Hoje se sabe que a luta do povo sírio e do governo sírio mudou o mundo. Reuniu russos e chineses (BRICS) e jogou-os na frigideira ‘ocidental’. E mudou a ordem global, de unipolar para multilateral – da noite para o dia.
Se, no primeiro ano de guerra na Síria, a quantidade descomunal de jornalistas que repetiram e reforçaram as premissas das quatro falsas narrativas que adiante se discutem as tivessem contestado, criticado, investigado… talvez os mais de 250 mil sírios que morreram ainda estivessem entre nós.
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(…) Segundo a Comissão Internacional Independente da ONU de Investigação sobre a Síria, a soma de mortos do lado das Forças do governo sírio era 2.569, em março de 2012, quando o conflito completava um ano. Naquele momento, a conta da Comissão da ONU, para todas as vítimas da violência política na Síria, era 5.000 mortos.
Esses números pintavam já há quatro anos, um quadro completamente do que se conhece ainda hoje sobre os eventos na Síria. Com certeza, esses números não confirmam as características do conflito sobre o qual elaboram os jornais, televisões e jornalistas e especialistas midiáticos e manchetes. No mínimo, a ‘paridade’ no número de mortos entre os dois lados sugere que o governo sírio usou força proporcional na ação inicial para pôr fim à violência. (…)
Para os políticos norte-americanos, a “Primavera Árabe” foi oportunidade imperdível para desestabilizar governos de estados adversários no Oriente Médio. Síria, o mais importante membro árabe do Eixo da Resistência liderado pelo Irã, tornou-se o alvo número 1.
Para promover ‘mudança-de-regime’ na Síria, os temas da “Primavera Árabe” teriam de ser oportunisticamente calibrados. Para tanto, muitos sírios teriam de morrer.
No caso da Síria, foi considerado indispensável que “o ditador” se pusesse a “matar o próprio povo”. Isso feito, o resto viria na sequência.
Palavras que matam
(Palavras que roubam / Palavras que corrompem)
Na Síria, quatro narrativas chaves foram postas em circulação e re-narradas incansavelmente, ad nauseam, em todos os principais veículos da mídia-empresa ocidental, a partir de março de 2011, ganhando cada vez mais gás nos meses seguintes.
– O “ditador” está matando “o próprio povo”;
– Os protestos são “pacíficos”;
– A oposição é “desarmada”; e
– É “revolução popular”.
Governos pró-ocidente na Tunísia e no Egito acabavam de ser derrubados em rápida sucessão nos dois meses anteriores, – e o ‘quadro mental’ do que já se tornava conhecido como “Primavera Árabe”, de movimentos de base que levariam a ‘mudança-de-regime’, já existia na psique regional.
Aquelas quatro ‘narrativas’ que se haviam carregado de sentido na Tunísia e no Egito, foram então reformatadas e carregadas para deslegitimar e minar qualquer governo contra o qual elas fossem ‘miradas’.
Mas para usar essas narrativas na Síria com o pleno potencial delas, (1) os sírios teriam de tomar as ruas em números significativos [no Brasil também já tivemos essa fase; e a deliberação de ‘encher as ruas’ apareceu muito clara; de fato, nem alguém tentou disfarçar a intensa campanha de convocação às ruas que foi comandada pela mídia-empresa (NTs)]; e (2) civis teriam de morrer nas mãos de brutais forças de segurança.
Isso feito, o que viesse depois, se interessasse aos ‘organizadores’, poderia ser facilmente convertido em “revolução” pelo vastíssimo conjunto de veículos de mídia-empresa estrangeira e regional que passaria a trabalhar para implantar nas discussões, em todo o ocidente, esse discurso da “Primavera Árabe”.
Mas, na Síria, os protestos não funcionaram como haviam funcionado na Tunísia e no Egito. Naqueles primeiros poucos meses, viram-se manifestantes que se contavam às centenas – algumas vezes em milhares –, e manifestavam diferentes graus de descontentamento político. Muitos daqueles manifestantes/manifestações seguiam um padrão de incitamento que brotava das mesquitas sob influência wahhabista, nos sermões das 6ªs-feiras, ou depois de matanças locais que induziam multidões indignadas a reunir-se em funerais públicos.
Membro de uma proeminente família de Daraa explicou-me que naquele momento havia confusão sobre quem estava matando pessoas nas manifestações naquela cidade – se “o governo” ou “facções clandestinas”.
Explicou-me que, então, havia dois tipos de opinião entre os cidadãos de Daraa: “Uma, de que o governo matava mais gente para conter o movimento e forçar as pessoas a suspender os protestos e pôr fim às manifestações. A outra, de que havia facções clandestinas interessadas em continuar, porque, se não houvesse os funerais, não haveria como mobilizar multidões nas ruas.”
Com o benefício do distanciamento, examinemos essas narrativas, agora que a guerra já dura cinco anos.
Sabemos hoje que vários milhares de soldados das forças de segurança sírias foram mortos no primeiro ano, a partir de 23/11/2011. Daí portanto se sabe que a oposição esteve “armada” desde o início do conflito.
Há provas materiais (imagens) de que pistoleiros entraram na Síria, pela fronteira com o Líbano, em abril e maio de 2011. Sabe-se, de testemunhas confiáveis, que havia pistoleiros atirando contra civis em atos terroristas, e que os “protestos” não foram absolutamente “pacíficos”.
A missão de observação da Liga Árabe que trabalhou durante um mês dentro da Síria no final de 2011, relatou:
“Em Homs, Idlib e Hama, a missão de observação testemunhou atos de violência cometidos contra forças e civis que resultaram em vários mortos e feridos. Exemplos desses atos incluem bombardeamento de um ônibus civil; assassinato de oito pessoas e ferimentos em muitas, inclusive mulheres e crianças, e bombardeamento de um trem carregado de óleo diesel. Em outro incidente em Homs, foi explodido um ônibus da polícia, matando dois policiais. Um duto de combustível e algumas pontes pequenas também foram bombardeados.”
O padre Frans van der Lugt, holandês há muito tempo residente na Síria, e que for morto em Homs em abril de 2014, escreveu em janeiro de 2012:
“Nunca, desde o início, os movimentos foram absolutamente pacíficos. Desde o primeiro dia vi manifestantes armados misturados à multidão; quando atiravam, miravam primeiro contra a polícia. Muito frequentemente, a violência das forças de segurança foi reação à brutal violência daqueles manifestantes armados.”
Poucos meses antes, em setembro de 2011, o mesmo padre Franz observara:
“Desde o início houve o problema dos grupos armados, que também são parte da oposição (…). A oposição que está na rua é muito mais forte que qualquer outra oposição. E a oposição que está na rua está armada e frequentemente se vale de brutalidade e violência; na sequência, atribuem a culpa ao governo.”
Hoje se sabe também que, fosse a Síria o que fosse, lá jamais aconteceu qualquer “revolução popular”. O Exército Árabe Sírio permaneceu coeso, mesmo depois do noticiário massivo nos veículos da mídia comercial, de que teria havido deserção em massa. Centenas de milhares de sírios continuaram a fazer manifestações não noticiadas em apoio ao presidente Bashar al-Assad. As instituições do Estado e do governo e a elite empresarial permaneceram, na ampla maioria, leais a Assad. Grupos minoritários – alauítas, cristãos, curdos, drusos, xiitas e o Partido Baath, que reúne maioria de sunitas – não se uniram à oposição contra o presidente Assad. E as principais áreas urbanas onde se concentra grande parte da população síria mantiveram-se sob a proteção do Estado, com raras exceções.
Afinal de contas, “revolução democrática” genuína na Síria, nunca teria “escritórios” operacionais na Jordânia e na Turquia. Nem alguma “revolução” de algum “povo oprimido” na Síria poderia algum dia ser financiada, armada e assessorada por Qatar, Arábia Saudita, EUA, Grã-Bretanha e França.
Semear “narrativas jornalísticas” para obter vantagem geopolítica
O Manual para Forças Especiais Militares dos EUA em Guerra Não Convencional (GNC) [ing. Unconventional Warfare (UW) Manual of the US Military’s Special Forces], de 2010, ensina:
“O objetivo dos esforços da GNC [ing. UW, Unconventional Warfare] é explorar as vulnerabilidades políticas, militares, econômicas e psicológicas de uma potência hostil; para tanto, devemos desenvolver e manter forças locais de resistência que realizem os objetivos estratégicos dos EUA (…). No futuro hoje previsível, as forças dos EUA se engajarão, predominantemente em operações de Guerra Irregular (GI, ing. IW, irregular warfare).”
Telegrama secreto do Departamento de Estado dos EUA, datado de 2006, revela que o governo de Assad estava então em posição mais forte, domesticamente e regionalmente, que no ano anterior, e sugere meios para enfraquecê-lo: “Adiante, nosso resumo de vulnerabilidades potenciais e possíveis meios para explorá-las (…).” Segue-se uma lista de “vulnerabilidades” – políticas, econômicas, étnicas, sectárias, militares, psicológicas – cada “vulnerabilidade” acompanhada da sugestão de “ações” para “explorá-la”.
Tudo aí é importante. A doutrina norte-americana da guerra não convencional declara que, praticamente em todos os casos, populações de estados adversários incluem minorias ativas que respectivamente se opõem e apoiam o governo; mas, para que a organização de um “movimento de resistência” seja bem-sucedida, é preciso induzir as percepções da grande “população média não engajada”, de modo a que se decida a derrubar quem esteja no governo. Diz o manual (cito aqui, de memória, trechos que recolho de artigo que escrevi há algum tempo):
– Para converter “população média não engajada” em força de apoio à insurgência, a GNC recomenda “criar atmosfera de amplo descontentamento mediante propaganda e esforços políticos e psicológicos para desacreditar o governo.”
Com a escalada do conflito, deve-se “intensificar a propaganda: e a preparação psicológica da população para a rebelião.”
– Primeiro, deve haver “agitação” local e nacional (organização de boicotes, greves e outros esforços que sugiram forte descontentamento público. Na sequência, “infiltram-se organizadores e conselheiros estrangeiros e a propaganda vinda de fora do país (além de dinheiro, armas e equipamento).”
O nível seguinte das operações deve ser criar “organizações nacionais de frente [como o “Conselho Nacional Sírio”] e movimentos de libertação nacional [como o “Exército Sírio Livre”]” que levarão segmentos cada vez maiores da população na direção de aceitarem “violência política cada vez maior e sabotagem”; – e encorajar a orientação de “indivíduos [os Kataguiris SÃO EXATAMENTE ISSO (NTs)] ou grupos que conduzam atos de sabotagem em centros urbanos.”
Já escrevi sobre estratégias de guerra não convencional apoiada por forças de fora da Síria quando a crise completou um ano – quando as narrativas dominantes na grande mídia comercial ainda eram “ditador matando o próprio povo”, “protestos pacíficos”, “oposição desarmada” e “revolução popular”, além de “milhares de civis massacrados por forças do estado sírio”.
Onde são fabricadas essas narrativas? Todas as imagens que vimos são montagens? Ou bastou fabricar apenas algumas frases e ideias – porque a “percepção” da vasta população ‘média’, uma vez ‘modelada’, cria ela mesma o próprio momentum ‘natural’ na direção da mudança de regime?
E o que nós, que vivemos na região, fazemos com toda essa impressionante nova informação sobre como se constroem as guerras contra nós – usando nós mesmos como coturnos em (nosso) solo, a serviço de agendas que não são as nossas?
Temos de criar nosso próprio “jogo”
Nesse jogo das narrativas, há lugar para dois jogadores.
A primeira lição que se aprende é que ideias e objetivos políticos podem ser construídos, modelados, afinados e usados com alta eficácia.
A segunda jogada que derruba pedras adversárias é que temos de construir e estabelecer indústria de imprensa independente e canais de distribuição de informação, para assim disseminar nossas próprias propostas de valores, para muita gente, sem parar.
Os governos ocidentais contam hoje de um exército comicamente salafrário de jornalistas ocidentais e regionais que ganham a vida com tentar nos destruir com propaganda, dia e noite. Não precisamos igualá-los em números – e também podemos usar estratégias para deter as campanhas deles contra nós, de desinformação. Jornalistas ocidentais que repetidas vezes publicaram informação falsa e danosa, que gerou risco de vida para nós que vivemos nessa parte do mundo têm de ser impedidos de entrar nos países regionais que estejam sob ataque.
De fato, não são jornalistas – prefiro descrevê-los como combatentes políticos militantes e ‘armados’ –, e não podem ser incluídos nas liberdades asseguradas democraticamente a profissionais da informação, não só da luta política. No caso da Síria:
Se, no primeiro ano de guerra na Síria a quantidade descomunal de jornalistas que repetiram e reforçaram as premissas das quatro falsas narrativas que acima se discutiram as tivessem contestado, criticado, investigado… talvez os mais de 250 mil sírios que morreram ainda estivessem entre nós. Talvez a Síria não tivesse sido destruída e talvez não houvesse 12 milhões de sírios sem teto. Talvez sequer existisse “ISIS“.
Liberdade de expressão? Sou contra. Sou contra. Por que teríamos de garantir liberdade de expressão de objetivos que exigem a nossa morte? Por que, se os mortos somos nós?
Hoje se sabe que a luta do povo e do governo sírios mudaram o mundo. Reuniu russos e chineses (BRICS) e jogou-os na frigideira ‘ocidental’. E mudou a ordem global, de unipolar para multilateral – da noite para o dia. Também criou uma causa comum que uniu um grupo de estados chaves na nossa região e que hoje constituem a espinha dorsal de um crescente “Arco de Segurança” do Levante ao Golfo Persa. Temos hoje oportunidades imensas para reformatar o mundo e o Oriente Médio conforme nós os vemos e os desejamos. Novas fronteiras? Nós mesmos as traçaremos, cá de dentro do Oriente Médio. Terroristas? Nós os derrotaremos. ONGs? Criaremos as nossas, com cidadãos nossos e agendas nossas. Oleodutos? Nós decidiremos onde serão postos.
Mas é imprescindível começar a construir todas essas novas narrativas, antes que “o Outro” imperial corra a preencher o vácuo.
Uma palavra de precaução
A pior coisa que podemos fazer é perder tempo para ‘refutar’ ou ‘rejeitar’ essas narrativas impostas. Respostas, refutações e rejeições farão de nós os “rejeicionistas” no jogo deles. E não há como refutações e rejeições, para dar vida nova ao jogo deles. Nada disso.
O que temos de fazer é criar nosso próprio jogo narrativo – mobilizar o vocabulário nosso, carregado de significações para nós, em primeiro lugar porque é o que nos define e dá forma à nossa história e às nossas aspirações, consideradas as nossas realidades politicas, econômicas e sociais. Assim invertemos o jogo.
O invasor, ocupador, usurpador ficará com a dura missão de rejeitar e refutar e discutir a nossa versão. Que seja ele o rejeicionista, que rejeite e refute nossa narrativa, e o invasor, ocupador, usurpador trabalhará, afinal, para dar vida e fazer circular o nosso jogo.
Sharmine Narwani é uma comentarista e analista de geopolítica do Oriente Médio. Ela é ex-associada sênior College, Universidade de Oxford St. Antony e tem um mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Columbia. Sharmine é comentarista para uma ampla variedade de publicações, incluindo Al Akhbar Inglês, o New York Times, TheGuardian, Asia Times Online, Salon.com, EUA Hoje, o Huffington Post, Al Jazeera Inglês, BRICS Post e outros. Você pode segui-la no Twitter em @snarwani
(Entreouvido na Vila Vudu) No Brasil, onde reina o ‘jornalismo’ de maledicência & futrica, praticado pela mesma mídia-empresa que já foi golpista em 1964-68 e volta a ser golpista em 2016, pode-se dizer também:
“Narrativas corrompem!” e/ou “Narrativas roubam!”
[Para a mesma finalidade] No Brasil-2016, todos os políticos da oposição teriam de ser desmoralizados em bloco. De fato, dado que o golpe no Brasil também visa a atender interesses do big business e da big finance internacionais, todos os partidos e políticos teriam de ser desmoralizados, e com eles seria extinta a história dos anos de governo bem-sucedido do PT. Começou então a ‘santa cruzada’,
na qual, quanto mais empenhado na salvação ‘ética’ do Brasil sem política, por jornais e redes de TV e jornalistas, mais se revela o jornalista corrupto-corruptor.
(Entreouvido na Vila Vudu)
Ótimo texto, narrativa equivocada em relação aos fatos que ocorrem no Brasil.