçamos um antigo marinheiro, o legendário Almirante Zheng He, chinês e muçulmano, que por 30 anos, de 1405 a 1433, comandou sete expedições pelos mares até a Arábia e a África Oriental, tendo chegado a Champa, Bornéu, Java, Malacca, Sumatra, Ceilão, Calicut, Ormuz, Áden, Jeddah, Mogadiscio, Mombasa, levando toneladas de itens para comerciar (seda, porcelana, prata, algodão, instrumentos de ferro, utensílios de couro).

Essa foi a Rota Marítima da Seda original, que progrediu em paralelo com o trabalho do Imperador Yong Le, que estabeleceu uma Pax Sinica [Paz Chinesa] na Ásia – sem precisar nem de colônias nem de proselitismo religioso. Mas a dinastia Ming retraiu-se – e a China voltou à vocação agrícola de cuidar de si mesma.

Não cometerão duas vezes o mesmo erro. Mesmo sabendo que o hegemon de hoje não faz “ganha-ganha”. Preparem-se, porque o jogo realmente pesado ainda nem começou.

Traduzido por Vila Mandinga

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