14/5/2019, Pepe Escobar, Consortium News
Sucessivos governos dos EUA rasgaram em pedaços a lei internacional; atropelar o Plano de Ação Integral Conjunto (ing. JCPOA, “Acordo Nuclear com o Irã”) é só o evento mais recente. O fato de Teerã ter feito tudo que se comprometeu a fazer pelo Acordo Nuclear – evidência atestada por inspetores da ONU – não faz qualquer diferença. E no momento em que a liderança em Teerã concluiu que o tsunami de sanções dos EUA veio ainda mais feroz que antes, decidiu começar a se retirar parcialmente do acordo.
O presidente Hassan Rouhani foi bem claro: o Irã ainda não se desligou do “Acordo Nuclear”. As medidas de Teerã são legais, nos termos dos artigos 26 e 36 do JCPOA – e os funcionários europeus foram informados com antecedência. Mas está claro que a UE3 (Alemanha, França, Grã-Bretanha), grupo que sempre insistiu em seu apoio vocal ao JCPOA, deve trabalhar seriamente para aliviar o desastre econômico para o Irã, provocado pelos EUA, se Teerã ainda tiver algum incentivo para continuar cumprindo o acordo.
Rússia e China – pilares da integração da Eurásia, da qual participa o Irã – apóiam a posição de Teerã. Essa questão foi amplamente discutida em Moscou por Sergey Lavrov e Javad Zarif do Irã, talvez os dois principais ministros do Exterior, em todo o mundo.
Ao mesmo tempo, é ingenuidade política crer que os europeus, de repente, arranjarão alguma espinha dorsal.
O pressuposto confortável em Berlim, Paris e Londres era que Teerã não poderia dar-se o luxo de deixar o JCPOA, mesmo que não estivesse recebendo nenhuma das recompensas econômicas prometidas em 2015. Pois agora, para o grupo UE3 está chegando a hora da verdade.
É difícil esperar qualquer coisa significativa vinda de uma chanceler Angela Merkel debilitada, com Berlim já na alça de mira do ódio comercial de Washington; a Grã-Bretanha paralisada pelo Brexit; e um Macron imensamente impopular na França, já ameaçando impor, ele também, sanções só dele, se Teerã não concordar em limitar seu programa de mísseis balísticos. Teerã jamais permitirá inspeções em sua próspera indústria de mísseis – e, para começar, tal coisa jamais foi parte do JCPOA.
No pé em que estamos, o grupo UE3 não está comprando petróleo iraniano. Eles estão obedecendo caninamente às sanções bancárias e de petróleo/gás impostas pelos EUA – que agora se estendem aos setores manufatureiros –, sem fazer coisa alguma para se proteger dos efeitos mais danosos das sanções ilegais. E está definhando a implementação do INSTEX – sistema de compensações bancárias internacionais que substituiria o sistema SWIFT – para o comércio com o Irã. À parte “lamentarem” as sanções impostas pelos EUA, os países do grupo estão, de fato, fazendo o jogo de EUA, Israel, Arábia Saudita e Emirados; por extensão, estão jogando contra Rússia, China e Irã.
Ascensão dos Doidos Imperiais
Como Teerã de fato chutou a bola para o campo europeu, as duas opções que há para os países UE3 são terríveis. Defender com empenho significativo o JCPOA dispará resposta balística do governo Trump. Agir como poodles – curso de ação mais provável– implica estimular a loucura dos psicopatas operantes que também servem como funcionários do Império, dedicados a conseguir guerra quente contra o Irã custe o que custar: Mike Pompeo, agente a serviço dos irmãos Koch, da alta grana do petróleo; pregador evangélico tipo doido-furioso; e secretário de Estado dos EUA; e o agente pago do grupo Mujahideen-e Khalq e notório manipulador da inteligência, além de Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, John Bolton.
A manobra de gangsters de Pompeo-Bolton não é exatamente o que se possa apresentar como Realpolitik de Bismarck. Consiste em pressionar Teerã implacavelmente, até que cometa algum erro, qualquer erro, e ‘viole’ suas obrigações fixadas no JCPOA, de modo que o ‘erro’ possa ser vendido à crédula opinião pública americana como a a tal proverbial “ameaça à ordem legal”, travestida como casus belli.
Mas uma coisa, sim, a guerra econômica total dos EUA contra o Irã conseguiu: gerar perfeita unidade interna na República Islâmica. O objetivo inicial da equipe Rouhani para o JCPOA era abrir-se ao comércio ocidental (o comércio com a Ásia esteve sempre ativo), e de alguma forma reduzir o poder do IRGC, Corpo dos Guardas da Revolução Islâmica, que controla vastos setores da economia iraniana.
A guerra econômica de Washington provou que o IRGC sempre esteve certo, todo o tempo, ecoando o sentimento geopolítico super afinado do Supremo Líder Aiatolá Khamenei, que jamais se cansou de repetir que norte-americanos não são confiáveis, nunca, em tempo algum.
E, exatamente como Washington que declarou o IRGC “organização terrorista”, Teerã declarou “organização terrorista” o Comando Central dos EUA, CENTCOM.
Corretores independentes de petróleo do Golfo Persa rejeitam a idéia de que a cleptocrata Casa de Saud – de fato dirigida pelo amiguinho de Whatsapp de Jared “da Arábia” Kushner, príncipe coroado Mohammed bin Salman (MbS), príncipe herdeiro saudita – mantenha ociosa a capacidade para produzir até 2,5 milhões de barris de petróleo por dia, suficientes para substituir os 2 milhões de barris de exportações do Irã (de 3,45 milhões da produção total diária). A Casa de Saud parece mais interessada em aumentar os preços do petróleo para os seus fregueses asiáticos.
Bloqueio furado
O bloqueio do comércio de energia de Washington com o Irã está fadado ao fracasso.
China continuará comprando seus 650 mil barris por dia – e pode até comprar mais. Várias empresas chinesas comercializam tecnologia e serviços industriais para o petróleo iraniano.
Paquistão, Iraque e Turquia – todos com fronteiras com o Irã – continuarão comprando petróleo bruto de alta qualidade do Irã, servindo-se de todos os meios de pagamento (inclusive ouro) e de transporte disponíveis, formais ou informais. E a relação comercial de Bagdá com Teerã continuará a prosperar.
Dado que o sufocamento econômico não bastará, o Plano B é – o que mais seria? – a ameaça de uma guerra a quente.
Já se sabe com certeza que a informação – de fato, só boatos –, sobre supostas manobras iranianas para atacar os interesses dos EUA no Golfo foi retransmitida a Bolton pelo Mossad, na Casa Branca; o Conselheiro de Segurança Nacional israelense Meir Ben Shabbat, ‘informou’ Bolton pessoalmente.
Todos estão cientes do corolário: um “reposicionamento de ativos” (no dialeto pentagonês) – desde o deslocamento do grupo de ataque do porta-aviões USS Abraham Lincoln, aos quatro bombardeiros B-52 que aterrissam na base da Al Udeid Air no Qatar – tudo parte de um “alerta” ao Irã.
Um crescente rugido pré-guerra já engolfa o front libanês, bem como o front iraniano.
Razões para a fúria dos doidos imperiais
O PIB do Irã é semelhante ao da Tailândia e seu orçamento militar é semelhante ao de Cingapura. Provocar ensandecidamente o Irã é completo absurdo geopolítico e geoeconômico. O Irã pode ser emergente ator do Sul Global – pode facilmente ser membro do G20 –, mas de modo algum pode ser apresentado como “ameaça” aos EUA.
Mesmo assim, o Irã leva os doidos imperiais, servidores psicopatas do Império, a surtos paroxísticos de fúria, por três motivos sérios. Neocons jamais se incomodaram por a tentativa de destruir o Iraque ter custado mais de US $ 6 trilhões – além de ter sido, como foi, grave crime de guerra, desastre político e despenhadeiro econômico, tudo numa só ‘operação’. Tentar destruir o Irã custará incalculáveis trilhões a mais. Mas o problema não é esse.
A razão mais óbvia para toda a fúria irracional é o fato de a República Islâmica ser uma das poucas nações do planeta que – já a quatro décadas – desafia consistentemente o hegemon.
A segunda razão é que o Irã, assim como a Venezuela – e vivemos hoje um só front combinado de guerra – cometeu o anátema supremo de negociar energia contornando o petrodólar, a pedra fundamental da hegemonia dos EUA.
A terceira razão (invisível) é que atacar o Irã é desestruturar a emergente integração da Eurásia. Assim também, usar a espionagem da Agência de Segurança Nacional para meter o Brasil no saco foi mais um ataque à integração continental, no caso do Brasil, à integração latino-americana.
Mapa: Estreito de Ormuz
A histeria ininterrupta em torno de se o presidente Donald Trump estaria sendo empurrado à guerra contra o Irã por seus psicopatas de estimação – e diga-se a bem da verdade, Trump realmente disse ao Irã que “me telefone”, o que confunde o Grande Quadro.
Como já mostrei, um possível fechamento do Estreito de Ormuz, quaisquer que sejam os motivos, teria impacto equivalente ao impacto de vários de meteoros monstro, na economia global. O que inevitavelmente se traduziria em zero de reeleição para Trump em 2020.
Nenhum Estreito de Ormuz precisará jamais ser bloqueado, se todo o petróleo que o Irã é capaz de exportar for comprado pela China, por outros clientes asiáticos e até pela Rússia –, que poderia re-rotulá-lo. Mas Teerã não vacilaria em bloquear Ormuz se posta diante da ameaça de total estrangulamento econômico.
De acordo com um dissidente, especialista em inteligência dos EUA, “os EUA estão em clara desvantagem, porque, com o Estreito de Ormuz fechado, os EUA entrarão em colapso. Mas se os EUA conseguirem separar Rússia e Irã, afastando assim a Rússia do bloco que defende o Irã, nesse caso o Irã poderá ser atacado, e a Rússia nada terá conseguido, posto que os neoconservadores não querem détente com Rússia e China. Trump, sim, quer. Mas não há détente alguma nos planos do Estado Profundo.”
Assumindo-se que esse cenário esteja correto, os suspeitos de sempre, dentro do governo dos EUA, estão tentando atrair Putin para longe da questão do Estreito de Ormuz, ao mesmo tempo que mantêm Trump enfraquecido, com os neoconservadores dedicados em tempo integral ao business de estrangular o Irã. Difícil que Putin se deixe apanhar nessa arapuca, que não chega a ser precisamente muito brilhantemente construída.
Sem blefe
Então, o que acontece agora? O professor Mohammad Marandi, da Faculdade de Estudos Mundiais da Universidade de Teerã, oferece uma perspectiva muito sóbria:
“Depois de 60 dias, o Irã forçará ainda mais as coisas. Não me parece que os iranianos estejam blefando. Também pressionarão os sauditas e os Emirados, por meios diferentes”.
Marandi vê uma sinistra “nova escalada” à frente:
“Os iranianos estão-se preparando para a guerra com os Estados Unidos desde a invasão do Iraque em 2003. Depois do que viram na Líbia, na Síria, no Iêmen e na Venezuela, eles sabem que os americanos e os europeus são muito brutalmente agressivos. Toda a costa do Golfo Pérsico no lado iraniano e no Golfo de Omã está cheia de túneis e mísseis subterrâneos de alta tecnologia. O Golfo Pérsico está coberto de navios equipados com mísseis mar-mar altamente desenvolvidos. Se houver guerra real, todas as instalações de petróleo e gás na região serão destruídas, todos os navios-tanques serão destruídos”.
E, para Marandi, se esse espetáculo vier a se configurar, o Estreito de Ormuz passa a ser “espetáculo secundário”:
“Os norte-americanos serão expulsos do Iraque. O Iraque exporta 4 milhões de barris de petróleo/dia; essa exportação chegaria ao fim, mediante greves e outros meios. Seria catastrófico para os americanos. Seria catastrófico para o mundo – e para o Irã também. Mas os americanos simplesmente não venceriam”.
Então, como Marandi explica – e a opinião pública iraniana concorda hoje amplamente – a República Islâmica tem poder de influência, porque sabe que “os americanos não podem ir à guerra, por mais que doidos imperiais feito Pompeo e Bolton queiram o quanto queiram. É que muitos no establishment não querem”.
Teerã pode ter desenvolvido alguma estrutura modificada de MAD (Mutually Assured Destruction. Destruição Mútua Garantida) como alavanca, principalmente para obrigar MbS, aliado de Trump, a se acalmar. “Assumindo-se” – Marandi acrescenta –, “que os doidos não tenham sucesso no ‘projeto’ deles. Se forem bem-sucedidos, é guerra; mas isso, por enquanto, me parece altamente improvável.”
IMAGEM: Destróier armado com mísseis teleguiados USS Porter transita pelo Estreito de Ormuz, em maio de 2012. (Marinha dos EUA / Alex R. Forster)
Todas as opções sobre a mesa?
Nos termos da Guerra Fria 2.0, da Ásia Central ao Mediterrâneo Oriental e do Oceano Índico ao Mar Cáspio, Teerã pode contar com um conjunto de alianças formais e informais. Essas alianças não se concentram apenas no eixo Beirute-Damasco-Bagdá-Teerã-Herat, mas também incluem Turquia e Catar. E mais importante de tudo: os principais atores do tabuleiro da integração da Eurásia: Rússia e China em parceria estratégica.
Quando Zarif e Lavrov encontraram-se semana passada em Moscou, discutiram praticamente tudo: a Síria (os dois são negociadores ativos no processo de Astana, agora de Nur-Sultão), o Cáspio, o Cáucaso, a Ásia Central, a Organização de Cooperação de Xangai (da qual o Irã se tornará membro), o JCPOA e a Venezuela.
O governo Trump foi arrastado aos berros e esperneando, ao encontro de Kim Jong-Un, por causa dos testes de mísseis balísticos intercontinentais da RPDC. Kim em seguida ordenou testes extras de mísseis, porque, em suas próprias palavras citadas pela agência coreana KCNA, “paz e segurança genuínas do país só são garantidas por força física capaz de defender a soberania nacional”.
Sul Global, vigilante
A esmagadora maioria das nações do Sul Global assistem à ofensiva neoconservadora dos EUA que tenta, de fato, estrangular “o povo iraniano”, ciente, mais do que nunca, de que o Irã pode ser provocado até a de extinção, porque não conta com instrumento nuclear de dissuasão. O Corpo dos Guardas da Revolução Islâmica, IRGC, chegou à mesma conclusão.
Significaria a morte do JCPOA – e A Volta dos Mortos-vivos, com “todas as opções sobre a mesa”.
Mas então, haverá reviravoltas n’A Arte da Negociação (Demente).
E se – e é enorme “se” –, Donald Trump estiver preso, refém dos seus psicopatas de estimação?
Que fale O Negociador:
“Esperamos não ter de fazer coisa alguma em matéria de usar força militar… Podemos chegar a um acordo, um acordo justo. … A única coisa que não queremos é que eles tenham armas nucleares. Não é pedir muito. E os ajudaríamos a voltar à sua melhor forma. Hoje estão em péssima forma. Espero ansiosamente pelo dia em que possamos realmente ajudar o Irã. Nós visamos a ferir o Irã. Quero que sejam fortes e grandes e tenham uma grande economia… Não temos segredos. E eles podem ser muito, muito fortes financeiramente. Eles têm um grande potencial.”
Na sequência, outra vez, disse o Aiatolá Khamenei: “ninguém pode confiar nos norte-americanos, nunca, em tempo algum”.
Traduzido por Vila Mandinga