Entremeando o Micro e o Macro: Nietzsche e a vontade de potência

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Assim Falava Zaratustra eBook de Friedrich Nietzsche - EPUB Livro | Rakuten Kobo Brasil

Por Doralina Rodrigues Carvalho*

“Vede estes supérfluos! Adquirem riquezas e com elas se tornam mais pobres. Querem o poder e, primeiro, a alavanca do poder, muito dinheiro – esses indigentes..”  

 (Nietzsche – Assim falava Zaratustra p.50)

 

Nietzsche indicava que o ressentimento diz respeito a um tipo no qual as forças reativas sufocam as forças ativas. As forças reativas não se deixam agir. Se furtam à ação das forças ativas. O ressentimento constitui o triunfo do fraco enquanto fraco. Os homens do ressentimento são impotentes para admirar, para respeitar, para amar. Têm muito ódio pelo que causa admiração, difundem sempre difamações vis, depreciam, têm pensamentos medíocres, nenhum sentimento de respeito pelo diferente. Impotente, impassível, escravo de seu ódio e agressividade. O homem do ressentimento é, também, o homem do benefício e do lucro. Fez do lucro um sistema econômico e social. A moral dos escravos é a da utilidade.

Os ressentidos pretendem que os outros sejam maus para poderem se sentir bons. “Eis as duas fórmulas: eu sou bom, portanto tu és mau.  – tu és mau, portanto eu sou bom” já nos indica Deleuze sobre o homem do ressentimento. (Onde?) Por privar a força ativa de suas condições materiais de exercício, separa- a então do que ela pode. Nietzsche diz que o animal gregário ao desenvolver sua agressividade, vê-se tomado por um sentimento de potência. Mas, para Nietzsche, este prazer de se sentir potente via agressividade é a festa da besta habitando o homem. Quando os necrofascistas vociferam contra Lula e o seu governo, pregando até mesmo sua destruição e morte, isto não nos diz de uma vontade de potência que deseja a vida. A vontade de potência não quer a dominação ou a violência. Estas são as modalidades através das quais os vulgares conseguem pequenos prazeres de potência. O que ocorre neste caso do podre prazer da dominação do outro é a bestificação de quem a exerce. São vidas cansadas tentando com seu ódio e agressividade combater a depressão que as toma. É a partir daí que percebemos a constituição, em seus extremos, de subjetividades delinquentes.

 

“O tipo depressivo moderno, ao contrário, é particularmente vampírico ou venenoso. Encarrega-se de realizar a profecia de Nietzsche: não suportam que exista “uma” saúde, eles não vão parar de nos atrair para suas redes. No entanto, curá-los seria, antes de tudo, destruir neles essa vontade de veneno.”   (Deleuze; Parnet Diálogos p.99)

 

Não é pela agressividade que o não vulgar alcança o sentimento de potência. O nobre – um tipo – se trabalha muito para não se tornar medíocre. A própria filosofia há que se cuidar para não cair em um lugar conservador em que só crie ressonâncias com os valores estabelecidos. Muitas vezes o filósofo avalia a sua vida a partir dos pesos e fardos que possa carregar. A condição de carregador – uma depreciação da vida – se opõe à condição de criador. Deleuze nos diz que: “criar é aligeirar, é descarregar a vida, inventar novas possibilidades de vida. O criador é legislador dançarino.”  ( Deleuze – Nietzsche p.19)

Retornemos a questão da vontade de potência que não significa vontade de poder, querer o poder, ou dominar, ou cobiçar. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche afirma que a vontade de potência consiste em criar e dar. “Companheiros é o que busca o criador, não cadáveres, e tampouco rebanhos e crentes. Aqueles que criem juntamente com ele busca o criador, que escrevam novos valores em novas tábuas” (Nietzsche – Assim falou Zaratustra p.24)

Vejamos o que ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023: uma tentativa frustrada de golpe, num desrespeito flagrante à democracia. Os mandantes encolhidos em suas mansões e a horda dos paus mandados quebrando bens públicos, dilapidando relíquias, desrespeitando os 3 poderes, via uma subjetividade delinquente, danosa, anti-democrática. Pela força, sua tentativa de intimidação do governo, recém-eleito democraticamente pela maioria dos brasileiros, só evidenciou sua impotência. Nenhum traço de potência se viu quando tentaram criar obstáculos à vigência da democracia em curso, buscando fragilizá-la, senão demoli-la, através de uma insistente agitação golpista de extrema direita.

Nietzsche em Assim falou Zaratustra nos diz:

“O homem é corda estendida entre o animal e o super homem: uma corda sobre um abismo, travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso tremer e parar. A grandeza do homem é ser ele uma ponte e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma passagem e um termo. Amo apenas aqueles que sabem viver como que se extinguindo, porque esses são os que atravessam de um lado para outro”. (Nietzsche – Assim falou Zaratustra p.11)

 

Enfim, a vontade de potência não é vontade de império. Esta, a vontade de império, cria obstáculos à vontade de potência. A história, também, não é a realização ou produção de vontade de potência. Nietzsche nos diz que quem aprendeu a inclinar a espinha ou curvar a cabeça diante da história aprovará mecanicamente todo tipo de poder. Ou seja, nada de subserviência ao poder estabelecido.

A adesão cega dos seguidores do inelegível a seus clamores anti-democráticos é um sinal de fraqueza. Querem ter o poder a qualquer custo e, para tanto, lançam mão de meios perversos para obtê-lo: mentiras, Fake News, perseguições, violência. Ou isto ou o uso da sedução, por exemplo, a sedução religiosa. Muitos pastores a utilizam em suas igrejas, vaticinando posições enganosas em seus púlpitos, com a estrita finalidade de obtenção de mais e mais poder financeiro e político, malversando suas falas pervertidas, como se fora a voz de Deus. São homens fracos estes que só querem enganar para submeter o outro, fazendo deste um discípulo subserviente sem pensamentos próprios e atitudes autônomas.

No desgoverno anterior vimo-nos ante forças reativas que triunfaram. Negacionistas alardeavam desde a falácia de que a Terra é plana até a negação da possibilidade do outro pensar ou agir em sua diferença: o bárbaro assassinato de Mariele Franco e Anderson Gomes estremeceu o país e foi além de nossas fronteiras. Os clamores pela elucidação do crime ainda ressoam por toda a parte: “Quem mandou matar Mariele?!” Naquele momento houve um triunfo da negação sobre a afirmação. Estabeleceu-se uma situação devastadora em que venceram, momentaneamente, as forças reativas. Foi um triunfo dos escravos, do rebanho, do “gado”.

Os fracos contagiam o outro com seu niilismo, produzindo uma degenerescência, uma vida adoecida, reduzida a processos reativos. Como nos diz Deleuze:

É um devir-doentio de toda a vida, um devir-escravo de todos os homens que constituem a vitória do niilismo. Os nossos senhores de escravos que triunfam num devir-escravo universal. ”

No contexto atual proliferam-se pelo mundo guerras abertas ou dominações ideológicas de ultradireita que criam contingentes de defensores ardorosos de suas ideias e programas políticos, muitas vezes acobertados por poderosos governos representantes de estados autocráticos, que querem dominar corpos e mentes dos mais diversos povos. O massacre que o Estado de Israel perpetra sobre o povo palestino é o mais gritante, insano e cruel exemplo da contemporaneidade. É uma busca de dominação visivelmente ostensiva de quem quer se dar visibilidade enquanto representação de domínio e poder. A verdadeira potência para Nietzsche não tem nada a ver com este desfile necrofascista destas forças decadentes. Senão, vejamos:

“Encontrei a força ali onde não se costuma buscá-la: nos homens simples, doces e delicados, sem a mínima inclinação para a dominação. E, inversamente, o gosto de dominar me pareceu frequentemente como um signo de fraqueza intima. Eles temem a sua alma de escravo e a ornam com um manto real. O poderoso é escravo do olhar do outro. E aí, em contraposição a isso, as naturezas poderosas reinam. É uma necessidade. Sem mesmo necessidade de levantar o dedo, ainda que elas devessem se enterrar ainda vivas numa choupana.”

Em nosso país, estes que têm o gosto de dominar, têm a alma de escravo e a querem ocultar sob um manto de realeza, alardeando-se como representantes legítimos de Deus, da Pátria, da família. Criam uma reputação mentirosa de defensores da democracia e da liberdade, numa suposta cruzada anti-corrupção e anti-comunismo. Buscam fascinar o outro e mantê-lo atado a seus ditames perversos. Senão patológicos. E aí querem acorrentar o outro a si, centralizando-o, cristalizando-o em torno de seus desígnios necrofascistas. “Não vos suportais a vós mesmos e não quereis bastante; desejareis seduzir o próximo por amor a vós adorar-vos com a sua ilusão.”   (Nietzsche – Assim falou Zaratustra p.47)

Nietzsche trabalha com outras possibilidades de história que não a factual, outras possibilidades de vida que não aquela apontada como ideal pelos que se querem vencedores. Nietzsche está falando do intempestivo. Daquilo que está fora do tempo. Fora do seu tempo. A historiografia oficial expressa a força dos valores vigentes. Os valores novos criados pela vontade de potência são o salto fora da história. É a invenção de outros valores que irrompem numa criação intempestiva. Ainda que não se tornem hegemônicos e dominantes trata-se de uma criação imanente que abre outras possibilidades de vida para a humanidade, para o planeta Terra.

 

*Doralina Rodrigues Carvalho – Militante política sob o regime da ditadura militar: presidente da UEE-MG, vice-presidente da UNE, dirigente da organização política APML – Ação Popular Marxista Leninista – Mestre em Psicologia Clínica (PUC SP) – Professora do Centro de Filosofia do Instituto Sedes Sapientiae – Terapeuta e Covisora Clínica – Coordenadora do Instituto Candeias

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