Pepe Escobar: Choque de Civilizações no Cazaquistão-Balanço sobre o fórum do Clube Astana

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Por Pepe Escobar

(Foto: Tass/Divulgação)

O Clube Astana vê-se agora firmemente estabelecido como uma indispensável reunião anual Leste-Oeste, tendo lugar no Grande Interior Eurasiano, o Heartland. O fórum deste ano, ocorreu na capital cazaque, a uma temperatura de menos 32 graus Celsius, e a data escolhida para sua realização coincidiu com um ponto de inflexão geopolítica que não poderia ter sido mais incandescente.

Diversas mesas-redondas foram montadas para examinar o espectro total do “megaciclo de tumulto” no qual estamos todos imersos – gerando maciços desafios a uma Eurásia cada vez mais integrada, que abriga três-quartos da população mundial e gera mais de 60 por cento do PIB global.

A mesa-redonda de estilo Star Wars reuniu uma mistura de atlanticistas, em sua maioria americanos e britânicos, e especialistas em Eurásia, da China, Rússia, Índia, Turquia e Azerbaijão. Agora, vamos direto ao ponto.

Em se tratando  de “onde estamos agora e para onde rumamos”, foi difícil superar bobagens ocidentais do tipo aquisição de lebensraum, ou espaço vital, pela Rússia, e da Cilada de Tucídides. Além disso, a mesa-redonda não conseguia reconciliar o fato de, em meio a toda a badalação sobre a “desglobalização”, Cingapura permanecer tão atraente às elites ocidentais, apesar de continuar a ser uma autocracia de fato.  .

O sempre divertido  Edward Luttwak, que atuou e continua a atuar como conselheiro para todos do Departamento de Estado dos Estados Unidos, cunhou termos icônicos como “turbocapitalismo”, criou a ideia de geoeconomia, e cria vacas na selva boliviana, mais uma vez falou sobre sua obsessão chinesa. Ele foi peremptório: o Conselho de Segurança da ONU é uma perda de tempo; todos os países próximos à China são contra a China – o que é demonstravelmente falso; e que “não há simetria entre Estados Unidos e China”.

Discutindo “o mundo à beira do abismo”,  Charles Kupchan, do Conselho de Relações Exteriores, por videoconferência, refletiu sobre a “derrota estratégica” da Rússia antes de pedir “um fim ao derramamento de sangue” – quando nunca houve conclamações desse tipo antes da tão enaltecida e fracassada contraofensiva ucraniana.

Zhao Long, do Instituto de Estudos Internacionais de Xangai, preferiu focar a “paciência estratégica chinesa, uma abordagem holística e também a China como uma das maiores vitimas da guerra por procuração na Ucrânia. Zhao Huasheng, da Universidade Fudan, acrescentou que “uma guerra às portas” só resulta em “insegurança às portas”.

Sobre a ameaça de fragmentação da economia mundial,  Sergey Afontsev, da Academia de Ciências Russa, ressaltou que Moscou reestruturou seu comércio exterior em menos de seis meses,  e como todo o mecanismo de exportação de petróleo para a Índia foi montado em apenas alguns meses.

Uma linha importante presente em todas as discussões  foi a “securitização de tudo” – e como essa perigosa interdependência só faz exacerbar os riscos de  segurança. Evan Feigenbaum, do Carnegie Endowment for International Peace, propõe que estejamos mergulhados em um choque entre integração econômica e fragmentação da segurança.

CHECAGEM DE REALIDADE SOBRE AS SANÇÕES – Damjan Krnjevic-Miskovic, da Universidade ADA de Baku, fez uma excelente apresentação sobre a lenta mas firme interconexão da Grande Ásia Central e do Afeganistão– focando a conectividade por todo o território que, de fato, é o espaço das Rotas da Seda.

Uma ponte continental está em operação – com a China construindo ferrovias ligando o país ao Cazaquistão, Quirguistão e Uzbequistão.

As vantagens do Corredor Multimodal  – ou Transcáspio, ligando a China à Europa através da Ásia Central, do Cáspio e do Sul do Cáucaso  – inevitavelmente irão se sobrepor ao Corredor de Transportes Norte-Sul (CITNS), cujos principais atores são Rússia, Irã e Índia.

Isso, idealmente, irá permitir  a integração sinergética do Sul do Cáucaso, do Oeste Asiático, da Ásia Central e do Sul da Ásia, congregando os principais atores da Organização de Cooperação de Xangai à Iniciativa Cinturão e Rota, com o Afeganistão como ponto de articulação: todo esse espaço, ressaltou Krnjevic-Miskovic, está “em vias se tornar um ator autônomo na ordem internacional”.

Uma “checagem de realidade” sobre as sanções levou a um debate sobre o uso do dólar americano como arma, no qual  Afontsev reexaminou a forma com a qual a Rússia reestruturou seu comércio externo e seu sucesso em termos de estabilidade macroeconômica, “não permitindo o surgimento de tensões internas”. Consequências: Moscou conseguiu “unir os cidadãos russos contra o Ocidente”, e houve um aumento na oferta de força de trabalho para a Federação Russa.

Zhou Bo, com quem tive conversas fascinantes nos bastidores do fórum, novamente ressaltou que, para os americanos, a amizade entre os vizinhos China e Rússia “tem que ser limitada”.

Em meio à toda a  algazarra de desacoplar e eliminar riscos, observou Bo, os americanos teimam na ficção de persuadir a China a não trabalhar contra o Ocidente – coisa que nunca foi intenção de Pequim. A China, acima de tudo, orgulha-se de pertencer ao Sul Global, focando a expansão dos BRICS: uma organização não-ocidental comprometida em praticar comércio em moedas nacionais.

No final das contas, disse Bo, o que temos, por exemplo, no Mar do Sul da China, são constantes provocações americanas que só fazem fortalecer o Exército Popular de Libertação.

Em um debate bastante animado sobre Inteligência Artificial, Thomas Cellucci, um importante consultor em comercialização de ciência e tecnologia nos governos Bush II e Obama, enfatizou a “IA ética”, a transparência nos algoritmos de IA e, acima de tudo, que ciência e tecnologia não deveriam ser envolvidas em política.

Zhou Bo, de sua parte, ressaltou as restrições americanas à IA chinesa  – apesar de a Universidade de  Tsinghua estar trabalhando conjuntamente com o  Brookings em pesquisas sobre a IE militar e em outros aspectos importantes do comando e controle militares. Quanto à União Europeia, Bo, com razão, enfatizou que ela está mais interessada em “regular a IA” do que em “criar IA”.

Moderei um debate sobre a “era da blocalização” – que, ao final, foi bastante produtivo, uma vez que houve apenas duas apresentações de especialistas: James Lindsay, do Conselho Nacional de Relações Exteriores e, mais uma vez,  Zhou Bo, o que abriu  um bom tempo para a discussão plenária. Em essência, houve um certo grau de consenso de que uma Terceira Guerra Mundial não é iminente – por enquanto; que um G-2 bipolar com Estados Unidos e China enfrentará todo o tipo de resistência por parte de Washington; e que há um longo caminho pela frente até que o yuan consiga substituir o dólar americano por toda a Eurásia.

Pode ter havido duas questões problemáticas no Clube Astana deste ano: não foram suficientes as discussões focadas especificamente no Heartland e nos “istãos” da Ásia Central, por um lado, e nas consequências de que não demorará muito até que a União Econômica Eurasiana (UEEA) e os BRICS venham a formular um mapa de percurso viável para desdolarização do comércio por toda a Eurásia, por outro.

TENSÕES FINALMENTE VÊM À TONA – A sessão plenária de encerramento, focada em “uma nova fórmula para a paz”, foi aberta pelo Primeiro-Presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, cujas memórias acabam de ser publicadas em russo (e, em breve, o serão em inglês).

Nazarbayev teve o cuidado de lembrar a todos de um ponto de importância crucial: ele foi o responsável pela desnuclearização do Cazaquistão, desmontando o que naquele tempo era o quarto arsenal nuclear do mundo,  que foi então transferido para a Rússia, em 1995.

Ele ressaltou “o colapso da antiga ordem mundial”, reiterou seu apoio ao desenvolvimento sustentável, e louvou a “transformação mais radical em cem anos de história” da Eurásia.

Essa fala preparou a cena para o debate final. O ex-primeiro-ministro espanhol José Luis Zapatero fez um apelo apaixonado pelo cessar-fogo em Gaza. E o lendário jornalista russo  Vladimir Pozner, aos quase noventa anos,  que, entre outras coisas, foi durante quatorze anos o apresentador de um popularíssimo programa de televisão sobre política no Canal 14, ofereceu sua interpretação sobre o conflito na Ucrânia.

E foi então que as mal contidas tensões vieram à tona e por fim explodiram. O catalista tinha que ser a Ucrânia.

Um atlanticista desrespeitou Pozner com um tosco ataque ad hominem.  Fui forçado a intervir na frente de todos. O debate que se seguiu foi duro: de um lado, dois russos e eu mesmo. De outro, a supremacia anglo-americana.

O que, mais uma vez, só fez confirmar que a humilhação cósmica dos   Estados Unidos/OTAN na guerra por procuração na Ucrânia será, para os atlanticistas, uma ferida para sempre incurável. O mérito vai para o Clube Astana que, mais uma vez, deixou bastante explícita essa humilhação em meio a um debate em grande parte marcado por civilidade sobre todos os aspectos das tóxicas dificuldades geopolíticas que atualmente enfrentamos.

E, não, não encontramos uma “nova fórmula para a paz”.

Tradução de Patricia Zimbres

Fonte: Brasil 247

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