Pepe Escobar: Como Mianmar inclui-se nas Novas Rotas da Seda da China

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4/8/2021, Pepe Escobar, InsideOver (Tradução autorizada pelo autor)

Ninguém discute com as Tatmadaw – as Forças Armadas de Mianmar[1]. É sempre do jeito que elas querem, ou… é pé na estrada. Desde meados do século 20 os chineses compreenderam isso muito bem.

O modo como Pequim aproxima-se do labirinto de Mianmar é condicionado por quatro variáveis: gás natural; água; comércio de drogas; e os confrontos sempre violentos entre as Tatmadaw  e uma enlouquecedora colcha de retalhos de mais de 135 minorias étnicas.

Cada grupo étnico em Mianmar exibe as próprias específicas história, cultura e língua; e controla vastos territórios com todas as respectivas indústrias e milícias sérias. A maioria de 2/3 de Mianmar corresponde aos Bamar – também conhecidos como Birmaneses das Terras Baixas (ing. Lowland Burmese. Mais sobre isso, aqui. NTs). As Tatmadaw  são em grande medida um exército dos Birmaneses das Terras Baixas – em perene conflito com esse quebra-cabeças étnico gigante.

As minorias étnicas vivem sobretudo nas colinas e nas muito porosas fronteiras de selva, em Mianmar. Mianmar é dividido em sete estados – que têm nomes derivados dos sete maiores grupos étnicos: Kachin, Chin, Karenni, Karen, Mon, Shan e Rakhine. As alianças tendem a ser bem frágeis, mas os chineses, historicamente, têm-se inclinado a apoiar umas poucas delas, em sua luta contra as Tatmadaw .

O comércio de drogas em Mianmar é virtualmente uma matryoshka impenetrável – com muitos daqueles grupos conectados, pelo Triângulo Dourado, a parcerias na China, na Tailândia e no Laos e, sobretudo, competindo furiosamente uns contra outros.

Os Shan tradicionalmente usaram grandes lucros no comércio de drogas, para comprar muitas armas. Há grande número de grupos Shan que competem entre eles, entre os quais o exército do falecido muito conhecido senhor-das-drogas Khun San (mais sobre ele aqui , conhecido como o “Rei do Ópio da Mianmar”; os ex-caçadores de cabeças que compõem a tribo Wa; e um bando de chineses Kokang, que formam o exército do estado oriental Shan.

O negócio de ópio/heroína – e muito do tráfico de ya ba (anfetamina) – no Triângulo Dourado é hoje em grande parte controlado pelo muito temido Exército do Estado Wa Unido (ing. United Wa State Army): milícia de linha ultraduríssima, de 20 mil milicianos, uma das mais poderosas do planeta, completada por coleção privada de mísseis terra-ar.

E isso nos leva ao ângulo chinês – porque muitos desses potentados étnicos, de Khun Sa até Kyi Myint, codinome Zhang Zhiming, ex-líder do Partido Comunista da Mianmar, forjaram relações muito próximas com o crime organizado chinês.

Mesmo assim, o que o governo central em Mianmar tem a ver com o coração da ação no Triângulo Dourado? Não muito. As Tatmadaw  podem até atacar o estranho acordo de paz com esses atores ilegais, mas de modo geral não duram muito.

O que as Tatmadaw fizeram ao longo das últimas décadas foi como um curso intensivo de negócios – aprendendo as linhas da China pós-Mao. Assim é que evoluíram para se tornar um grande império de negócios – muito mais que simples exército.

Mianmar já estava na linha de frente quando partes do Exército de Libertação Popular na China entraram em cena. Por exemplo, a província Yunnan no sul da China foi base operacional das três principais famílias de heroína da Tríade. Assim, o primeiro passo foi a Mianmar ligada a organizações chinesas da droga como braço logístico do comércio do Triângulo de Ouro da droga. O passo seguinte mostrou a China construindo ferrovias para ligar Yunnan a Birmania/Mianmar.

A peça contígua do quebra-cabeças é petróleo-gás. Com a Total francesa começando a expandir suas explorações iniciais de petróleo e gás a partir de Rakhine – antes conhecido como estado Arakan – os chineses tiveram a visão de investir num longo oleogasoduto ligando Arakan a Yunnan. Do ponto de vista de Pequim, o que realmente interessa é esse oleogasoduto China-Mianmar, da Baía de Bengala até o sul da China – com as Tatmadaw encarregadas da segurança.

Ao mesmo tempo em que a China investe em barragens e minas de cobre, pode-se dizer que seu investimento chave em Mianmar é um novo porto de águas profundas na Baía de Bengala, com a correspondente Zona Especial de Livre Comércio. O porto de o oleogasoduto interconectam-se, formando a espinha dorsal de seu corredor Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) – Sudeste da Ásia.

E isso nos leva ao problema intratável dos Rohingya.

A absoluta prioridade da China é proteger o novo porto e Zona Especial de Livre Comércio que está em construção em Rakhine.

Por algum tempo, a renda do governo de – atualmente controlada pelas Tatmadaw – dependeu do petróleo/gás de operações em terra e offshore em Rakhine e da conectividade ferrovia/rodovia.

Os chineses, por sua parte estão em íntimo contato com o Exército Kachin e o grupo étnico Kokang. Se as coisas se complicarem, o plano é usá-lo, bem como o Exército Arakan, ativo na região, para lidar com as Tatmadaw, caso comecem a ter ideias estranhas. A preocupação dos chineses é o Corredor Iniciativa Cinturão e Estrada, e os Rohingya acabarem apanhados no meio desse jogo de poder realmente sério.

E a questão da água torna ainda mais complexo o quebra-cabeças de Mianmar. A liderança em Pequim sabe muito bem o quanto Mianmar é estratégico, com vistas a resolver o desequilíbrio hídrico crítico na China. Com 20% da população mundial, a China só conta com 7% da água doce do mundo. E 80% da água chinesa está no sul, enquanto mais de 700 milhões de chineses e 2/3 de toda a terra agricultável da China estão no norte.

A solução foi constrir 11 das maiores barragens hidrelétricas do mundo nos rios chaves que fluem na direção de vizinhos da China. E isso gerou problemas dramáticos, especialmente no Mekong, caso em que todas as regiões abaixo das barragens, em Mianmar, Laos, Tailândia e Cambodia, e Vietnã foram extremamente prejudicadas. E a questão está longe de superada: mais onze barragens serão construídas no baixo Mekong, no Laos e no Cambodia.

A relação entre Pequim e as Tatmadaw jamais foi algum mar de rosas. Sobretudo, os chineses eram vistos com muitas suspeitas no nível do Ministério das Relações Exteriores durante os anos da Liga Nacional pela Democracia [ing. National League for Democracy, NLD], enquanto a maior parte dos generais das Tatmadaw admiram a potência econômica da China. A lei imutável da diplomacia de Pequim determina a não interferência nas políticas domésticas de seus parceiros. Assim sendo, o país resistir a afirmar que o golpe militar do início desse ano não teria chegado a ser mesmo golpe militar – como argumentam as Tadmadaw.

Fatos em campo mostram que as Tatdadaw estão fazendo muito dinheiro com a o que cobram como taxas e participação como acionistas em acordos comerciais chineses, nas regiões das etnias. Ao mesmo tempo, as Tatmadaw sabem que os chineses, mesmo indiretamente, garantem apoio militar a várias milícias. E as engrenagens da droga só conseguem operar sem dificuldades em todo o Triângulo Dourado porque os chineses permitem.

Por tudo isso, o relacionamento não é fácil. Grande parte da influência chinesa em Mianmar foi contida durante o governo da Liga Nacional pela Democracia. Agora, toda a situação está num limbo. Embora Pequim jamais tire os olhos do Grande Prêmio: os projetos do corredor da Iniciativa Cinturão e Estrada não podem, em nenhum caso, ser postos em perigo, e Mianmar sempre será parte inextrincável das Novas Rotas da Seda.*******

[1] O Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, publicado pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa, e o vocabulário oficial para todos os países nos quais o Acordo Ortográfico de 1990 está em vigor, preconiza apenas a forma aportuguesada “Mianmar”, além de “Birmânia”. Sobre os sucessivos nomes que o país assumiu, ver aqui [NTs].

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

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