1/3/2022, Fyodor A. Lukyanov, Russia in Global Affairs
“A Rússia viramos a página da cooperação com o ‘ocidente’.”
A intervenção militar da Rússia na Ucrânia marcou o fim de uma época na situação global, depois que o presidente Vladimir Putin iniciou sua ação especial, semana passada.
O impacto desse movimento será sentido nos próximos anos, mas Moscou posicionou-se para “se tornar agente de mudança fundamental para o mundo inteiro”.
A operação das Forças Armadas Russas na Ucrânia marca o fim de uma era. Começou com a queda da União Soviética e sua dissolução em 1991, quando uma estrutura bipolar bastante estável foi derrubada e substituída pelo que viria a ser conhecido como a “Ordem Mundial Liberal”. Assim se abriu caminho para que os EUA e seus aliados desempenhassem papel dominante na política internacional, centrada na ideologia universalista.
A crise manifestou-se há muito tempo, embora não tenha havido resistência significativa das grandes potências, insatisfeitas com a própria posição no novo campo de jogo político. De fato, por muito tempo (pelo menos uma década e meia), praticamente não houve oposição.
Países não ocidentais, nomeadamente China e Rússia, envidaram esforços para se integrarem na hierarquia. Pequim conseguiu a integração, e também aproveitou a situação para se firmar como jogador dominante.
Moscou não se saiu tão bem, e levou mais tempo para se ajustar à nova ordem mundial e consolidar para si um lugar respeitável nas novas fileiras.
O sistema revelou-se inflexível e instável, pois conceitualmente excluía qualquer equilíbrio de poder. Mais importante, no entanto, é que não permitiu nível suficiente de diversidade cultural e política – que é inerentemente essencial para funcionamento sustentável do mundo.
A nova ordem impôs visão de mundo uniforme, que excluía todas as outras, servindo-se de vários meios, incluindo atitudes em relação à atividade militar.
A operação russa é imagem espelhada do que os EUA e seus aliados fizeram mais de uma vez nas últimas décadas em diferentes partes do mundo.
Ensina a lenda, que o czar Pedro, o Grande, fez um brinde aos seus “professores suecos”, depois da Batalha de Poltava em 1709. Hoje, a atual liderança russa também pode dizer que aprendeu muito com o Ocidente.
Nas ações da Rússia na Ucrânia, é fácil identificar elementos – de militares a informacionais – que estiveram presentes nas campanhas dos EUA e da OTAN contra Iugoslávia, Iraque e Líbia.
As tensões estão fervendo há muito tempo, e a Ucrânia agora decidiu assumir a linha de frente decisiva.
Não se trata de batalha ideológica, como a que se viu na segunda metade do século 20. Atualmente, a hegemonia mundial está sendo desafiada em favor de modelo muito mais distribuído.
O antigo conceito de ‘esferas de influência’ da Guerra Fria não é mais aplicável, porque o mundo tornou-se muito mais transparente e interconectado, tornando o isolamento quase impossível. Pelo menos, é o que pensamos – até agora.
Como muitas vezes aconteceu no passado, a luta atual está sendo travada por um território estrategicamente importante. O velho ditado ‘a história se repete’ é evidente ao passar de um meio de comunicação para outro. Duas abordagens diferentes colidiram.
De um lado, há o exercício do hard power clássico, que se orienta por princípios simples, não polidos, mas perfeitamente compreensíveis: sangue e terra. De outro está um método moderno de propagação de interesses e influências, operado por meio de um conjunto de ferramentas ideológicas, comunicacionais e econômicas, efetivas e, ao mesmo tempo, maleáveis – comumente chamadas de ‘valores’.
Desde a Guerra Fria, a mais moderna dessas abordagens tem sido quase sempre o método mais utilizado. Vamos chamá-lo pelo seu nome elegante, embora impreciso – ‘guerra híbrida’.
Na maioria das vezes, no entanto, o confronto de ‘valores’ não foi enfrentado por resistência séria, muito menos em confronto armado direto.
Ucrânia 2022 é o teste decisivo que provará qual dessas abordagens reinará vitoriosa. Nesse sentido, parecem ter razão os que desconfiam que as consequências podem ser muito mais profundas do que haviam imaginado.
A liderança russa, que decidiu por medidas extremamente drásticas, provavelmente entendia as consequências, ou talvez, mesmo tenha aspirado a elas conscientemente.
A página da cooperação com o Ocidente foi virada.
Não significa que o isolacionismo se tornará a norma, mas marca o fim de um importante capítulo histórico nas relações políticas.
A nova Guerra Fria será longa.
Depois de algum tempo, os efeitos que a atual operação militar causou provavelmente começarão a arrefecer e algumas formas de interação serão retomadas, mas a linha limite inevitavelmente foi traçada.
Mesmo em cenário favorável, levará muitos anos até que as sanções sejam levantadas e os laços sejam restaurados gradual e seletivamente. A reestruturação das prioridades econômicas exigirá abordagem diferente, que estimulará o desenvolvimento em alguns aspectos e pode retardá-lo muito, em outros.
A parte mais ativa da sociedade russa terá de perceber que seu antigo modo de vida foi-se.
Fort Russia decidiu pôr à prova a própria força. Ao mesmo tempo, apresentou-se como agente de mudança fundamental para o mundo inteiro.
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga