31/3/2022, Pepe Escobar, Strategic Culture Foundation
“O Santo Graal nas discussões em andamento sobre um mundo multipolar, desde as cúpulas dos BRICS nos anos 2000 com Putin, Hu Jintao e Lula, sempre foi conseguir contornar a hegemonia do dólar.”
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Uma nova realidade está-se formando: o mundo unipolar vai-se tornando irrevogavelmente coisa do passado, e um mundo multipolar está tomando forma.
Foi coisa de se admirar! Dmitri Medvedev, ex-presidente russo, atlanticista[1] impenitente, atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, decidiu desligar-se totalmente das redes, e dar um show explosivo, movimento que coincidiu com Putin ter acionado a ignição de Mr. Khinzal, que provocou choque e pavor palpáveis em todo o OTANstão.
Medvedev disse que as sanções “infernais” ocidentais não só fracassaram no projeto de aleijar a Rússia, como já estão “voando de volta para o Ocidente, como bumerangue. A confiança nas moedas de reserva desfaz-se como a névoa da manhã”, e abandonar o dólar norte-americano e o euro deixou de ser fantasia: “Está chegando a era das moedas regionais”.
Afinal, acrescentou, “não importa que queiram ou não queiram, terão de negociar uma nova ordem financeira (…) E a voz decisiva estará então com os países que têm economia forte e avançada, finanças públicas saudáveis e sistema monetário confiável”.
Medvedev divulgou essa sua sucinta análise, antes mesmo do Dia D – prazo fixado nessa quinta-feira pelo Presidente Putin, após o qual só serão aceitos pagamentos em rublos, por gás russo vendido a “nações hostis”.
O G7, previsivelmente, tinha feito pose (coletiva) de “não vamos pagar”. ‘Nós’, aí, significa os quatro que não são grandes importadores de gás russos. ‘Nós’, além disso, significa o Império das Mentiras, a ditar regras. Quanto aos três que estarão em dificuldades, não são só grandes importadores, mas também são os derrotados da Segunda Guerra Mundial – Alemanha, Itália e Japão, ainda territórios ocupados de facto. A história tem o hábito de pregar peças perversas.
A negação não durou muito tempo. A Alemanha foi a primeira a dobrar os joelhos – mesmo antes de os industriais do Ruhr à Baviera encenarem uma revolta em massa. Scholz, o chancelerzinho, telefonou a Putin, para que lhe explicasse o óbvio: os pagamentos estão sendo convertidos em rublos porque a UE congelou as reservas cambiais da Rússia – em desacato grosseiro ao Direito internacional.
Com paciência taoísta, Putin também expressou a esperança de que sua decisão não viesse a representar deterioração nos termos contratuais para os importadores europeus. Especialistas russos e alemães que sentassem lado a lado e discutissem os novos termos.
Moscou está trabalhando em um conjunto de documentos que definem o novo acordo. Essencialmente, significa “Sem rublos, sem gás”. Os contratos tornam-se nulos e sem efeito, quando a confiança é violada. EUA e UE, com sanções unilaterais, romperam acordos perfeitamente legais. Além disso, confiscaram reservas estrangeiras de nação – nuclear – membro do G20.
As sanções unilaterais tornaram sem valor, para a Rússia, dólares e euros. Chiliques histéricos não mudarão isso. E tudo será resolvido sob os termos da Rússia. Ponto final. O Ministério das Relações Exteriores já havia advertido que a recusa de pagar em rublos pelo gás levaria a grave crise global de não-pagamentos e falências em série, no nível global, reação em cadeia infernal, de transações bloqueadas, congelamento de ativos colaterais e fechamento de linhas de crédito.
O que vai acontecer em seguida é parcialmente previsível. As empresas da UE receberão o novo conjunto de regras; terão tempo para examinar os documentos e tomar uma decisão. Os que disserem “não” serão automaticamente excluídos do fornecimento direto de gás russo – com todas as consequências político-econômicas incluídas.
Haverá concessões, é claro. Por exemplo, algumas nações da UE aceitarão usar rublos e aumentar suas aquisições de gás, para poder revender o excedente a seus vizinhos, e ter lucro. E alguns poderão também decidir comprar gás em trânsito, nas trocas de energia.
Portanto, a Rússia não está impondo ultimato algum, a ninguém. Tudo isso vai levar tempo – em processo contínuo. Também com alguma ação lateral. O Parlamento russo considera estender a exigência de pagamento em rublos a outros produtos essenciais – petróleo, metais, madeira, trigo. Tudo dependerá da voracidade coletiva dos chihuahuas da UE. Todos sabem que aquela histeria ininterrupta pode traduzir-se em ruptura colossal das cadeias de abastecimento em todo o Ocidente.
Bye-bye oligarcas
Fato é que a Rússia está jogando muito bem, embora as classes dirigentes atlanticistas (integracionistas) tenham enlouquecido totalmente. Mas continuam concentradas em lutar até matarem o último europeu, para extrair qualquer riqueza restante e palpável da UE. De fato, Moscou tem sido bastante indulgente, trabalhando com o fato de que é melhor não ter gás para aquecimento na primavera, do que no inverno.
O Banco Central russo nacionalizou as receitas de divisas estrangeiras de todos os principais exportadores. Não houve inadimplência. O rublo continua subindo – e agora está de volta aproximadamente ao mesmo nível de antes da Operação Z. A Rússia continua autossuficiente, em termos alimentares. A histeria norte-americana sobre a Rússia “isolada” é piada. Nenhum ator relevante em toda a Eurásia – para nem falar dos outros quatro BRICS e de praticamente todo o Sul Global – aceitou demonizar e/ou sancionar a Rússia [nem o Brasil!!! (Nota dos Revisores)].
Como bônus, o provavelmente último oligarca ainda capaz de influenciar movimentos em Moscou, Anatoly Chubais, desapareceu. Talvez seja outro importante golpe da história: a histeria ocidental das sanções, conseguiu desmembrar de facto a oligarquia russa – o projeto de estimação, que Putin acalenta desde 2000.
O que aí se vê é o fortalecimento do Estado russo e a consolidação da sociedade russa.
Ainda não se tem todos os fatos, mas pode-se argumentar que, depois de anos de avaliação cuidadosa, Putin optou por realmente ir às vias de fato e quebrar a espinha dorsal do Ocidente – usando aquela trifeta (blitzkrieg iminente contra o Donbass; laboratórios norte-americanos de armas biológicas; e Ucrânia trabalhando em armas nucleares) como seu casus belli.
O congelamento das reservas estrangeiras teria de ter sido previsto, especialmente porque o Banco Central Russo vinha aumentando suas reservas em papéis do Tesouros dos EUA desde novembro do ano passado.
Há então a séria possibilidade de Moscou acessar reservas estrangeiras “secretas” offshore – uma matriz complexa construída com a ajuda de infiltrados chineses.
A mudança repentina de dólares/euros para rublos foi judô geoeconômico hardcore de nível olímpico. Putin induziu o Ocidente coletivo a liberar seu demente ataque de sanções histéricas. Na sequência, usou a força do adversário contra o próprio adversário, num movimento único e rápido.
E aqui estamos todos nós, agora, tentando absorver tantos desenvolvimentos sincronizados de mudança de jogo, depois de converter em arma os ativos em dólares: rublos-rupias, com a Índia; um petroyuan saudita; cartões de duas bandeiras, Mir-Unionpay, emitidos pelos bancos russos; o sistema alternativo de compensações internacionais Rússia-Irã, o projeto da União Econômica Euroasiática, de um sistema monetário independente.
Sem mencionar o golpe de mestre do Banco Central Russo, ao fixar em 5 mil rublos o preço da grama de ouro – que já chega a US$ 60, e continua escalando.
Juntamente com o projeto “Sem Rublos, Sem Gás”, o que temos aqui é energia realmente ligada ao ouro. Os chihuahuas da União Europeia e a colônia japonesa precisarão comprar muitos rublos em ouro, ou comprar muito ouro para conseguir o seu gás. E ainda melhora.
A Rússia pode, em futuro próximo, voltar a associar o rublo ao ouro. O grama de ouro pode chegar a 2.000 rublos, 1.000 rublos, 500 rublos.
Hora de ser soberano
O Santo Graal nas discussões em andamento sobre um mundo multipolar, desde as cúpulas dos BRICS nos anos 2000 com Putin, Hu Jintao e Lula, sempre foi conseguir contornar a hegemonia do dólar. Agora aí está, está bem à frente de todo o Sul Global, como aparição benigna com sorriso de gato Cheshire: o rublo de ouro, ou rublo lastreado em petróleo, gás, minerais, exportações de commodities.
O Banco Central Russo não pratica ‘alívio quantitativo’, como faz o Fed, e não exporta inflação tóxica para o resto do planeta. A Marinha russa não apenas garante a segurança de todas as linhas marítimas russas, mas, além disso, os submarinos russos movidos a energia nuclear são capazes de aparecer por todo o planeta, sem aviso prévio.
A Rússia está muito, muito à frente, já implementando o conceito de “potência naval continental”. Em dezembro de 2015, no teatro sírio, todo o jogo estratégico mudou. A 4ª Divisão Submarina baseada no Mar Negro é a estrela do espetáculo.
As frotas navais russas podem agora empregar mísseis Kalibr num espaço que abrange Europa Oriental, Ásia Ocidental e Ásia Central. O Mar Cáspio e o Mar Negro, ligados pelo canal Don-Volga, oferecem espaço de manobra comparável ao Mediterrâneo Oriental e ao Golfo Pérsico combinados, com 6.000 km de extensão. E nem é preciso acessar águas temperadas.
Isso abrange cerca de 30 nações: a tradicional esfera de influência russa; as fronteiras históricas do império russo; e as atuais esferas de rivalidade política/energética. Não surpreende que o Departamento de Estado tenha enlouquecido completamente.
A Rússia garante o transporte marítimo através da Ásia, do Ártico e da Europa, em conjunto com a rede ferroviária da Iniciativa Rota e Franja, em toda a Eurásia.
E por último, mas não menos importante; não cutuque um Urso Nuclear.
Essencialmente, disso trata a política de poder hardcore. Medvedev não cantava vantagem, ao dizer que terminara o tempo da moeda única. O advento de uma moeda de reserva global baseada em recursos significa, em poucas palavras, que 13% do planeta não continuará a dominar os outros 87%.
É OTANstão versus Eurásia redux. Guerra Fria 2.0, 3.0, 4.0 e até mesmo 5.0. Não importa. Todas as nações do antigo Movimento Não-Alinhado (ing. NAM) estão vendo como sopram os ventos geopolíticos e geoeconômicos: o tempo para afirmar a real soberania está próximo, pois a “ordem internacional baseada em regras” beijou a lona.
Bem-vindo ao nascimento do novo sistema mundial. O Ministro das Relações Exteriores Sergei Lavrov, na China, não poderia tê-lo delineado mais claramente, após se reunir com vários homólogos de toda a Eurásia:
“Uma nova realidade está sendo formada: o mundo unipolar está-se tornando irrevogavelmente coisa do passado. E um mundo multipolar está tomando forma. É processo objetivo. É imparável. Nessa realidade, mais de uma potência “governará” – será necessário negociar entre todos os estados-chaves que hoje têm influência decisiva na economia e na política mundial. Ao mesmo tempo, percebendo a própria situação especial, esses países garantem o cumprimento dos princípios básicos da Carta das Nações Unidas, incluindo o fundamental – a igualdade de todos os Estados soberanos. Ninguém nessa Terra merece ser visto como player menor. Todos são soberanos e iguais.”*******
[1] Sobre os “Integracionistas Atlanticistas” versus “Soberanistas Eurasianos”: “Podemos chamá-los de ‘turma de Medvedev’ e ‘turma de Putin’ (16/10/2013, O longo (20 anos!) “pas de deux” de Rússia e EUA está chegando ao fim?, traduzido em Redecastorphoto (Nota dos Revisores)
Yraduzido pelo Coletivo Vila Mandinga