Ensaios sobre as governanças

Share Button

Por Felipe Maruf Quintas (*) e Pedro Augusto Pinho (**)

Entre 19 de dezembro de 2023 e 19 de março de 2024, o Monitor Mercantil publicou a série de 13 Ensaios sobre as Governanças, na perspectiva histórico-política, aqui reproduzida.

Ensaios sobre as governanças: o retrocesso neoliberal | Monitor Mercantil

I – Reflexões fundamentais

O que significa governar? Impor? Respeitar um poder? Agradar a maioria? Ser “o primeiro servo do Estado” (Frederico II)? Ou “ser escravo do povo” Getúlio Vargas)? O pensamento neoliberal, que domina o mundo euro-estadunidense e suas colônias no século 21, ao desestruturar os Estados Nacionais, tirou-lhes o modo mais natural da sociedade construir sua governança: unir-se em torno do Estado que as unifica e as distingue dos demais.

Na série de artigos que se inicia com estas Reflexões Fundamentais, pretende-se percorrer os instantes mais significativos, na história do mundo, ocidental e oriental, da governança das sociedades.

Não será uma antropologia do poder, pois não se trata da formação das sociedades, que já se encontram construídas. Também não se trata de estabelecer uma cratologia, uma vez que se cuidará da forma de gestão, embora muitas vezes seja necessário apresentar a força motriz daquela governança.

Este trabalho busca uma saída para o impasse governamental em que o Brasil se enfiou quando colocou a saída dos militares do poder como a condição mais necessária para a continuidade do Estado Nacional. E, não satisfeito, buscou demolir sua mais importante herança, a soberania do Estado Nacional.

Tem-se, daí, a primeira reflexão fundamental: a soberania como condição de governança.

É comum ouvir-se, nos tempos que correm, que a democracia é um bem do qual não se pode abrir mão. Mas qual democracia? A ateniense, que estava restrita aos homens, excluía mulheres e escravos e condenou à morte Sócrates, um dos homens mais sábios que já existiram? A construída pelas desinformações que a mídia tradicional, hegemônica, difunde em forma impressa, televisiva, radiofônica, e, ainda mais intensamente, chegam a quase todas as pessoas pelos canais virtuais, acessíveis pelos aparelhos celulares?

E quem for a estes veículos de comunicação para defender a soberania da Nação, sem a qual nada é possível: nem democracia, nem cidadania, nem qualquer garantia de direitos, sofre imediata censura e perseguições, como um criminoso, um inimigo do povo.

Outra reflexão fundamental para se compreender a governança é a participação; tanto mais numerosa, mais representativa; tanto mais intensa, mais democrática.

Observe-se a questão da economia, que os atuais detentores da governança ocidental colocam como o mais relevante e difícil desafio de seus governos. A economia privada não é a que conduz a Nação, como propagam os arautos liberais desde o século 18.

Ao contrário, não existe economia privada sem o ordenamento público da moeda, das leis, das instituições, das infraestruturas que são, por definição, coletivas. Como pode a economia privada ser soberana se ela é derivada dos modos de organização política e social constitutivos da Nação?

Mesmo para aquele que se apresenta como líder da democracia ocidental, com projeto de ser a única liderança do mundo globalizado, os Estados Unidos da América (EUA), é o Estado, principalmente pelo permanente estado de guerras que mantêm e assim justifica jorrar recursos públicos para as empresas e outras instituições privadas. E disso resulta a impagável dívida de sua moeda, que desaba nesta terceira década do século 21.

As governanças se distinguem pelas culturas das sociedades. Tem-se, portanto, que não existe um modelo geral de governança, mas os diversos arranjos entre as condições materiais, geológicas e geográficas dos países e a cultura que a dialética dessa relação do homem com seu meio ambiente formaram. A esta resultante denominar-se-á nacionalismo. Portanto, as governanças representam um resultado das construções dos nacionalismos.

Porém, a sociedade humana não se constitui de ilhas isoladas. Ao contrário, elas interagem permanentemente pelo caminho do comércio ou da colonização.

Ambas vertentes conduzem a modelos de governança. Uns nacionalistas e soberanos, outros, como se referia o genial pensador brasileiro Darcy Ribeiro, como mera projeção de pensamentos e modos de vida estrangeiros.

O comércio deve ser entendido como sistema de trocas. Estas trocas não se limitam a produtos que sejam necessários para um País e produzidos em abundância por outros. Elas envolvem contatos culturais, tecnológicos, de serviços em todas as necessidades, porém, sempre respeitando a soberania e a cultura de cada nação envolvida.

Já Montesquieu se referia ao “doux commerce”, que suavizava o trato dos povos e fazia prevalecer a diplomacia sobre a guerra.

Este iluminista francês, contudo, não era um apóstolo do livre-comércio manchesteriano, ideologia colonialista da Grã-Bretanha, primeira potência industrial. Por isso, defendia restrições ao comércio seja para desenvolver o país, seja para impedir os comerciantes de exercer poder indevido. O comércio seria um instrumento, não um fim em si mesmo.

Na medida em que cada Estado busca utilizar o comércio para alcançar seus próprios fins, ele deixa de ser um instrumento pacificador e se torna de conflito; o jogo de soma positiva cede lugar ao de soma zero. O comércio nunca existe em si, em alguma medida sempre se relaciona a interesses estratégicos nacionais, nem sempre convergentes.

Daí que os acordos entre diversas nações são sempre difíceis, pois, para encontrar um denominador comum, haverá de ser aceita alguma restrição pelas nações formadoras do pacto. O modelo de negociação de pares de nações será sempre mais respeitoso.

Os grandes acordos só poderão tratar de condições de grande homogeneidade, como da repressão ao tráfico de pessoas e outras disfunções sociais amplamente consideradas nefastas e legalmente reprimíveis. Em outra ponta, quase oposta, na ajuda ao combate a epidemias que grassam pelo mundo, na minimização das consequências de tragédias naturais, vulcânicas, tsunamis e semelhantes.

A paz é condição fundamental, e o comércio, não criando qualquer tipo de dominação, de sujeição a imposições alienígenas, foi, historicamente, o grande fator de progresso humano. Mas a paz não tem sido o caminho da humanidade.

O Ocidente, entendido como a Europa, sempre se utilizou da força para obter seus ganhos fora do âmbito geográfico europeu. As guerras, ocorridas na África, na Ásia e nas Américas pré-colombianas, resultavam de disputa pelo poder e mesmo como uma demonstração de prestígio. Foi a Europa, sucessora das culturas do Oriente Próximo, que buscou o ganho material, apossar-se de bens, de obter rendas de outros povos para o conforto de suas elites.

A paz é a condição indispensável para a existência e o desenvolvimento humano, principalmente quando a energia nuclear for a única possível para manter e promover o crescimento da humanidade.

O mundo, nestes últimos três mil anos de existência, conheceu experiências bem sucedidas e malogradas.

Alguns insucessos foram ocasionados pelos meios que o ser humano condena desde a aurora da civilização. Porém nem toda governança segue padrões éticos, como se constata na história.

Os momentos significativos da governança e suas fontes, na história mundial, compõem os conteúdos destes ensaios. Contemplam, assim, os grandes temas da ciência política e os elementos que deixaram para as reflexões que se encontram nestes ensaios.

II – A China Confuciana

Ensaios sobre as governanças: o confucionismo na China

Anne Cheng, em “História do Pensamento Chinês” (1997), escreve: “O pensamento chinês não procede tanto de maneira linear ou dialética e sim em espiral. Ele delimita seu objetivo, não de uma vez por todas mediante um conjunto de definições, mas descrevendo ao redor dele círculos cada vez mais estreitos. Isso não é sinal de um pensamento indeciso ou impreciso, mas antes da vontade de aprofundar um sentido mais que de esclarecer um conceito ou um objeto de pensamento.”

Cheng ainda explica que falta no pensamento chinês a teorização, como encontrada no pensamento ocidental à maneira grega ou escolástica ou em qualquer elaboração decorrente de doutrina religiosa. “Não há verdade absoluta e eterna, mas dosagens. Daí resulta que as contradições não são percebidas como irredutíveis, mas como alternativas”. Em vez de termos que se excluem, veem-se oposições complementares que admitem passar do indiferenciado ao diferenciado, numa transição imperceptível.

Neste sentido, a dialética ocidental, arquitetada por Hegel, é a única que possui característica semelhante, e, por isso mesmo, jamais foi sistematizada enquanto organização do poder no Ocidente, sequer compreendida, seja pelos seus supostos adeptos, os marxistas, seja pelos seus antagonistas, os popperianos da “sociedade aberta”.

Esta característica de aprofundamento do conhecimento se transfere para a complexidade das decisões da governança, que envolvem questões externas à capacidade do que decide (individual ou coletivamente), tais como as relativas aos fenômenos da natureza, as implicações políticas, sociais, econômicas no meio e fora do âmbito da governança.

Muito importante é a capacidade de usar as manifestações contrárias para enriquecer a alternativa decisória. Este é o sucesso do mundo multipolar, onde são descartadas as decisões impositivas, colonizadoras, pelas consensuais, harmônicas.

Antes de tratar da governança chinesa no século 21, é necessária breve síntese do que legaram Lao Zi e Confúcio, na designação chinesa Kong Fu Zi (Mestre Kong), 500 anos antes da era cristã.

No milênio que antecedeu a Era Cristã, surgiram quatro caminhos que deram origem ao pensamento humano. Formados, grosso modo, no mundo grego, no monoteísmo hebraico, no hinduísmo e no confucionismo.

A grande diferença do confucionismo dos demais é a origem humana, diferente da divina, extraterrena, dos demais. E por ser também o único que, pela primeira vez na história do pensamento humano, propõe uma concepção ética para o ser humano, pelo próprio homem.

Duas palavras sintetizam este pensamento: “tao”, que significa caminho, e “te”, a virtude. Se no caminho o homem constrói o conhecimento, a soma das verdades, ela só terá sentido se o homem tiver o sentido moral da existência.

No confucionismo não se esperam recompensas, neste nem em qualquer outro mundo. Um milenar conceito taoísta vem da enigmática figura de Tzu Lu que indaga: como os espíritos devem ser servidos? Ao que Confúcio responde: se não sou apto para servir os homens, como posso servir aos espíritos.

Inicie-se com esta questão a governança na China. Trata-se de servir seu povo. “A posição do povo como dono do país é uma característica inerente à política democrática socialista” (Relatório do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh), 2017).

Para que se torne efetiva esta conclusão, diversas medidas devem ser adotadas. E elas começam a se formar a partir de 1919.

O Tratado de Versalhes, confirmando ter sido a 1ª Grande Guerra um conflito europeu, não mundial, e pela expansão colonial, principalmente com a entrada tardia da Alemanha e da Itália, cujas unificações se deram em 1871, obrigou a China a transferir territórios para o Japão. Fato que, em 04 de maio de 1919, levou professores e estudantes de Beijing a saírem às ruas para protestar. Rapidamente tomou o país, atingindo Xangai, Cantão e outras cidades importantes, prolongando-se durante um ano e meio. Com este movimento, o proletariado chinês passou a aparecer no movimento político do país.

Que se atente ao fato de já existir na China um proletariado suficientemente numeroso para se fazer presente na história. O que desmente a visão, condescendente, mas ainda assim imperialista, de que a China, no início do século 20, era um país “atrasado”. Não era atrasado, era subjugado, que são contextos diferentes.

Um país com grandes centros industriais e toda uma integração territorial que remontava há milênios jamais poderia ser “arcaico”. Subjugado, sim, pela força das armas estrangeiras, mas disposto a tomar de volta o que lhe é de direito pela afirmação nacionalista do seu existir, o que efetivamente era o objetivo dos trabalhadores e de outros setores sociais chineses naquele momento.

O Movimento de 4 de Maio constituiu a mudança da revolução democrática do velho tipo para a revolução de nova democracia e possibilitou a propagação do marxismo-leninismo, preparando a fundação do Partido Comunista da China (julho de 1921).

Vê-se a entrada do ocidente, pelas próprias mãos chinesas, com o marxismo, mesmo com a sinização promovida por Mao Tse Tung, líder da Revolução Chinesa de 1949 e seu primeiro dirigente.

Na verdade, desde o fim do século 18/início de 19, o pensamento chinês foi mais intensamente confrontado com o ocidental.

Coincide com a expansão do capitalismo europeu não mais pela “mão divina” – jesuítas em 1582 – mas pela industrialização e pela abertura na sociedade de classes, consequência da Revolução Francesa (1789).

Episódio aparentemente sem importância – a arrogância do embaixador Lord McCartney perante o imperador Qianlong – deu início a animosidades que levam à Guerra do Ópio (1839), e marcam a derrocada do Império e dos reinados manchus: Qianlong (1736-1796), Jiaqing (1796-1820), Daoguang (1820-1850), Xianfeng (1850-1861), Tongzhi (1861-1875), Tzu Hsi (1875-1908), e Xuantong (1908-1912).

A tradição chinesa dos letrados, assessores filósofos dos dirigentes, sofre com o contato ocidental. Surge a corrupção e o imobilismo burocrático que marcam o início do século 19, na governança de Jiaqing.

Ao término da I Guerra do Ópio (1842), as potências ocidentais obrigam os chineses à abertura dos portos aos produtos estrangeiros e a conceder numerosos privilégios e direitos. Neste momento Wei Yuan (1794-1857) conclui seu “Memorial” (“Sheng wuji”), que propõe renovação de armas, “reprimir os bárbaros usando os meios dos bárbaros”, ter como alvo potencial chinês a conquista da Índia britânica, e a reforma institucional. Em 1856 começa a II Guerra do Ópio, envolvendo a Grã-Bretanha e a França, que durou quatro anos.

O período que vai das guerras do ópio até 1919 é conhecido como o século das humilhações.

O confucionismo passa a ser alvo de severas críticas por deixar o país sem defesa em face das agressões ocidentais e nipônicas. Surge a Rebelião Taiping (1851-1864), ao sul, e dos Nien (1851-1868), ao norte, incêndio no Palácio de Verão (Jardins da Perfeita Claridade), revolta da minoria muçulmana, dos Boxers (1899-1901), e, por força do Tratado de Nanquim, que pôs fim a 1ª Guerra do Ópio, é criada a Bolsa de Valores de Xangai, Shanghai Stock Exchange (SSE).

Na passagem do século 19 para o século 20 surgem duas iniciativas que procuram absorver o ocidente no pensamento de Confúcio, a de Liang Qi Chao (1873-1929) e de Tan Si Tong (1865-1898).

Liang busca o regime parlamentar, os direitos sociais e, sobretudo, a igualdade dos sexos, que lhe pareciam o caminho para o reerguimento chinês. Tan se volta para as religiões, a soma de elementos do budismo, da espiritualidade cristã, com um novo confucionismo. “Para mim é o conhecimento e não a ação que tem mais valor. O conhecimento está da alma, a ação no corpo” (Estudo sobre a humanidade, 1896).

Na China vivem 56 grupos étnicos, mas os “han” constituem 91% da população. Portanto o nacionalismo chinês, de algum modo, está associado à etnia, e guarda certo ressentimento dos manchus, o segundo mais populoso entre as minorias e que governou a China, e, sobretudo, a desconfiança dos estrangeiros.

Nesta transição do século 19 para o século 20, encontram-se os letrados em tal estado de perplexidade que propõe até a compreensão de que a herança intelectual não se dirige aos “han”, mas ao mundo.

“Os Anais das Primaveras e Outonos não estavam destinados a um só país, mas ao mundo inteiro; não valiam para uma só época, mas para a eternidade” (Liang).

Pode-se entender o marxismo como resposta a estas perplexidades, o que explicaria sua ampla e geral aceitação pelos chineses, a partir da Longa Marcha de Mao Tse Tung, 12 mil e 500 quilômetros, entre 16 de outubro de 1934 e 20 de outubro de 1935, em condições extremamente difíceis.

A governança sob o Partido Comunista Chinês, dirigido por Mao, pouco diferia dos países comunistas após a 2ª Grande Guerra. E a liderança da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), malgrado os inegáveis êxitos nos campos da tecnologia e das melhores condições de vida, sem distinção para todos cidadãos, acomodava-se na burocracia partidária.

Os dez anos – 1966 a 1976 – da Revolução Cultural Chinesa ainda não encontraram análise abrangente. Chama a atenção o desrespeito com que tratou o passado e as instituições, e até mesmo os dirigentes chineses reconhecem prejuízos à educação, à produção, à cultura, enfim, ao país. Porém, pode-se avaliar como a tentativa bem sucedida de impedir a acomodação e corrupção burocrática, como ocorreram em outros países comunistas e os levaram ao retorno da governança capitalista.

De todo modo, as críticas internas à Revolução Cultural possibilitaram a abertura econômica da China nas últimas décadas do século 20.

Anne Cheng coloca a questão: “Se modernização significa necessariamente ocidentalização, há um risco real de alienação e de perda da identidade cultural?”.

Xi Jinping dá a resposta no discurso “Concretizar uma sociedade moderadamente próspera e realizar o sonho chinês”, antes do 19º Congresso Nacional do PCCh.

“O socialismo com características chinesas é o tema de todas as teorias e práticas do nosso partido desde o início da reforma e abertura em 1978. Todo partido deve erguer bem alto a grande bandeira do socialismo com características chinesas e ter firmes convicções no caminho, nas teorias, no sistema e na cultura do nosso socialismo para garantir o avanço vitorioso das causas do Partido e do Estado por caminho correto”.

Devemos ter em mente as características das diferentes fases do desenvolvimento do nosso país e o desejo do povo por uma vida melhor, formular novos delineamentos, estratégias e medidas e continuar promovendo o desenvolvimento coordenado da economia, política, cultura, sociedade e ecocivilização e as ‘quatros disposições estratégicas integrais’ – a conclusão da construção integral de uma sociedade moderadamente próspera, o aprofundamento integral da reforma, a administração integral do país conforme a lei e a administração integral e rigorosa do Partido – para conquistar a vitória decisiva na construção da sociedade que desejamos e a grande vitória do socialismo chinês, bem como lutar incansavelmente para concretizar o sonho chinês da grande revitalização da nação (26/07/2017)”.

A China confuciana vai além do “tao” e do “te”, claramente referidos neste pequeno trecho de Jinping, também se curva aos ritos e às regras que têm de estar de acordo com o tempo.

“Quando o Caminho prevalece no reino, fale e aja destemidamente e com altivez; quando o Caminho não prevalece, aja destemidamente e com altivez, mas fale com reserva e de modo suave” (Confúcio, Analectos, 14, 3).

Daí o “socialismo de mercado”, fórmula confuciano-dialética que exprime a utilização dos mecanismos de concorrência em favor do planejamento estatal e vice-versa. O desenvolvimentismo chinês, assim, supera a dicotomia mercado x Estado, em voga no Ocidente neoliberal, e resgata a noção da economia como economia política, a serviço dos interesses maiores do soberano. Uma vez que a China não é Estado-nação e sim Estado-civilização, o socialismo de mercado desponta como afirmação da tradição histórica no contexto das novas tecnologias e requisitos geoeconômicos e geopolíticos da soberania.

A democracia chinesa, da mesma forma, não tem a mesma estrutura eleitoral das ocidentais. A ênfase está na participação. O Relatório do 19º Congresso do PCCh reiterou que o sistema de assembleias populares constitui o arranjo político fundamental que integra, organicamente, a posição do povo como dono do país com as lideranças partidárias e a administração da República Popular da China.

É preciso estar seguro que o povo exerce seu poder pelo sistema das assembleias, espalhadas por todo território do país, e que seus comitês permanentes exerçam de modo correto e democrático suas funções e aperfeiçoem os sistemas organizacionais e executivos.

O Partido Comunista da China recebe anualmente milhares de candidatos a seus quadros, que passam por criteriosa seleção para serem admitidos. Em 2020, os membros do PCCh representavam o dobro de pessoas das cinco maiores etnias na China (zhuang, manchu, hui, miao e uigur), e dez vezes dos mongóis e tibetanos residentes no território chinês.

Não existe partido político no mundo, exceto na Índia, que tenha cerca de 10% da população de filiados, como no PCCh. É a democracia participativa que sustenta a governança da China.

III – Egito, Mesopotâmia e Grécia

Ensaios sobre as governanças: Mesopotâmia, Egito e Grécia | Monitor Mercantil

O moderno Estado-nação não existia durante a Antiguidade. As formas estatais então predominantes eram as da cidade-estado, restrito a um povo, e do império, que organizava em pletora de povos a partir de uma autoridade central.

Naturalmente, houve múltiplas constituições e governanças, como analisadas por Aristóteles, no Livro II de “A Política”. Coexistiram democracias, oligarquias, monarquias, aristocracias e vários tipos de formas mistas, bem como impérios marítimos e telúricos.

Em todas elas, a economia não ocupava a posição central que as atuais governanças lhe conferem. Ainda que a produção e a distribuição dos bens materiais e financeiros constituíssem questão estratégica dos soberanos, tanto mais porque serviam de suporte material para o exercício do poder, elas não eram entendidas à parte dos aspectos políticos e religiosos, que se manifestavam de forma invariavelmente unificada, já que não se concebia a separação entre a polis e os deuses, entre os assuntos de Estado e os assuntos divinos.

Não existiam as noções correlacionadas de economia, de mercado e de sociedade civil, enquanto instâncias apolíticas e seculares definidas pela interação dos interesses utilitários privados. No máximo, havia a ideia grega de “economia doméstica” para designar os assuntos do lar, inclusive os de ordem comportamental e sentimental, de pouca ou nenhuma valia até mesmo para o que hoje chamamos de economia doméstica, quanto mais de economia.

Os aspectos hoje chamados de econômicos faziam parte da administração pública e das artes religiosas, não como domínios separados, mas como técnicas do poder e da religião.

Desse modo, as governanças não tinham por objetivo último elevar o produto interno e ampliar a capacidade média de consumo, mas equilibrar as forças sociais em torno do poder central e zelar pela vivência coletiva do sagrado. A administração dos recursos materiais e financeiros era entendida como instrumento de realização de valores extra-econômicos.

Abordemos sucintamente três das grandes civilizações: a egípcia, a mesopotâmica e a grega.

Egito

A civilização egípcia desenvolveu-se ao longo do curso do rio Nilo. Definiu-se em sucessivas etapas históricas – o Antigo Reino, o Médio Reino e o Novo Reino -, entremeadas por períodos de crise e indefinição que preparavam novos arranjos sociais e culturais que atualizavam as características civilizatórias básicas.

O principal fator de estabilidade da civilização egípcia foi a idealização do faraó como divindade, como filho de Horus. O faraó representava o elo do divino com o mundano, do cósmico com o histórico, e assim mantinha coeso todo o sistema social em sua cadeia hierárquica.

A ordem política refletia a ordem cósmica e conferia caráter sagrado às relações de mando e obediência, inscritas em ordenamento superior e transcendente. O sentido de imutabilidade se associou à concepção cíclica da história, na qual as mudanças eram apenas o movimento circular e perpétuo de um todo, que jamais se transformava.

Em torno do faraó se estabeleceu um corpo administrativo bastante sofisticado, composto de funcionários especializados. Havia quatro grandes departamentos administrativos: o Tesouro, a Agricultura, a Justiça e o Arquivo Real. O vizir, espécie de superministério, supervisionava os departamentos, o Exército e as administrações das províncias, chamadas “nomes”.

Toda a economia imperial estava subordinada ao faraó e, portanto, à ordem cósmica sagrada. Segundo Darcy Ribeiro, nos tempos de Ramsés III (1198-1167 a.C.), “o poder estatal atuou como vastíssima empresa financiadora e administradora de enorme patrimônio produtivo. Contava com 750 mil acres de terras cultiváveis, 107 mil cativos engajados no trabalho, 500 mil cabeças de gado e uma frota de 88 navios, além de 53 fábricas e estaleiros” (“O Processo Civilizatório”, 1972).

O peso da escravidão, contudo, foi exagerado pelo relato hebraico, pois, na realidade, não teve tanta importância como outras modalidades de trabalho, a exemplo da servidão e do recrutamento de camponeses livres, além de que os escravos contavam com proteções legais e podiam ser libertados. A sociedade egípcia era relativamente complexa, apresentando classes superiores, médias e inferiores.

As pirâmides evidenciam como a capacidade criadora dos egípcios foi social, política e econômica, uma vez que tudo que existia era sagrado.

Ainda assim, houve momentos de instabilidade, sobretudo em relação à distribuição do poder. Intercalavam-se períodos de centralização, quando o faraó fortalecia sua posição de comando e subordinava o funcionalismo público, e de descentralização, quando a debilidade do faraó permitia aos funcionários públicos converterem-se em nobreza hereditária e dividirem o seu poder, o que vulnerabilizava o império frente a ameaças estrangeiras.

Os sucessivos assaltos externos e usurpações dinásticas enfraqueceram a consciência do caráter divino do faraó, o que fraturou a ordem política e a fez perder sua coerência. O sistema egípcio, calcado na crença do faraó como deus, não resistiu à secularização e ao relativismo conseguintes às vicissitudes históricas. Desprovida da solidez do sagrado, a governança imperial egípcia ruiu.

Mesopotâmia

A civilização mesopotâmica, que ocupava área equivalente, em linhas gerais, ao atual Iraque, inicia-se com os sumérios, a primeira civilização que se tem registro. Os sumérios desenvolveram a escrita e, consequentemente, religião e cultura unificadas e próprias, assumindo identidade específica e diferenciada.

A integração de diversas aldeias em cidades-estados organizadas em torno do templo principal, por sua vez, permitiu aos sumérios criar e administrar arrojados sistemas de irrigação e plantio, sustentando materialmente a civilização.

Cada cidade-estado pertencia a uma divindade e por ela era governada. Toda a organização social fazia parte de um complexo cósmico; a ordem, informada pela religião, era uma necessidade sagrada. O Estado político refletia a hierarquia cósmica regida pelo deus Anu. Como afirmou Hélio Jaguaribe, “O Estado como um todo estava a serviço político de seu deus, na qualidade de membro oficial do Estado cósmico” (“Um Estudo Crítico da História”, I, 2002).

A administração da economia e da sociedade era voltada a cumprir os desígnios religiosos, de modo que a governança se revestia de sentido teológico e absoluto. A sacralização da cidade também era a do governo. O mando e a obediência inscreviam-se no domínio cósmico, de modo que a rebeldia e a desobediência eram não apenas faltas morais e civis, mas a negação do ser.

A partir dessa configuração, os sumérios forneceram a estrutura básica de toda a civilização mesopotâmica. A eles se fundiriam os acadianos, gerando a civilização sumério-acadiana, que, por sua vez, se desdobrou em duas, a babilônica e a assíria.

Enquanto a Babilônia obteve protagonismo econômico e cultural, tornando-se o maior centro cosmopolita da época, a Assíria destacou-se no âmbito militar, buscando subjugar pelas armas os demais povos. Não se pode ignorar a força militar da Babilônia e a pujança econômica e cultural da Assíria, porém esses não foram seus fatores determinantes.

Leia também: https://www.orientemidia.org/codigo-de-hamurabi-a-primeira-contribuicao-para-a-civilidade-veio-da-asia-ocidental/

Embora bastante avançadas em seu tempo, nem a Babilônia e nem a Assíria conseguiram firmar seus impérios, pois não conseguiram alcançar o sentido universal de ordem política, próprio do império, limitando-se às características e realidades das suas respectivas cidades-estados. Enquanto a dominação a

Assíria degenerou em brutalidade e extermínio, a Babilônia se desorganizou internamente, com as recorrentes tentativas de usurpação do trono e com a crescente separação entre o governo e as classes influentes, consequência da modernização e secularização políticas experimentadas pela Babilônia ao longo do tempo.

Enquanto a Assíria foi derrotada militarmente por uma coalizão liderada pelos babilônios, esses, posteriormente, foram conquistados pelos persas, dotados de sentido verdadeiramente universal de política e sociedade, consistindo em império no sentido profundo do termo.

Grécia

A Grécia Clássica, a seu turno, constituía uma constelação política dentro de uma unidade etnocultural. As diversas cidades-estados, caracterizadas por sistemas de governanças bastante díspares, eram manifestações diversas do mesmo povo, na ação político-administrativa, formado pela ancestralidade semelhante e comungante das mesmas crenças e deuses, ainda que cada cidade tivesse seu próprio deus protetor.

A polarização entre Atenas e Esparta tornou-se arquetípica e encontra ecos até a atualidade. A dicotomia entre sociedade aberta e sociedade fechada traduz, para a linguagem contemporânea, a dualidade de sistemas sociopolíticos entre Atenas e Esparta, respectivamente.

De um lado, a democrática Atenas, a “sociedade aberta”, fundada na igualdade dos cidadãos, coexistente com grandes desigualdades econômicas e no regime escravista privado.

A governança ateniense, calcada no livre debate público entre os cidadãos – entre os quais não se incluíam mulheres, crianças, escravos e estrangeiros -, logo se corrompeu com a sofística, levando Atenas ao declínio. A condenação capital de Sócrates, que se bateu contra os ardis e a manipulação reinantes, mostra o quão a democracia ateniense estava afastada da excelência ética e política.

De outro, a timocrática Esparta, a “sociedade fechada”, fundada na militarização social e na insignificância da propriedade particular, o que assegurou relativo nível de igualdade econômica, contrabalançada apenas pelo escravismo, de todo modo estatal, sem possibilidade de enriquecimento individual.

A governança espartana orientava-se sobremaneira para a guerra, que, por isso, ocupava posição de relevo no sistema educacional estatal. O ideal espartano era o da coragem militar, o que inibia os anseios individualistas por enriquecimento e autopromoção, comuns em Atenas. Serviu, pois, de modelo a distintos pensadores críticos dos modos mercantilistas de organização coletiva, a exemplo de Platão e Jean-Jacques Rousseau.

A Guerra do Peloponeso opôs Atenas e Esparta, com o triunfo da segunda sobre o mundo grego. A hegemonia espartana, contudo, fora precária e instável. A unificação política do mundo helênico se deu no século 4 a.C, com Filipe II da Macedônia, que conquistou as cidades-estados gregas com vista a preparar o ataque contra a Pérsia, que seria derrotada por seu filho Alexandre.

A Macedônia contava com sistema administrativo de alto nível, operado por aristocracia refinada e culturalmente elevada. O esplendor macedônico dos tempos de Filipe II ganhou alcance universal no reinado de Alexandre, que estendeu o helenismo ao oriente, levando-o até a Índia. Alexandre herdou do pai o respeito à autonomia e aos modos de vida dos povos conquistados, de modo a incorporá-los e não subjugá-los, em muitos casos até os ajudando a recuperar a identidade perdida. Não eram os povos, mas príncipes que ele submetia.

A grande inovação alexandrina consistiu em promover decididamente a miscigenação étnica e cultural dentro do império, de modo a fortificar e universalizar o helenismo em sua marcha orientalizante. Como afirmou um historiador, “Alexandre fundiu, em suas formas supremas, a ardente vitalidade da Grécia, que aspirava a encontrar um corpo, e as massas inertes da Ásia, que aspiravam a encontrar uma alma” (Johann Gustav Droysen, “Alexandre o Grande”, 2010).

Não seria o Brasil, império igualmente mestiço, continental e jovial, a Macedônia da modernidade? Não seríamos nós os herdeiros da missão de universalidade e integração dos povos outrora planteada por Alexandre?

IV – A espada e a lei romana

Ensaio sobre a governança: a espada e a lei romana

Impondo-se inicialmente pela espada, Roma deixou para o mundo ocidental a lei como base da governança. Das vertentes com as quais se construiu a governança no Ocidente, assim entendido os povos do Atlântico, uma está o direito, formalmente estabelecido pela sociedade, outra está na sujeição do homem a um Deus, mas, sempre, o uso da força.

A história de Roma agrega mitos, obras literárias e realidades arqueológicas, mas é o fratricídio que dá início à construção da civilização romana, e é um indício que a espada representará a primeira força do poder. Porém o realismo dos governantes imporá, pela construção da lei, a governança para abrigar a diversidade de povos que habitavam, no século 8 a.C., o espaço entre os rios Pó, Reno e Volturno, os falares: etrusco, úmbrico, sabino, volsco, marso, peligno, falisto e latino.

Esta incorporação de povos e sua miscigenação, que está na própria origem de Roma, será das principais forças para a manutenção do Império como nenhum outro até então conseguira construir.

Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.), autor da célebre História de Roma (“Ab Urbe condita”) assinala que os etruscos, ao conquistarem um território, regularizavam o curso dos rios, construíam aquedutos e esgotos, davam prosperidade aos locais e se misturavam com os nativos. Esta herança será deixada aos romanos em suas ações conquistadoras: a força, a lei e a interação social.

A expansão das tropas romanas, seus deslocamentos, suas estratégias e táticas de luta são por demais conhecidos, para que se detenha na governança pela espada. Poderíamos acentuar a questão da integração, com as cavalarias númidas, os guerreiros hispânicos, germanos e trácios. Também as reformas introduzidas pelo general e político Caio Mário (157-86 a.C.), na República, que permitiram a incorporação dos “proletários” nas legiões e a uniformização dos armamentos. São demonstrações do entrosamento dos latinos com demais povos.

Mário também deu ao exército função permanente; até então ele era organizado no mês de março (primavera) e desmobilizado no outono.

Os romanos não eram apreciadores do mar, embora fizessem comércio e fossem obrigados ao deslocamento pelo Mediterrâneo. Catão, o Velho, se penitenciava de haver viajado por mar quando poderia tê-lo feito por terra. Leo Bloch (“Les institutions romaines”, 1898) assinala: “Os romanos não equiparavam o serviço na frota ao serviço militar” e “somente em casos excepcionais eram organizadas grandes frotas ao serviço do exército e para proteção do litoral”.

Após a República, no Império, Roma já dispensava a frota, o Mediterrâneo se transforma no “Mare Nostrum” e a marinha estava dividida em oito esquadras para luta contra piratas.

IUS CIVILES

Importante elemento da governança romana é o direito. Foi o que mais influenciou o Ocidente mesmo quando Roma era apenas uma página da história dos povos. Lévy-Bruhl (1857-1939), sociólogo e pensador francês, distingue três características no Direito Romano, assim discorridas por Vandick Londres da Nóbrega (“Compêndio de Direito Romano”, 1970, 6ª edição revista e aumentada).

“O positivismo do direito romano manifesta-se através do seu laicismo, de sua inspiração mercantilista e da predominância dada à expressão da vontade”. Nóbrega assinala que “o povo romano era supersticioso, não religioso”, daí seu direito ser laico. Neste direito, a questão econômica se manifesta na mercancia, nas trocas, nas transações, e na precisa definição das coisas, mas não na construção de fortunas ou acúmulo de bens. E, por fim, é dada importância à manifestação, à expressão da vontade ao invés de inferi-la, de buscar intenções, limitando assim a esfera dos julgadores.

A legislação tinha também o título de “Ius Civile”, pois nela se encontravam os direitos das pessoas, sua família, seus negócios, e não o que denominamos público, ou seja, de interesse do Estado. Os aspectos mercantilistas, que aparecem na propriedade e nas obrigações, dizem respeito ao indivíduo não à coletividade. O direito romano não é um direito de cidadania, é um direito liberal, de direitos e deveres individuais, onde se encontram as disposições sobre os ritos dos processos.

Os capítulos do direito romano são: direito das pessoas, direito da família, direito das sucessões, direito das coisas, direito das obrigações e direito processual.

A permanência do Direito Civil Romano pode ser vista, por exemplo, no Código Napoleônico, ou Código Civil dos Franceses, de 1804, que trata das pessoas (livro I), dos bens e das diferentes modificações da propriedade (livro II), dos diferentes modos pelos quais se adquire a propriedade (livro III, onde estão o casamento, a sucessão, a doação, os contratos e as diferentes espécies de obrigações, com disposições processuais).

Comparando com o Código Civil Brasileiro, de 2002, vê-se que apenas não trata dos processos, que constituem código brasileiro específico, existem nele dois grandes grupos: Parte Geral e Parte Especial. A primeira comporta três divisões, designadas por Livros: (a) das pessoas; (b) dos bens; (c) dos fatos jurídicos. A parte especial é composta dos Livros sobre: (a) do direito das obrigações; (b) do direito da empresa; (c) do direito das coisas; (d) do direito da família; e (e) do direito das sucessões.

“Lex societatis vinculum est”, a lei é o laço que envolve toda sociedade, afirmava o político, escritor, orador e filósofo romano Cícero (106 a 43 a.C.). Para Montesquieu (1689-1755), a lei objetiva estabelecer regras para governar a sociedade, com suas diferentes instituições, mas que devem ter por objetivo o bem comum.

A formação do direito romano foi o longo processo que acompanhou a história daqueles povos autóctones da península italiana, por mais de 800 anos. Patrícios e plebeus uniram suas cúrias, pelo ano 753 a.C. para organizar a Monarquia, sua primeira governança. Organizaram um poder que conversava com os deuses, dos Sacerdotes, outro com os homens, o Senado, e ambos assessoravam o Rei, que falava ao povo, fundamentalmente latinos e sabinos, nas colinas próximas ao rio Tibre, com eventuais participações etruscas, que por lá faziam incursões periódicas. Mas foram os etruscos quem deram a estrutura que formou a cidade de Roma.

Os reis etruscos passaram a governar Roma a partir de 640 a.C. até 509 a.C., quando foi deposto Tarquínio, o Soberbo, e tem início a República, com outra e mais complexa estrutura de governo.

O período da República de 509 a 27 a.C. foi dos mais férteis para o poder romano. Nele se deu a origem da Lei como poder, com a revolta de 445 a.C., a Lei das 12 Tábuas (Lex Duodecim Tabularum), e a repartição do poder.

A sociedade continuava dividida, apenas os patrícios gozavam de todos direitos civis: ius suffragii – direito de votar, ius honorem – direito de exercer cargo público, e ius occupandi – direito de ocupar as terras conquistadas.

Os comícios das centúrias e das cúrias elegiam os censores, cônsules, pretores, edis, tribunos e questores, que escolheriam os 300 (depois 600) senadores que nomeavam o ditador. Em 471 a.C., a plebe constitui sua própria Assembleia que elegerá tribunos e edis, e deterá o poder de veto nas cúrias.

A Lei das 12 Tábuas veio reduzir o direito consuetudinário e possibilitou criminalizar patrícios e reduzir seu poder, como o loteamento do monte Aventino, em 454 a.C. e o envio de comissão a Atenas, para estudar os costumes, usos e leis das cidades gregas.

As guerras púnicas, a expansão romana pela Ibéria, Numídia, península balcânica, por todo entorno do Mar Mediterrâneo, obrigou a organizar as províncias e a constituir, ao lado do “ius civiles” o direito dos então numerosos estrangeiros que existiam sob o poder romano, o “ius gentium”.

Se o Império foi o ponto alto do poder, também significou a incorporação de inúmeros usos, costumes, muitas vezes contraditórios entre si, e uma religião, surgida na Galileia, que conduziu Roma ao fim.

A GOVERNANÇA NO IMPÉRIO

Sálvio Juliano (circa 100-170 d.C.) “nem todos os artigos podem ser compreendidos detalhadamente pelas leis ou pelas consultas ao Senado; mas quando, em determinado caso, a manifestação for clara, o direito evidente, inquestionável, aquele encarregado da aplicação jurisprudencial procederá como já estabelecido e, assim, pronunciar-se-á o direito”.

No período entre 133 e 27 a.C. a República se desintegra e surgem diversas reformas na governança de Roma até que César, pela espada, junta poderes que obriga o Senado a lhe conceder os títulos de Sumo Pontífice, de Ditador Perpétuo, de Censor Vitalício, de Cônsul Vitalício, e do Poder Tribunício, que o torna sagrado. E César ainda pretende que estes poderes sejam hereditários. É óbvio que nenhum patrício e mesmo muitos homens do povo não queriam um faraó em Roma. Por mais notáveis que fossem sua capacidade, conhecimento, forte personalidade, e realmente era um homem como poucos, a divinização em vida estava fora das expectativas de um Imperador no estágio sócio-político que já atingira a sociedade e a governança romanas.

Augusto, Imperador pela espada, teve a compreensão política ou a hipocrisia que faltou a César, e foi efetivamente quem inicia o Império Romano.

Estava num ápice de expansão: Mauritânia, Cirenaica, Egito, Arábia, Judeia, Síria, Armênia, Capadócia, Trácia, Macedônia, Creta, Nórica, Récia, Bélgica, Aquitânia, Lionesa, Lusitânia, Bética entre numerosas outras regiões estavam subordinadas diretamente ao Imperador, ou ao Sendo ou eram protetorados romanos. O governo de Augusto vai de 27 a.C. a 14 d.C.

Reformou os poderes e atribuições. Os magistrados tinham agora somente funções civis. Os senadores tinham o controle administrativo de Roma e na península italiana, estavam encarregados do Tesouro e da emissão de moedas de cobre. As de ouro e prata eram atribuições do Imperador. Augusto criou um Conselho, para seus amigos, que chegou a ser mais importante do que o Senado. Nas províncias, separou o poder militar do poder civil, sendo que o primeiro respondia diretamente ao Imperador.

Fez dividir a sociedade plutocraticamente em três ordens: senatorial, para os que possuíam mais de 1 milhão de sestércios; equestre, para os de mais de 400 mil sestércios; e inferior, com menos de 400 mil e sem qualquer direito. Apenas os primeiros possuíam todos direitos políticos, e aos equestres estavam reservados alguns cargos no exército e na administração civil.

Muito explorada pelos analistas da queda de Roma é o relaxamento dos costumes, que fica evidente nas distinções pela riqueza e pelo poder militar que garantia a paz. Buscou restaurar os antigos deuses, que tinham as ambições e comportamentos humanos, favorecendo práticas pouco austeras de vida.

Pode-se entender que esta lassidão, aliada à segurança e à riqueza, fizeram com que no Império surgissem os Calígulas, Cômodos, Neros e estivesse Roma apta a receber a palavra de humanidade e igualdade trazida pela religião católica.

Outros fatores, tão ou mais importantes quanto, foram o atraso tecnológico-industrial de Roma, que a levou a ter crescentes déficits comerciais com a China, então principal potência manufatureira, e o exacerbado municipalismo, que, a pretexto de conferir autonomia aos diferentes povos do império, dificultou o exercício do poder central, como, por exemplo, na coleta de impostos.

Apesar da imagem de Roma brutal e sanguinária, consagrada pela propaganda anglo-saxã, muito mais afeita ao império financeiro-comercial de Cartago, o Império Romano foi o mais pacífico e benfazejo já existente. Sua posição militar era basicamente defensiva, e a consequente paz duradoura foi utilizada em favor de obras públicas, como as majestosas estradas e suntuosas utilidades urbanas (aquedutos, termas, estádios etc.) e políticas sociais, como leis do máximo e distribuição de víveres, que garantiram a todos padrão de vida suficiente e relativamente próspero. A cidadania universal dos romanos uniu uma miríade de povos sob os auspícios generosos dos imperadores, que, se se autoproclamavam divinos, também permitiam a liberdade de culto às centenas de religiões existentes no perímetro imperial.

Porém a estagnação econômica e o arranjo descentralizado logo se fizeram pesar, debilitando a posição estrutural do Império, cuja grandeza territorial demandava largos recursos, cada vez mais inacessíveis. As províncias foram as primeiras a sofrer as consequências, com o patriciado rural inaugurando práticas proto-feudais de domínio, subtraindo-se aos comandos de Roma.

Esta situação nas províncias, a partir do século 4, facilitou a penetração dos povos vizinhos (saxões, francos, alamanos e outros germânicos, os vândalos, visigodos e ostrogodos) e insurreições na península ibérica e outras províncias, que não teriam provocado tantos estragos na governança romana, fosse outro o espírito da época que encontramos no Império.

V – O Tomismo Medieval

Ensaios sobre as governanças: o tomismo medieval | Monitor Mercantil

Como se observa em diversos momentos da história das sociedades humanas, há progressos e retrocessos, momentos de grandeza e momentos de decadência. Confúcio (552 a.C.), no declínio da realeza Zhou, ganhou seu lugar na história pela reflexão do homem sobre o homem, na aposta no homem. Mais de 1800 anos depois, com o doutor da Igreja, Tomás de Aquino (1225-1274), é colocada a questão dos efeitos do governo divino. O homem passa a ser um servo de Deus.

Na Suma Teológica, a questão 103 trata do governo das coisas em geral, onde encontramos a lógica aristotélica “quando se entra numa casa bem arrumada, esta arrumação ordenada permite perceber a presença orientadora do senhor da casa”.

Mas quem é o senhor da casa, senão aquele que é o princípio e o fim de todas as coisas?

Os deuses que os homens adoravam, reverenciavam nos primórdios da História, eram seres vivos e mortos que faziam parte do seu cotidiano, de reis que eram divinizados, até que surgiu o monoteísmo hebraico.

Lá pelo ano 2000 antes da Era Cristã, grupo semita, cercado de reinos e poderosos vizinhos, ricos, habilidosos e/ou guerreiros – egípcios, caldeus, hititas, sumérios, fenícios, babilônios – que há muito não mais existem, para se considerar igualmente importante, criou um Deus só para eles: Javé ou Jeová. Foi o primeiro povo monoteísta da História e sua religião e as diversas que dela surgiram influenciaram profundamente as governanças da sociedade, e ainda hoje o fazem.

Pode-se entender que o catolicismo, com o Novo Testamento e a Igreja Católica, de São Pedro, foi de enorme influência na governança europeia e difundida como religião dos colonizadores, pelo mundo.

O catolicismo proporcionou unidade espiritual à constelação política da Europa medieval. Mais do que isso, operou como elemento de transcendência, dotando os governantes e governados da época de sentido superior de vida e de sociedade, o que, se não impediu a injustiça e a tirania, ao menos as mitigou, atribuindo-lhes o selo da ilegitimidade e estabelecendo os fundamentos éticos de justiça pelos quais até hoje se luta, de forma mais ou menos secularizada mas, de todo modo, cristãmente originada.

Na “Suma Teológica” três questões da 1ª Parte (103,104 e 105) tratam do “Governo Divino”.

O governo das coisas em geral.

Do artigo I, da Questão 103: “Dessa forma, a necessidade natural das criaturas demonstra o governo da divina providência”.

A ideia que se impõe é que Deus não age como um fator externo, mas “de dentro” dos homens. Faz parte de sua natureza, cabendo ao Divino assegurar o auxílio que o homem necessita para bem realizar o seu papel de agente, cuja existência se deve a Deus, para cumprir aquilo para o qual foi criado: agir em nome do Criador.

Pode-se considerar até que ponto esta governança divina limita a capacidade do homem e o faz cometer os maiores horrores como as guerras santas, cruzadas, morte aos infiéis, pecadores, ignorar outras culturas nas catequeses e as inquisições.

Tal é a leitura feita pelos iluministas. Porém, a própria crítica humanista por eles estabelecida às governanças medievais era mais cristã do que supunham, pois se baseava na dignidade intrínseca do ser humano, ideia que somente ganha foro universal com a mensagem de Cristo, dirigida a todos indistintamente.

Se o pecado ou o crime não deriva das relações na sociedade, mas do cumprimento e da obediência aos desígnios celestes, a possibilidade de salvação ou de condenação não está neste mundo. Facínoras em nome de Cristo e da Igreja nunca faltaram, porém eles nunca foram legitimados pelo conteúdo profundo do sagrado vigente.

Ao discorrer sobre esta questão: o fim do governo do mundo é algo exterior ao mundo, Tomás de Aquino afirma que a resposta está no livro dos Provérbios – “o Senhor fez tudo para si próprio”. E conclui: “Deus é exterior a toda ordem do universo. Por conseguinte, o fim das coisas é um bem extrínseco”. Porém, como existe a hierarquia, a ordem que se impõe na sociedade, é necessário separar pelo critério finalista o que obter e sua governança.

É evidente que o bem tem uma razão finalista. O fim particular de uma coisa é um bem particular, enquanto um bem universal de todas as coisas é um bem universal.

Assim, Tomás de Aquino introduz um novo questionamento: há um único governo no mundo? E a resposta introduz a dialética.

Se existe conflito e desacordo entre as criaturas é prova da existência de contrários e cita o livro do Eclesiástico: “É sempre melhor estarem dois juntos do que um só”. Logo o mundo estaria governado por vários.

Mas o governo do mundo nada mais é do que a condução dos governados para o fim, que é um bem. Assim, a intenção daquele que governa a multidão é a unidade e a paz. E o governo do que é melhor só pode ser obra de apenas um governante.

Esta ideia do mundo unificado e hierarquizado coloca a visão tomista na organização da sociedade. O mundo das naturezas prossegue para um fim único ao longo de conflitos – que são conduzidos para fins imediatos. Mas todos convergem para o fim universal, único, de Deus.

O efeito do governo leva à resposta de Tomás de Aquino, que transcrevemos da Suma Teológica, Questão 103, artigo 4:

“O efeito de uma ação pode ser considerado a partir de seu fim, pois é pela execução que se consegue alcançar o fim. O fim do governo do mundo é o bem essencial, e todas as coisas tendem a assimilá-lo e dele participar”.

Porém o efeito do governo pode ser aceito ou compreendido de três maneiras: a partir do próprio fim, a partir das coisas que levam as criaturas à assimilação divina, e pelos efeitos do governo divino, que podem ser tomados caso a caso e são, portanto, inumeráveis.

E Tomás de Aquino já se precavia contra acusação de imobilismo ao afirmar que dois eventos eram estabelecidos por Deus: da conservação e da transformação, “na medida em que uma coisa é movida para outra melhor”.

Pode acontecer algo fora do governo divino ou oposto a ele?

Paulo, na Carta aos Coríntios dispõe: “Deus não se ocupa de bois”. E Tomás de Aquino adiciona: “Cada um tem de cuidar das coisas confiadas a seu governo”.

Deus é causa universal, não particular de todo ente. E, prossegue argumentando: “Sob o Sol estão as coisas que, conforme o movimento do Sol, são geradas ou se corrompem. Em todas elas se encontra o acaso; o que não significa que tudo o que nelas acontece seja casual, mas que em cada uma delas pode-se encontrar algo casual. O próprio fato de que se encontre em tais coisas algo casual demonstra que estão sujeitas ao governo de alguém”.

De quem mais estão sujeitas as coisas? “Fora da ordem de alguma causa particular é possível que aconteça algum efeito, não fora da ordem de uma causa universal”.

Aqueles que pensam, falam ou agem contra Deus não se opõem totalmente ao governo divino, porque mesmo os pecadores tendem para algum bem. Mas se opõem a um bem determinado que lhes é conveniente por natureza ou por estado. E, por isso, são punidos por Deus com a justiça.

O mundo medieval europeu.

Paul Vignaux (1904-1987), filósofo e medievalista francês, em “La Pensée au Moyen Âge”, 1938, escreve: “Ao lado do Sacerdócio e do Império, a Universidade surge aos contemporâneos como uma das três forças da Igreja Universal”.

A Universidade compreendia quatro “faculdades”: direito, medicina, artes e teologia.

Conforme Tomás de Aquino, a teologia considerava as coisas e a significação das palavras, porque para que se alcançasse a salvação; não se necessitava apenas da fé, mas relacioná-la à verdade das coisas, que estava nas palavras, nos nomes. Era o pensamento aristotélico que mais duradouro influenciou o pensamento ocidental.

Recordemos que o pensamento chinês não procede tanto de maneira linear ou dialética e sim em espiral. Ou seja, não trata do significado das coisas, das palavras, mas de todos os relacionamentos que ela permite, das variedades de situações em que encontramos um pictograma, e que alteram seu significado. Numa concepção existencialista, pode-se dizer que não há essências, há existências, diferentemente de Aristóteles e Tomás de Aquino.

Aristóteles e sua revisão tomista serão tão importantes para a governança ocidental quanto Lao Zi e Confúcio para a oriental.

Vignaux afirma que os medievais não conheceram Platão como se debruçaram sobre Aristóteles (“o homem é um animal de linguagem”), a quem denominavam “O Filósofo”. “Liam seus livros nas escolas não apenas para aprender a arte de discutir como para compreender a natureza das coisas”.

Aristóteles e seus seguidores, que tratam mais dos textos do que das coisas aos quais se referem, tiveram muitas traduções, que levou seu pensamento a influenciar tanto os pensadores árabes quanto judeus.

Porém é no século 13, em Tomás de Aquino, que o homem adquire consciência da herança dos antigos, da filosofia aristotélica, e surge o conflito entre o humano e o divino, a natureza e a graça, que não conduz necessariamente ao conflito, mas leva, também, ao equilíbrio, à acomodação, à harmonia que será fundamental para manutenção das hierarquias, das governanças com as transformações que ocorrerão com o descobrimento do Novo Mundo.

A sociedade medieval se transforma entre os séculos 12 e 15. Esta sociedade é melhor designada como estamental, ou seja, cada pessoa estava presa à sua condição que compreendia o senhor, que possuía a terra, detinha o monopólio dos poderes político, militar e “judiciário”, e mantinha servos.

Havia, ainda, os “vilões”, homens livres que deviam obrigações aos senhores, embora pudessem transitar pelas propriedades, os escravos, empregados domésticos, que não podiam ser cristãos, e os ministeriais, que exerciam a administração a serviço dos senhores, e se classificavam, dependendo da extensão das propriedades, em bailios, as menores, e senescais, vários domínios de um mesmo senhor.

Os mosteiros tinham a mesma estrutura de domínio dos senhores feudais, ao que se agregava o monopólio da cultura e, principalmente, da interpretação da realidade social, sempre numa perspectiva religiosa, como da compreensão tomista, aristotélica. E era a única capaz de conduzir o homem à salvação eterna.

O catolicismo ensina que todos são irmãos, ainda que, na prática social, sempre imperfeita do ponto de vista do Absoluto, aceita que uns poucos sejam “mais irmãos” do que outros (!).

No século 13 começa a transformação da Idade Média, que Vignaux, na obra citada, denomina da “Diversidade do Século 13”.

Além da mística especulativa, do provável na metafísica, das crises da física aristotélica, surge um voluntarismo que domina tanto a vontade de Deus quanto a dos homens. Para os franciscanos Escoto (Irlanda, 815 a 877) e Occam (Londres, 1285-1347, Munique), a união de Deus com os homens se opera por um ato de vontade.

Os sucessivos embates entre o poder temporal dos reis, príncipes e imperadores e o poder secular dos sacerdotes e do Papa, bem como a proliferação de seitas e cismas dissidentes do papado, resultaram no declínio da hegemonia dos Papas.

A modernidade inicia-se com o esvaziamento da unidade espiritual europeia e a transformação dos reinos estatais em unidades territoriais autossuficientes do ponto de vista até mesmo religioso, haja vista o poder espiritual concedido pela reforma protestante aos reis que a ela aderiram, com a criação de igrejas estatais na Inglaterra e na Escandinávia.

Ao que se adicionam as transformações sociais e econômicas pelas importações asiáticas e pela emergência política e econômica dos burgueses, que se tornaram aliados e financiadores dos reis e príncipes na busca deles pela expansão do poder territorial e pela centralização administrativa.

Um exemplo foi o conflito entre Felipe, o Belo, rei de França, e o Papa Bonifácio 8º. Bonifácio exigia não pagar impostos ao poder temporal e exigia o reconhecimento da supremacia do poder religioso sobre os reis. Em 1303, edita a bula “Unam Sanctam” que resulta na prisão e morte, no mesmo ano, de Bonifácio 8º. Em 1305, Clemente 5º inicia uma série de papas sob tutela dos reis de França, os “Papas de Avignon”.

Se com o fim da Idade Média a unidade do cristianismo chega ao fim, a influência do pensamento religioso, do misticismo se entranha nas governanças ocidentais.

Com a Reforma de Lutero (1517) e uma sequência de interpretações e de interesses, por vezes meramente econômicos, que acompanham as religiões e as governanças, as relações igreja-poder permanecem até o século 21.

Contudo, tais relações sofrem paulatino processo de secularização que, ao fazer do homem fim em si mesmo, se de um lado ampliou seus poderes de intervenção política, de outro fechou as portas à transcendência e enfraqueceu as bases éticas do poder, facilitando o trabalho dos totalitários de todo tipo, inclusive dos econômico-financeiros, cujo governo é tão absoluto quanto não-declarado, oculto por trás de governos de fachada.

VI – Iluminismo construtor de Estados

Ensaios sobre as governanças: Iluminismo construtor de Estados | Monitor Mercantil

Longo foi o processo de formação dos Estados nacionais europeus, movido pelos conflitos de poder entre os reis e o papado desde a Idade Média. O império católico que unificou espiritual e culturalmente a constelação política da Europa feudal foi crescentemente contestado pelas autoridades temporais, que, aliadas à emergente burguesia, centralizaram seus respectivos territórios e passaram a dispor de recursos cada vez mais volumosos para a efetivação da sua vontade de poder.

A Igreja jamais deixou de acalentar a pretensão de reviver o Império Carolíngio, sobretudo no reinado de Carlos Magno (800-814), quando a banda ocidental do antigo Império Romano foi politicamente enfeixada pela autoridade central do rei cristão servo da Igreja.

Porém, a eclosão da Reforma Protestante, com vários reis anglos, germânicos e nórdicos se declarando autoridades não apenas políticas mas, igualmente, religiosas, cindiu de vez a unidade espiritual europeia e fortaleceu o nacionalismo. Obrigando, assim, a Igreja a se associar mais fortemente ao expansionismo colonial das Coroas ibéricas a fim de compensar, com a ocupação da América, a perda de fiéis no Velho Mundo. Federico Gonzalez Suarez (“Defensa de mi critério histórico”, Ed. Municipal, Quito, 1937), defendendo a Moralidade Católica – “melhor será servida a Pátria, quanto maior os esforços para garantir que a moral católica permanece pura, sem engano ou superstições” – computa mais de 400 religiosos na cidade de Quito (Equador), em 1640.

Com a Paz de Vestfália, em 1648, chega ao fim qualquer possibilidade de reviver a unidade imperial cristã tal como exercida por Carlos Magno. Em seu lugar, se aceitou a soberania das nações dentro da civilização cristã cindida pela Reforma Protestante. A Paz de Vestfália, efetuada pela liderança da Holanda, potência capitalista e financeira de então, consagrou o sistema acéfalo de equilíbrio internacional de poder, baseado nas soberanias dos nascentes Estados nacionais, sem um centro de poder capaz de impor sua pax.

Ao mesmo tempo, possibilitou ao setor financeiro holandês tirar proveito das disputas interestatais resultantes – ainda na década de 1760, praticamente todos os governantes europeus procuravam os prestamistas batavos –, alimentou, nos demais países, políticas econômicas nacionalistas, erroneamente chamadas mercantilistas, com o objetivo de estimular as manufaturas e as armas para, assim, sobrepujar comercial e militarmente a Holanda.

O sistema europeu de Estado, caracterizado por uma “anarquia internacional” entremeada de confrontamentos militares e bélicos, foi a condição e a base do desenvolvimento do moderno Estado-nação. O clima permanente de guerra estimulou a organização centralizada dos recursos administrativos e econômicos em prol dos interesses bélicos dos países, enquanto o capitalismo transnacional das finanças holandesas se relacionava com todos.

Estados, finanças e razão iluminista.

O caso mais flagrante foi a França de Luís XIV (1643-1715), na qual o ministro Richelieu consagrou, como princípio de governança, a ideia de “raison d’état” (razão de Estado), isto é, a prevalência do interesse nacional sobre qualquer moralidade universal. O Estado nacional deveria ser erguido sobre bases essencialmente mundanas, para que sobrevivesse em um contexto internacional altamente fragmentado e competitivo. Assim, ele deveria prevalecer tanto internamente, com a repressão a oligarquias dissidentes ou insubordinadas, quanto externamente, pela superioridade dos meios técnicos e materiais no âmbito do comércio e da guerra, as principais formas de relações internacionais.

Nesse contexto, o processo correlato de pacificação interna e desenvolvimento técnico-científico-industrial endógeno, inclusive pelo estabelecimento de empreendimentos empresariais, despontou como a questão estratégica de Estado para proteger o seu respectivo país do poderio estrangeiro, sobretudo o holandês, e assegurar as bases materiais da autonomia nacional, o que fortaleceu o desenvolvimento capitalista.

Há, assim, estreita vinculação histórica entre a expansão do capitalismo financeiro e comercial, pois o industrial estava por surgir, e a consolidação do Estado moderno.

Naturalmente, a busca política pelo enriquecimento econômico valorizou a razão instrumental e a ciência de forma nunca antes vista. Paulatinamente, as sociedades europeias mais estatizadas passaram por processo de modernização, isto é, de substituição das cosmovisões tradicionais, fundadas em princípios religiosos e transcendentais sacramentados pelo costume, pelo racionalismo utilitário e individualista, mais voltado a transformar a realidade empírica do que a garantir espaço no Céu, no além-mundo.

A valorização da razão e da ciência encontrou seu apogeu no século 18, durante o Iluminismo. A concepção iluminista não se limitava a enxergá-las como atributos e exercícios individuais, mas como princípios morais para a reorganização das instituições sociais. O progresso histórico das sociedades dependeria do quanto de razão e ciência elas incorporassem. O Iluminismo era otimista em relação à capacidade humana de estabelecer formas sociais e políticas que encarnassem o progresso racional e científico.

O Iluminismo representou o progresso de forma sobremaneira (mas não exclusivamente) econômica. O desenvolvimento da riqueza das nações se tornou objetivo cada vez mais presente nas governanças reais europeias, pois somente a ampliação da riqueza, da tecnologia, da produção e do comércio asseguraria a posição e as pretensões de poder dos governantes.

O desenvolvimento econômico constituía a realidade material do período, caracterizada pelo aperfeiçoamento dos conhecimentos e da sua aplicação aos processos produtivos, assim como pela ascensão política da burguesia comercial, industrial e financeira e pela modernização da estrutura social.

O otimismo característico da época considerava que a expansão econômica aprimoraria a ordem política ao ampliar o leque de possibilidades de exercício dos “calmos” interesses aquisitivos individuais e refrear as “violentas” paixões dos governantes.

A depuração da arte de governar dos elementos despóticos acarretados pela busca desastrosa e sôfrega pela glória e pelo poder permitiria a reorganização das instituições políticas no sentido favorável à contínua expansão econômica.

O desenvolvimento econômico assumiu posição central na construção estatal iluminista. A “política baseada em ciência” do Iluminismo era a gestão biopolítica e territorial voltada para o fortalecimento dos instrumentos de exercício do poder nacional, como a economia.

O “despotismo esclarecido”, termo com que a tradição liberal viria a depreciar o reformismo levado a cabo pelos monarcas do século 18, nada mais consistiu senão na modernização das estruturas políticas para ampliar a capacidade de direção e controle estatais da expansão das manufaturas e do comércio, no interesse político-militar dos reis.

Várias reformas foram empreendidas no sentido de aplicar os preceitos e métodos científicos aos mais diversos âmbitos da vida social, com o objetivo de promover a grandeza nacional e consolidar a robustez dos Estados num momento histórico de acentuação da complexidade geopolítica e, portanto, de necessidade da sofisticação dos recursos de poder.

Em Portugal, ao qual na época ainda pertencíamos, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1756 -1777), fortaleceu a autoridade política da Coroa combatendo o “Estado dentro do Estado”, isto é, as oligarquias religiosas e nobiliárquicas que tomavam como propriedade particular as funções e atribuições públicas. Pombal adotou uma política francamente industrialista com o fito de reduzir a subjugação econômica de Portugal em relação à Inglaterra , assim, fortalecer o Estado nacional.

Criaram-se várias manufaturas e companhias reais de comércio, aboliu-se a escravidão em Portugal, baniram-se os jesuítas, reformaram-se os currículos universitários para substituir a antiquada escolástica pelas modernas ciências naturais e estimulou-se a ocupação das colônias, inclusive com o estímulo aos casamentos interétnicos no Brasil.

Na Rússia, Catarina II (1762-1796) aprofundou a obra modernizadora de Pedro, o Grande (1682-1721) e consolidou a Rússia como grande Estado imperial. A anexação da Criméia e de outras regiões manifestou a pujança do Império Russo, engrandecido com as políticas desenvolvimentistas de Catarina II.

Tais políticas foram codificadas na chamada Instrução, conjunto de diretrizes legislativas acerca de questões jurídicas, demográficas, sociais e econômicas. Com base na “Instrução”, foram concedidos monopólios e privilégios a fabricantes estrangeiros, procurando importar tecnologia em vez de capital externo, procurando desenvolver internamente a primeira para que o país não dependesse do segundo.

Também se determinou a criação de escolas primárias e secundárias em todas as províncias, entre elas a primeira escola russa para meninas, o Instituto Smol’nyi, criado em 1764, contribuindo para formar quadros técnicos e nova mentalidade, mais aberta ao desenvolvimento econômico em marcha na maior parte da Europa.

Consequentemente, a Rússia conheceu forte desenvolvimento industrial. Em 1725, havia 233 manufaturas na Rússia; em 1796, no último ano de reinado de Catarina II, somavam 3.360, sem contar minas e siderúrgicas. A Rússia não era atrasada em relação à Europa, como, aliás, jamais foi.

Na Prússia, Frederico II (1740-1782) considerava-se o “primeiro servidor do Estado”, colocando-se, portanto, abaixo do Estado nacional. Voltaire era o seu conselheiro pessoal. Frederico II tinha clara a noção de que a força político-institucional e militar do Estado dependiam, sobremaneira, do nível de desenvolvimento industrial do país.

Por isso, ele adotou políticas protecionistas e industrialistas em larga escala, e, neste processo, criou novas instituições que se tornaram vigas-mestras do poderoso Estado prussiano, como a “Seehandlung”, misto de agência comercial, banco de desenvolvimento e holding industrial. Frederico II, assim, construiu grande parte do poderio econômico, administrativo e militar prussiano, que, no século 19, viria a unificar a Alemanha sob a sua égide.

O Iluminismo modificou profundamente as governanças no século 18 no sentido de fortalecer a capacidade administrativa e executiva dos Estados nacionais, afastando a política dos receituários morais e universais e engajando-a nos processos de desenvolvimento econômico que viriam a ser decisivos para a reconfiguração do poder mundial no século seguinte, quando a Europa ocidental, industrial e imperialista, definitivamente unificou o mundo no sistema capitalista e tornou universal e inescapável o seu próprio padrão de modernização.

Somente na segunda metade do século 20, a partir da Conferência de Bandung, os demais povos passaram a colocar, como horizonte, a afirmação geopolítica das suas próprias civilizações e padrões culturais pelo desenvolvimento econômico, devolvendo o Iluminismo e seus valores para o seu local de origem.

VII – Totalitarismo Estadunidense

Marítimo norte-americano (foto reprodução American Maritime Voices)

 

A história dos Estados Unidos da América (EUA) é a história da construção de modelo de governança e de Estado que permitisse afirmar não só a independência política e econômica em relação à Europa mas, e principalmente, sua ambição imperialista e totalitária de hegemonia sobre todo o mundo.

A Independência dos EUA levou à rejeição consciente do modelo de economia colonial ditado pela Grã-Bretanha, com o intuito de criar as condições para a industrialização e, portanto, para o aumento do poder nacional, com o qual os EUA, desde seus primórdios, enquanto Confederação autônoma, pretendiam ditar as regras sobre o restante do mundo.

O “Destino Manifesto” (1845), pelo qual os EUA se viam como encarregados da missão “divina” de ocupar os territórios ao oeste para chegar ao Pacífico e a partir daí exercer domínio mundial, não era simples autoexaltação messiânica, mas projeto de poder calcado na autodeterminação da forma de governo – republicana, e não monárquica – e na autonomia dos processos econômicos – industrial, não primário-exportador.

Segundo os Pais da Independência, especialmente os Federalistas, apenas a centralização administrativa governamental – levada a cabo nas guerras contra a Grã-Bretanha, a despeito da forma estatal confederada, que, ao fim, constituiu-se federação – poderia promover o desenvolvimento, simultaneamente industrial e militar, necessário para completar a obra da Independência e prevalecer no mundo.

A busca da industrialização nacional seria a continuidade e a garantia do processo de autonomização inaugurado pela Guerra de Independência. O desenvolvimento seria, assim, a dimensão do nacionalismo estadunidense, imperialista e chauvinista que fosse. Sem nação, não haveria desenvolvimento. E o desenvolvimento não existiria sem ação decisiva do Governo Federal, para criar as condições infraestruturais e financeiras para a alavancagem da indústria doméstica.

Coube a Alexander Hamilton, primeiro secretário de Tesouro dos EUA, durante a presidência de George Washington (1789-1798), formular o primeiro programa de desenvolvimento industrial dos Estados Unidos, delineado no seu “Relatório sobre as Manufaturas”(1), 1791, que seria a base para as políticas econômicas estadunidenses de praticamente todos os governos que se seguiram desde então.

Para Hamilton, a industrialização dirigida por Washington seria fundamental para a existência da nação recém-independente. Como ele afirmou no Artigo 11 dos “Federalist Papers”: “Sob um vigoroso governo nacional, a força e os recursos naturais do país, dirigidos ao interesse comum, desconcertaria as maquinações do ciúme europeu para restringir nosso crescimento”.

Para Hamilton, o desenvolvimento industrial não seria um fenômeno simplesmente econômico, mas político e geopolítico. Os EUA deveriam proteger seus fabricantes e produtores, expandir infraestruturas e se autofinanciar com sistema financeiro autóctone, para criar amplo e vigoroso mercado interno que aumentasse sua autonomia frente as potências europeias e sua capacidade de defesa e de projeção internacional.

Hamilton foi pioneiro do chamado “Sistema Americano de Economia Política”, definido por Henry Carey, discípulo de Hamilton e assessor de Abraham Lincoln, calcado na rejeição do livre-comércio, então controlado pela Grã-Bretanha, e na adoção do protecionismo sistemático que resguardasse, para cada nação, a soberania sobre seus recursos físicos e humanos, para o desenvolvimento econômico e o equilíbrio social internos.

Carey aponta, em contraste, o Sistema Britânico, também chamado por ele de “Sistema Colonial”, que propugnaria o livre-comércio e a plena abertura das fronteiras econômicas. A destruição das cadeias produtivas dos países economicamente mais frágeis, em prol das manufaturas dos países mais avançados (no caso, a Grã-Bretanha), favoreceria os monopólios ligados ao comércio exterior e engendraria a desorganização doméstica em prol das potências já estabelecidas.

Na história estadunidense, a expansão agrícola ao oeste, baseada na mão de obra livre, na moderna agricultura familiar e nas mais avançadas tecnologias de guerra, que permitiram o confisco de metade do território mexicano, associou-se fortemente ao industrialismo do norte, protecionista conforme preconizado por Carey. Isso fortaleceu, dentro da correlação de forças da federação, o capitalismo industrial e protecionista do norte em detrimento do neocolonialismo agrário-exportador e escravista dos estados sulistas.

Esse realinhamento de forças provocou a escalada de tensões domésticas que culminariam na Guerra de Secessão (1861-1865), quando o Norte, industrial e protecionista, líder da União e aliado ao Oeste em expansão, derrotou militarmente o Sul, primário-exportador e liberal, que ambicionava formar uma Confederação autônoma.

Os estados sulistas foram, então, desligados da órbita informal da Grã-Bretanha e incorporados à economia nacional industrial estadunidense, que, assim, deslanchou uma Revolução Industrial de alcance nacional, liderada pelo capitalismo protecionista do Norte.

O líder da União, representativa das forças do Norte, Abraham Lincoln, era ferrenho defensor do Sistema Americano. Seus sucessores, desde Ulysses Grant (1869-1877), aplicaram sistemática e conscientemente políticas protecionistas e de incentivo à construção de infraestruturas, seguindo a tradição de Hamilton e Carey.

Consequentemente, os EUA expandiram sua malha ferroviária, que saltou de 14.151 km, em 1850, para 85.000 km, em 1880, e para 278.409 km, em 1890; atraíram cerca de 4 milhões de imigrantes entre 1869 e 1892 e, pela Marcha ao Oeste, favorecida pela expansão ferroviária e demográfica, criaram nova classe agrícola, adaptada às técnicas mais modernas com a introdução do arado a vapor.

Formou-se, assim, nos EUA, a partir do aproveitamento das imensas possibilidades geográficas de país continental e bioceânico, uma variante corporativa de capitalismo, caracterizada pela integração vertical de cadeias, processos e subprocessos produtivos, internalizando as transações empresariais dentro de única empresa, reduzindo os custos de transporte e distribuição, agilizando os circuitos industriais e permitindo maior utilização do planejamento de longo prazo, reduzindo as incertezas.

Essa revolução organizacional, que se tornou dominante nos EUA a partir do final do século 19, conferiu ao capitalismo estadunidense imensa vantagem em relação ao britânico, que, caracterizado pela dispersão produtiva entre diferentes unidades e dependente do provimento de matérias-primas e insumos fora do seu território, assegurado pelo imperialismo de livre-comércio, perdeu paulatinamente suas vantagens competitivas frente à antiga colônia. Entre as potências industriais, os EUA passaram do 5º lugar, em 1840, para o 4º, em 1860, para o 2º, em 1870, e para o 1º, em 1895.

O aumento da dívida externa estadunidense, de US$ 200 milhões em 1843 para US$ 3,7 bilhões, em 1914, foi acompanhado de significativo desenvolvimento das forças produtivas a partir da ampla base geográfica e demográfica, que lhe conferiu vantagem, relativamente à Alemanha, outro país que se industrializava rapidamente.

Com a Primeira Grande Guerra, os EUA liquidaram a dívida externa tornando-se credores da Inglaterra, cujo principal devedor, a Rússia, tornou-se insolvente e, ainda mais, caiu em mãos de revolucionários marxistas, deixando a Grã-Bretanha em situação crítica.

A agressiva penetração dos capitais estadunidenses na América Latina, inclusive com o uso da força contra a Espanha no Caribe, permitiu a Washington criar sua zona de influência no restante do continente americano, tomando espaço até então ocupado pela da Grã-Bretanha. Ampliou-se, para todo o Novo Mundo, a esfera de intervenção econômica e militar dos EUA, conforme predito na Doutrina Monroe, de 1823.

Essa situação permitiu, no entreguerras, a equiparação dos EUA a Londres na produção e regulação mundiais do dinheiro, preparando o caminho para a hegemonia do dólar.

A Quebra da Bolsa de Nova York em 1929, que gerou a maior crise do capitalismo desde então, mostrou que, de fato, o centro dinâmico do capital internacional já eram os EUA. O New Deal, enquanto pacto social multiclassista para a recuperação econômica dos EUA na década de 1930, com a eleição do democrata Franklin D. Roosevelt, requalificou o arcabouço tecnológico e industrial estadunidense e atualizou o liame do poder nacional daquele país, capacitando-o a exercer indiscutível liderança geopolítica e geoeconômica após o arruinamento geral da Europa na 2ª Guerra Mundial.

Mundo sempre em mudança.

A hegemonia mundial do dólar finalmente viria ao fim da 2ª Grande Guerra. A ordem internacional pactuada na Conferência de Bretton Woods, em cidade homônima estadunidense no ano de 1944, do Sistema de Bretton Woods, consagrou a liderança do Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos e das novas instituições multilaterais a ela vinculadas, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Bird).

O dólar, ainda associado ao ouro, substitui a libra esterlina como moeda-franca, refletindo, assim, a superioridade da indústria estadunidense e a sua capacidade de centralizar, nos EUA, o comércio internacional.

A preponderância financeira, industrial e tecnológica dos EUA permitiu-lhes atuar na reconstrução europeia após a 2ª Guerra. O Programa de Recuperação Europeia, mais conhecido como Plano Marshall, consistiu na transferência de linhas de crédito US$ 12 bilhões (equivalentes a US$ 130 bilhões, a preços de 2019) dos EUA para os países europeus, alinhados ao bloco capitalista, adquirirem equipamentos estadunidenses.

O Plano Marshall não foi tão determinante para os modernos Estados de bem-estar social europeus, construídos, em sua maior parte, pelos esforços internos, governamentais e societários, dos próprios países europeus. Contudo, teve maior expressão geopolítica pois determinou o alinhamento da Europa ocidental ao bloco militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), criada em 1949 para respaldar militarmente o dólar e, portanto, o sistema internacional de poder liderado pelos EUA.

O “Século Americano” foi a culminância da estratégia nacional de desenvolvimento construída pelos EUA desde a sua Independência, lastreada em governança nacionalista com pretensões imperialistas. O totalitarismo decorrente manifestou-se no controle dos EUA sobre os sistemas informacionais, culturais e militares, sobre toda sua esfera de influência, para não apenas dominar, mas convencer os dominados da legitimidade das hierarquias existentes.

O preço do sucesso, porém, seria a gradativa internalização do sistema financeiro britânico e a capitulação da governança ao que Carey denominou “Sistema Britânico”, que se tornaria hegemônico a partir de Ronald Reagan e do neoliberalismo.

O imperialismo prevaleceu sobre o industrialismo ainda que tenha se alimentado dele, e, ao subordinar os interesses nacionais dos EUA aos seus próprios interesses de acumulação mundial, desmantelou os pactos sociais e a própria indústria como locomotiva econômica do poder.

Consequentemente, a governança estadunidense foi capturada pela oligarquia financeira transnacional, não do mesmo tipo contra o qual se voltaram os Pais da Independência, mas acrescida dos capitais marginais, advindo das ações universalmente criminalizadas.

Desde então, os EUA se financeirizam na mesma velocidade em que perdem a dianteira tecnológica e industrial para nova potência, a China.

Hoje, o Dragão Asiático, que não se deixou seduzir pelo canto da sereia imperialista e não se rendeu ao totalitarismo estadunidense, representa muito melhor os valores e propósitos do “Sistema Americano” e colhe os frutos, em termos de desenvolvimento, capacidade de definição da ordem internacional e melhoria da qualidade de vida para sua população. E se espraia além das fronteiras com a Iniciativa do Cinturão e Rota, envolvendo cerca de 150 países.

(1) Na acepção da época, atividade produtiva. “Manufatura” tinha o significado atualmente atribuído à palavra “Indústria” (Vitor Grünewald, Geraldo Luís Lino e Josemar Rodrigues).

VIII – Experiência Malograda

Em 2 de maio de 1945, os soviéticos comemoraram a tomada de Berlim - Reprodução

O colapso da hegemonia britânica, a partir da 1ª Guerra Mundial, colocou o liberalismo em xeque no mundo todo. O despontar de alternativas iliberais não esperaria a Crise de 1929. Já antes, o bolchevismo, na Rússia, e o fascismo, na Itália, impunham-se como opções de força ante a decomposição da Pax Britannica enquanto ordem internacional. A Quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, consagraria as soluções extremistas para reorganizar o tecido econômico e social das nações.

Por toda a parte, acreditava-se que as governanças não deveriam mais se basear na simples conformação à hegemonia capitalista das finanças, mas estabelecer freios, contrapesos e regulações ao poder econômico. Como o parlamentarismo havia sido a forma preferencial de disposição institucional do poder financeiro no século 19, ele foi particularmente visado como raiz política dos males que acometiam o mundo ocidental.

A demanda por governos fortes para recolocar a economia nos trilhos acompanhou, também, a exigência de musculatura para suprimir o parlatório legislativo e os direitos civis característicos do sistema liberal. Enquanto o proletariado, na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA), pendia, em linhas gerais, para posições revolucionárias, inspiradas no exemplo russo, a alta burguesia pendia, em linhas gerais, para posições reacionárias, espelhadas no caso italiano.

Contudo, nem todos os movimentos operários, nem todos os grandes empresários estavam dispostos a renunciar às posições conquistadas na estrutura representativa do Parlamento para fortalecer a capacidade governamental de administração econômica e social. A dicotomia fascismo/bolchevismo não atraiu as classes organizadas de alguns países, a exemplo dos escandinavos.

Buscou-se, então, a “terceira via”, que acomodasse todos os interesses de classe nacionais no âmago do Estado ampliado – social, empreendedor, gerencial – que o momento exigia. Mantinha-se o Parlamentarismo, enquanto instância de representação eleitoral, mas, ao mesmo tempo, ele, dentro do seu próprio funcionamento, autorizava o fortalecimento do Poder Executivo na administração dos assuntos econômicos e sociais.

A social-democracia.

Na Escandinávia, os artífices políticos desse grande acordo foram os partidos social-democratas. Ao contrário de seus homólogos em outros países, que insistiram em versões ortodoxas do marxismo, os social-democratas escandinavos aceitaram os ensinamentos “heréticos” de Eduard Bernstein e construíram estratégias gradualistas e institucionais para alcançar e reformar o poder.

Para isso, incorporaram elementos variados das próprias tradições nacionais, como certo progressismo social do liberalismo nativo e certo reformismo social do luteranismo local para chegar à síntese nacionalista, que permitisse ganhos distributivos aos trabalhadores sem a abolição da propriedade privada dos meios de produção. Os grandes empresários escandinavos, desejosos de alguma solução de compromisso que não ameaçasse suas posições de poder, como viam acontecer com seus pares na Itália fascista e na Alemanha nazista, pactuaram com os social-democratas.

Nasceu, então, a variante social-democrata do Estado de bem-estar social (Welfare State), que se tornou paradigmática a ponto de se confundir com a própria definição de Estado de bem-estar social, nascido em forma conservadora na Alemanha bismarckiana.

No bem-estar social-democrata, a proteção social universalista contra os riscos de mercado, sem discriminar por categorias de trabalhadores, coexistia com a plena garantia à acumulação privada, cabendo aos empresários locais o controle industrial e ao Estado papel orientador e disciplinador, atuante tão somente nas infraestruturas, indústrias pioneiras e algumas utilidades públicas.

Naturalmente, tal acordo político somente poderia ser mantido em condições de desenvolvimento econômico, ou seja, de crescimento estrutural e não-linear da produção de riquezas, que criasse o jogo de soma positiva, no qual os ganhos dos trabalhadores não significassem perdas para os empresários.

O escopo da governança social-democrata foi, então, ampliado para orientar a economia nacional no sentido do desenvolvimento. Os Estados escandinavos, desde bem antes da 1ª Guerra Mundial, já controlavam os recursos naturais. A partir do entreguerras, quando chegaram ao governo, aprofundaram os controles financeiros através do Banco Central e dispuseram do arcabouço estatal de infraestruturas para criar frentes pioneiras de investimentos nas regiões inóspitas.

Depois da 2ª Guerra Mundial, o equilíbrio social escandinavo, reproduzido, em outras condições, nos EUA do New Deal, de certa maneira se tornou referência para toda a Europa. A necessidade de reconstrução após duas grandes guerras e a severíssima crise econômica faziam necessária maior estatização econômica, mas, derrotado o nazifascismo e descartada a possibilidade de bolchevização, o parlamentarismo se apresentava novamente como arranjo político preferencial, adornado pelas ideologias do pluralismo e da sociedade aberta.

O modelo escandinavo pode ser internacionalizado com a criação do Sistema de Bretton Woods, estabelecido na Conferência em cidade homônima nos EUA, em 1944.

Bretton Woods consagrou, em relação à moeda e às finanças, o que Benjamin Cohen, em “Geopolítica do Dinheiro” (Editora Unesp, 2014) chamou de “modelo vestfaliano centrado no Estado”, ou seja, a nacionalização do dinheiro e do crédito, cujas fronteiras seriam delimitadas pelos seus respectivos Estados. A moeda e as finanças seriam circunscritas, essencialmente, às fronteiras nacionais e subordinadas aos comandos políticos dos Estados.

Ao regularem o sistema financeiro e o mercado de crédito, eles impuseram constrangimentos ao ganho especulativo e facilitaram o investimento nos marcos da produção e do consumo nacionais, de maneira a criar políticas voltadas à industrialização, ao crescimento econômico, ao pleno emprego e à ampliação dos serviços públicos de previdência e assistência social, atendendo às reivindicações das coalizões empresariais-trabalhistas nacionais.

As governanças nacionais na Europa ocidental do pós-guerra, capitaneadas por partidos social-democratas e democratas-cristãos, foram hábeis em erigir e manter consensos nacionais, nos quais a solidariedade de funções entre governo, empresariado e sindicalismo criou níveis sem precedentes de prosperidade, justo no momento em que a Europa perdia suas antigas colônias e, portanto, o acesso privilegiado a recursos naturais e matérias-primas.

O Plano Marshall explica apenas pequena parte da “Era de Ouro do capitalismo”; muito mais efetiva e duradoura foi a ação pública das nacionalidades em torno da construção de um modelo de harmonia de classes e desenvolvimento nacional.

A conjugação retroalimentante de um continuado crescimento econômico e dos níveis de produção com a ampliação da segurança econômica aos trabalhadores, mediada pela expansão da atividade pública, responsável por coordenar, ainda que muitas vezes de forma incompleta, o equilíbrio social entre os serviços públicos e a produção privada, e entre os setores públicos e privado de modo geral, definiu o que o economista estadunidense John K. Galbraith alcunhou de “sociedade afluente”, característica do pós-guerra. A formação da sociedade de consumo em massa foi correlata à sociedade de bem-estar.

Alijado do liberalismo, que institucionalizava o egoísmo das classes burguesas, o capitalismo, entremeado de regulações sociais, provou ser, naquelas circunstâncias, mais eficiente que o bolchevismo na promoção da justiça social e da melhoria do padrão de vida dos trabalhadores. Ainda que o medo do comunismo incentivasse o capital a aceitar benefícios para o trabalho.

As governanças deste tipo começaram a ser pressionadas a partir da década de 1970, quando a ofensiva mundial das finanças transnacionais reduziu a margem de manobra dos governos nacionais para administrar as finanças em prol do equilíbrio social. A crise de estagflação resultante acendeu o conflito distributivo interno, que intensificou as lutas de classes e arruinou o pacto interclassista que vigorava desde o entreguerras ou o final da II Guerra Mundial.

De um lado, o capital abraçou as teses anti-Estado Social da Escola de Chicago, que afirmava ser a inflação resultante do gasto público, e da Teoria da Escolha Pública, que enxergava os serviços públicos como principal fonte de rentismo (rent-seeking). A fusão dessas duas concepções gerou o neoliberalismo, que propunha, em suma, o retorno ao Estado liberal do século 19, nas condições do capitalismo ainda mais financeirizado.

As organizações trabalhistas, desprovidas, na maioria dos países, de base teórica e programática para se contrapor ao neoliberalismo, resvalaram para a agressividade inócua e impopular das “wildcat strikes”. Foi o caso do Reino Unido pouco antes das eleições de 1979, pavimentando o caminho para a vitória da candidata conservadora Margareth Thatcher, que tirou Friedrich von Hayek da penumbra de Mont Pèlerin e o transformou em ideólogo da “nova era” de governança.

O modelo neoliberal de governança foi bem compreendido por Michel Foucault que, em “O Nascimento da Biopolítica” [1979], (Edições 70, Lisboa, 2010), definiu-a como governança de populações, “arte governamental” e “governamentalidade ativa” para produzir a concorrência de mercado e generalizá-la a todos os poros e recônditos do tecido social, inclusive daqueles que não estavam até então sujeitos a essa lógica.

Segundo Foucault, o neoliberalismo se diferenciaria do liberalismo por buscar não exatamente a libertação do âmbito das trocas privadas, mas por instituir a concorrência como princípio de organização política e social. Não apenas o governo deveria produzir a concorrência de mercado, como deveria se organizar segundo seus critérios.

Nas palavras de Foucault, no neoliberalismo, “o governo deve acompanhar de uma ponta a outra a economia de mercado. A economia de mercado nada retira ao governo. Pelo contrário, indica, constitui o índice geral sob o qual se deve estabelecer a regra que vai definir todas as ações governamentais. Deve-se governar para o mercado e não por causa do mercado”.

Desta forma, o capital recobraria seus direitos não apenas sobre a economia, mas sobre toda a sociedade. O desmantelamento e o desvirtuamento das instituições de solidariedade social que edificaram o consenso social-democrata do pós-guerra, inclusive nos países escandinavos, outrora vitrines do bem-estar social, esfacelou e corrompeu as nações.

As novas governanças, eminentemente neoliberais, não abriram mão das políticas sociais, mas as reajustaram segundo padrões financistas, substituindo a inclusão ativa pelo trabalho pela compensação passiva da exclusão econômica. Não se tratava mais de criar as condições para que as pessoas se tornassem independentes como indivíduos e organizadas enquanto cidadãs, mas de subsidiá-las pelo fracasso em condições de concorrência cada vez mais restritivas.

Não se pode dizer que a social-democracia tenha fracassado. Ela proporcionou o melhor momento da história do capitalismo europeu, em termos de cidadania e justiça social, conseguindo fazer, de um continente historicamente avassalado por guerras e fomes e governado por oligarquias imperialistas, reduto de prosperidade e de justiça sociais.

Porém, como ensina Hegel, cada contexto histórico guarda em seu bojo os germes da sua própria destruição. Não foi diferente com a social-democracia. O que dela resta hoje é basicamente o nome, que desperta a pálida e cada vez mais saudosista lembrança dos tempos em que os países europeus ainda eram nações e não feudos financistas.

XIX – Socialismo Soviético

União soviética bandeira URSS

A chegada do materialismo dialético na Rússia Czarista foi uma contradição com o materialismo histórico tal como descrito por Marx e Engels. Não porque a Rússia de 1918 ainda não fosse industrializada – era mais industrializada que a Grã-Bretanha no século 18, e chegou a ser a 4ª maior economia industrial no início do século 20 – mas porque, na imensidão dos quase 22 milhões de quilômetros quadrados, havia quase tudo que se podia esperar de organização social e econômica da população humana.

Na grande maioria era um país rural, 80% dos habitantes moravam no campo, e a industrialização estava concentrada em duas cidades, São Petersburgo e Moscou, que se encontravam na parte ocidental do país. E prevalecia no interior, principalmente asiático, um regime mais semelhante ao feudal do que ao capitalista.

A abolição da servidão, em 1863, ao introduzir o capitalismo no meio rural, na prática intensificara o controle dos proprietários sobre os camponeses. Importante lembrar, contudo, que, em 1905, apenas 3% dos nobres russos eram latifundiários. Ademais, desde Catarina II, havia leis de proteção ao trabalho de mulheres e crianças e de limites da jornada de trabalho, que seriam ampliados por Nicolau II já ao final do século 19.

Porém, o líder da Revolução de 1918, Vladimir Ilyich Ulianov (1870-1924), Lenine, era um homem muito especial; juntava a competência estratégica de experiente general combatente ao conhecimento de celebrado scholar, reconhecido intelectual acadêmico.

Nascido na Rússia europeia, às margens do rio Volga, na cidade Simbirsk, que, em 1924, passou a ser denominada Ulianovsk, em homenagem ao ilustre filho, Lenine, já aos 17 anos, se notabilizava pela luta política. De 1893 à vitoriosa Revolução de outubro de 1918, Lenine foi membro do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR).

Na Rússia da Revolução, conviviam cerca de 193 grupos étnicos, que formavam os seguintes Estados: Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia, Cazaquistão, Estônia, Geórgia, Letônia, Lituânia, Moldávia, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Ucrânia e Uzbequistão, além da própria Rússia. Em 1917, todos estavam reunidos na corte do czar, com títulos de nobreza. Eram as lideranças e chefias regionais e tribais de toda Rússia, em consequência das ações de dominação empreendidas desde Pedro, o Grande.

Lenine verificou a importância de manter esta unidade pluriétnica e desenvolveu a política das nacionalidades. E para manter sua representatividade, constituiu os sovietes regionais e o soviete central, para toda União das Repúblicas Socialistas, onde cada soviete regional tinha sua representação.

Os sovietes (soviét) é palavra russa que significa assembleia, conselho; tinham um papel legislador, executivo e fiscalizador, ou seja, foram constituídos para que a nova Rússia fosse, efetivamente, a República de trabalhadores do campo e da cidade, a quem competiam dirigi-la.

A liderança de Lenine permitiu constituir os sovietes. Percebendo a incapacidade da sustentação da aliança do Governo Provisório (fevereiro de 1917), primeiro chefiado pelo príncipe Livov e, posteriormente, pelo menchevique Kerenski, o líder do partido bolchevique, Lenine, desde sua chegada ao país (abril de 1917), passou a defender o fim do Governo Provisório e a conclamar com a palavra de ordem: “Todo poder aos sovietes”.

Essa foi importante jogada tática de Lenin, que, percebendo a força criada pelos trabalhadores, através dos sovietes, pretendia se apoiar neles para levar seu partido à tomada do poder. E atender assim o slogan “Paz e Terra”, que desejava a saída da Rússia da I Grande Guerra e a distribuição da terra a quem nela trabalhasse.

Contando com o apoio de Leon Trotski, os bolcheviques organizaram o exército incumbido de extinguir o governo menchevique. O chamado Exército Vermelho derrubou o governo provisório e instalou o Conselho Comissário do Povo. Esse conselho tinha Lenine como presidente, Trotski no comando dos negócios estrangeiros e Josef Stalin, dos negócios internos.

Lenine estatizou bancos e indústrias, realizou a reforma agrária e retirou a Rússia da Guerra, com a assinatura do Tratado de Brest-Litovski. Ao implantar essas medidas de caráter popular, as forças reacionárias da própria Rússia, com o apoio de nações estrangeiras, tentaram derrubar o governo bolchevique. Porém estes exércitos antirrevolucionários não conseguiram vencer a determinação do pugnaz Exército Vermelho.

Para superar o difícil período econômico do pós-guerra, Lenine criou a Nova Política Econômica (NEP). Essa medida permitia a existência de práticas capitalistas dentro da economia russa. Lenine dizia que era ação necessária para que o país tivesse autonomia suficiente e alcançasse os estágios iniciais do projeto socialista.

Com tais medidas a economia russa deu claros sinais de recuperação, e aquilo que Lenine defendia em tese tornava-se realidade. No entanto, em 21 de janeiro de 1924, aos 53 anos, Lenine morre.

Não havia outro estrategista e intelectual do porte de Lenine. A Rússia, imenso e diferenciado país, para se manter unido e enfrentar os inimigos internos e externos, cai na ditadura, abandona o ideal dos sovietes, que ficam somente na designação do país: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

O projeto inovador morre por falta de líder

Pode-se entender que a URSS sobrevive à custa das guerras e, com a mudança de objetivo do capitalismo, sua perspectiva era o desmantelamento.

Trotsky, indubitavelmente mais preparado, teve que fugir, sendo assassinado no México. Em maio de 1922, falando para Academia Militar, ele explicou o que era o materialismo filosófico e o materialismo histórico.

O materialismo filosófico é uma teoria que está na base das ciências naturais, ao passo que o materialismo histórico explica a história da sociedade humana. O materialismo histórico é um método que não explica o universo, mas um grupo estritamente definido de fenômenos que condicionam o desenvolvimento do homem. O materialismo filosófico explica o movimento do universo, enquanto mudança e transformação da matéria e leva o raciocínio até às mais altas manifestações do espírito. Ser politicamente marxista sem conhecer o materialismo histórico é difícil, para não dizer impossível. Ser politicamente marxista e não conhecer o materialismo filosófico é possível, e há tantos exemplos destes quanto quiserem… (“Saber Militar e Marxismo”, em Leon Trotsky, “Problemas da Guerra Civil”, tradução de A. Campos para Edições Antídoto, Lisboa, 1977).

Por 29 anos, o georgiano Josef Stalin (1878-1953) dirigiu, sem deixar espaço para discussão, a URSS. Houve sem dúvida grande progresso econômico. A União Soviética deixou de ser dos sovietes, mas com ambição condizente com sua dimensão territorial, transformou-se no país industrializado e produtor de tecnologia que manteve circunscrita a expansão do totalitarismo estadunidense.

Curiosamente, mesmo durante a Era Stalin, a URSS aproveitou abundantemente a contribuição do capital estrangeiro, em particular estadunidense. As concessões, parcerias público-privadas e acordos tecnológicos iniciados pela NEP não foram abandonados, e constituíram o fermento da reindustrialização soviética, que, sobretudo a partir do I Plano Quinquenal, recuperou e superou os índices herdados do czarismo. Não estamos tão longe, portanto, do “socialismo de mercado” chinês contemporâneo. O mercado sempre fez parte das estratégias socialistas, mas alinhado ao planejamento governamental, não da banca.

O planejamento foi elemento constante da ação do poder socialista na URSS. A economia planejada sem dúvida se opõe à economia de livre mercado, porém trata-se mais de uma questão teórica do que realista, pois a concentração econômica, que o Estado sem regulações inevitavelmente produz, nada mais é do que a planificação de um setor ou mesmo de toda economia oligopolizada, senão de monopólio privado. Então não se trata da ação de planejar, mas de quem promove e se beneficia com o planejamento.

Em 26 de maio de 1934, Benito Mussolini escreveu: “Três quartos da economia italiana, industrial e agrícola, encontram-se nas mãos do Estado”. Uma bravata do “Duce”, pois o Estado fascista era apenas um gestor dos interesses do capital.

Governo de burocratas ou operários e camponeses

Como se definem as classes no sistema econômico é bem mais simples do que no sistema político. Leon Trotsky (A Revolução Traída, 1936) escreveu: “A burocracia soviética expropriou politicamente o proletariado para defender, pelos seus próprios métodos, as conquistas sociais daqueles. Mas o próprio fato de ter se apropriado de poder político, num país em que os meios de produção mais importantes pertenciam ao Estado, criou entre ela e as riquezas da nação relações inteiramente novas. Os meios de produção pertencem ao Estado. O Estado, de algum modo, ‘pertence’ à burocracia. Se estas ‘novas relações’ se tornassem a norma e fossem legalizadas, com ou sem resistência dos trabalhadores, acabariam levando à liquidação completa das conquistas da revolução proletária”. Proféticas palavras.

Excluídas as “troikas”, que duravam o tempo das negociações para imposição do novo dirigente, e as três existentes só ocorreram após a morte de Lenine, os oito dirigentes da URSS, com seus períodos de governança, foram:

1) Lenine, de 1917 a 1924;

2) Josef Stalin, de 1924 a 1953;

3) Georgiy Malenkov, de 1953 a 1955;

4) Nikita Khrushchov, de 1955 a 1964;

5) Leonid Brejnev, de 1964 a 1982;

6) Iúri Andropov, de 1982 a 1984;

7) Konstantin Chernenko, de 1984 a 1985; e

8) Mikhail Gorbatchov, de 1985 a 1991.

No 6º Congresso do Partido Comunista, em março de 1922, Lenine falou: “A História conhece transformações de todas as espécies; não é correto, em absoluto, em política, contar com as convicções, a devoção e as belas qualidades do espírito”.

A existência, a realidade, que é única em cada local, em cada época, em cada circunstância, que irá determinar a consciência, a linha a ser seguida. Preparamo-nos para entender, talvez decifrar a realidade.

Pode-se entender que, com a morte de Lenine, também morreu outra experiência de governança, a socialista soviética. Uma revolução não é apenas um projeto de vida, é um conjunto de instituições políticas, é um sistema de relações que precisam ser sempre reanalisados e atualizados.

Os 67 anos de existência da URSS, a partir do governo de Stalin, conheceram grandes feitos econômicos, bélicos, tecnológicos, deles surgiram de um país, em grande parte feudal, o país industrializado, com empresas trabalhando nas pontas tecnológicas, um país que se municiou e derrotou a mais importante força militar da época, a Alemanha Nazista, um país que, pela primeira vez, colocou um animal e um homem no espaço.

Foi derrotado pela ausência da participação do povo, dos sovietes, como propusera Lenine. E na ausência do povo, instalou-se a ditadura e a burocracia. Faltava sempre o contato com a realidade, o conhecimento dos problemas que exigiam pronta solução, que apenas a participação popular, canalizada por instituições permanentes, pode suprir ao poder.

Apesar da pacificação e da estabilização com a reconstrução no pós-guerra, que proporcionou à população alguma vida normal, o nível econômico e o padrão de vida soviéticos se mantiveram aquém dos centros ocidentais.

A inferioridade econômica em relação aos EUA forçou a excessiva militarização, o que, se desenvolveu partes da indústria, sobrecarregou a população e abandonou outros setores.

Ao final, o marxismo-leninismo se tornou mera convenção social, crença dogmática e petrificada, alheia aos reais interesses dos governantes e aos anseios de fato da sociedade.

Podemos afirmar que o socialismo soviético, como a social-democracia europeia, foram experiências malogradas de se estabelecer novas e diferentes governanças, apesar de terem transformado estruturalmente suas respectivas nações.

X – O Retrocesso neoliberal

Foto de Mapa Dos Eua Globo Terrestre Fecha Com Um Pino Vermelho Nos Estados Unidos e mais fotos de stock de Globo terrestre

O século 20 fez surgir ou ressuscitar poderes que levaram boa parte do mundo a guerras por todos seus últimos 100 anos. Pode-se, com a falha comum a todas generalizações, afirmar que o inconformismo das finanças, sobretudo europeias e aristocráticas, derrotadas pelo industrialismo, que levara os Estados Unidos da América (EUA) à condição de potência bélica e econômica, promoveu motivos para quebrar a estrutura e a ordem do mundo republicano, politicamente independente.

Duas condições mantinham as finanças, mesmo parcialmente, no poder: a sucessão hereditária, seja monárquica, seja de mesma facção política, patrimonial ou étnica; e a concentração de privilégios exclusivos para as operações financeiras.

Apresentaríamos, como sempre, um caso brasileiro. Mas, considerando as maiores emoções que despertam nossos atores, optamos pelo recente caso no Equador para exemplificar o que denominamos “retrocesso neoliberal”. E, assim, teremos também um exemplo das governanças que participaram das lutas pela independência na América Latina.

Durante o século 19, as colônias espanholas nas Américas lutaram por suas independências políticas. Ao mesmo tempo, os EUA, buscavam consolidar sua Independência (1776), expandiram o território das 13 Colônias, com o incentivo da ocupação de terras denominado “Destino Manifesto” (1845), e inibindo a presença europeia, com a Doutrina Monroe (1823).

Na prática, a Doutrina Monroe, como assinala José Gregorio Linares (Bolivarianismo versus Monroísmo, Centro de Estudios Simón Bolívar, Caracas, 2020), funcionou como o contraponto estadunidense ao projeto do precursor venezuelano Francisco de Miranda (1750-1816), que entendia ser a independência da América Espanhola “inseparável da ideia da integração”.

Recordemos os quatro vice-reinados que a Espanha organizara para administrar o imenso território da América do Norte à Patagônia. Mais ao norte, foi constituído o Vice-reinado da Nova Espanha, que avançava pelo atual EUA (Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada, Novo México e Utah) e se estendia desde o México até a Costa Rica. Esta imensa área estadunidense de 1.811.981,17 km², quase o dobro das Treze Colônias (970.306,51 km²), foi retirada da Espanha e do México pelo “Destino Manifesto”. Poder-se-ia incluir, nesta apropriação por guerras e fraudes, a Capitania Geral da Flórida (170.312 km²).

Oscar Efren Reyes (1896-1966), historiador e professor equatoriano, assim se expressa sobre a chegada dos espanhóis: “As grandes massas indígenas, os primitivos ocupantes do território equatoriano, serão separados para sempre: a maioria se tornará simples serviçal ou incluída na miscigenação com os invasores; alguns se reconcentrarão em áreas quase inacessíveis, e outros fugirão, em ondas aterrorizadas ou rebeldes, para as profundezas das selvas, para continuarem selvagens” (tradução livre de Breve Historia del Ecuador, 4ª edição aumentada, reimpressão pela Municipalidad de Quito, 1950). A descrição de Reyes se aplica, grosso modo, por toda a América Ibérica.

Com a independência do México (1821), a libertação da Nova Espanha uniu, em 1823, na União das Províncias da América Central, as futuras Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Costa Rica. Situação semelhante ocorria com as Províncias Unidas de Nova Granada, que teve a primeira independência em 1811 e sofreu, com as intrigas, subornos e vaidades, o estilhaçamento da Venezuela (1814), Equador (1830), e a separação, articulada pelos EUA, do Panamá da Colômbia, que ocorreu em 1903.

Imagine-se em que América se viveria hoje se, ao invés de 26 países, houvesse, além do Canadá, ainda uma colônia, apenas seis países, todos com territórios que lhes supririam a maior parcela ou quase integralmente as necessidades de recursos agropecuários e minerais: os EUA, o México, a União das Províncias da América Central, o Peru (substituindo o território do Vice-reino do Peru), o Rio da Prata (Argentina, Paraguai e Uruguai) e o Brasil. Um mundo de Estados mais rico e, possivelmente, mais pacífico.

Da independência à recolonização

O poder sempre procura ganhar as mentes, a compreensão que as pessoas devam ter dos fatos de modo a não lhe causar inconvenientes. A religião, desde seus surgimentos, serviu magnificamente para este objetivo: Deus o quer, seja Deus um espírito, um ser vivo, inanimado ou um soberano.

Esquerda, direita, todas ideologias buscam a conquista de corações e mentes. Em termos coletivos, as cabeças mais protegidas são dos lavradores, que só sobrevivem com suas colheitas, e isso exige atenção às realidades do clima, do vento e da chuva, do solo e da água. Poucos veem as realidades com tanta clareza. E, talvez por isso, a China, onde as pessoas, que se declaram sem religião, ostentam o elevado percentual de 74%, e o budismo, que é menos uma religião do que um comportamento existencial, encontre 18% de seguidores, elevando a percentagem de não teístas para 92%. E o país se orgulha de ser, desde tempos imemoriais, uma terra de lavradores.

Oscar Reyes aponta, entre os grupos mais influentes ao tempo que se articulava a independência do Equador, exatamente os não independentistas: clérigos, uma aristocracia hispano-criollo e aqueles que, vendo os avanços mundiais, queriam se subordinar à Inglaterra ou aos EUA.

Os que haviam buscado estudar, inclusive na Espanha, esperando ocupar cargos na administração colonial, trabalhar por seu país, ficaram frustrados, como demonstra Jacinto Jijon y Caamaño (“Influencia de Quito en la emancipación del continente”, Boletín de la Academia Nacional de Historia, Ecuador, 1924, volume VIII).

Em 1810, por toda América Espanhola fervia a revolução pela independência, desde Nova Espanha até Rio da Prata. No entanto, as perspectivas locais se sobrepunham ao projeto integracionista de Francisco de Miranda. Este, na descrição de John Adams (carta a James Lloyd, em 6/3/1815), afirma que Miranda “cruzou, se não todos, ao menos grande número de estados, foi apresentado a Washington e seus assessores, secretários, generais, coronéis e suas famílias”. Mas a própria elite estadunidense, que perseguia um grande território, não desejava outro nas Américas.

José Gregorio Linares, na obra citada, apresenta dados históricos que mostram a verdadeira sabotagem que os EUA praticaram nos próprios EUA, na Europa, na Venezuela e na Nova Granada para impedir que o ideal de Miranda se concretizasse pela ação de Bolívar. O secretário de Estado, John Quincy Adams, como um exemplo, armou duas embarcações de guerra para combater no Orenoco as forças sob Bolívar, em março de 1819. Enquanto emissários estadunidenses preparavam o ambiente psicológico e material para o insucesso dos “indígenas pobres, miseráveis e ignorantes ao extremo”.

Apostando nas divergências personalistas, os processos de emancipação mesmo dentro do Equador seguiram caminhos distintos em Guayaquil e Quito. A Constituição de 1830, assim inicia: “Art. 1º – Os Departamentos de Azuay, Guayacas e Quito se unem formando um só corpo independente com nome de Estado do Equador”.

Em 22 de setembro de 1830, inicia o governo do primeiro presidente equatoriano, Juan José Flores, logo sucedido por uma ditadura militar. E assim, entre presidentes civis e ditaduras militares, se desenrola a história do Equador até Eloy Alfaro Delgado, “El Viejo Luchador”, que assume em 1895, governa por duas vezes, até ser assassinado, com seguidores, em janeiro de 1912, meses após sua deposição, na denominada Fogueira Bárbara, no Parque “El Ejido”, em Quito.

A governança segue o padrão desejado pela elite, até eclodir o movimento de 9 de julho de 1925, dando origem à Ditadura Cívico Militar com o programa que segue:

  1. a) transformação política que assegure a democracia no país, combatendo o caudilhismo e as oligarquias tradicionais;
  2. b) revisão dos sistema bancários e fiscais, e criação do Banco Central; e
  3. c) atenção para os problemas sociais, atendendo principalmente as classes menos favorecidas, com novo critério político.

A ação se concentrou na área financeira, mudando a moeda, criando outros organismos estatais, no sentido de transferir para o Estado ações até então privadas. Com a Constituição de 1929, o espanhol constitui o único idioma nacional, as propriedades agrárias passam a ter limites, o trabalho a gozar de proteção legal; no entanto, a força ganha pelo Poder Legislativo logo transforma estes avanços socioeconômicos em anarquia, que conduz à Guerra Civil de 1932.

A situação volta a gerar incertezas com ditaduras civis e militares, entre presidentes eleitos, até que em 1972, militares nacionalistas tomam o poder e realizam reformas profundas como a nacionalização do petróleo, a maior riqueza equatoriana, programa de industrialização para desenvolver a tecnologia e soberania do País, a reforma agrária e maior distribuição de renda para incentivar o consumo.

As forças imperialistas aliaram-se aos tradicionais beneficiários internos da riqueza nacional e promoveram o fim do triunvirato militar em agosto de 1979.

Algumas conquistas nacionalistas e populares foram mantidas durante a década de 1980, mas a invasão das finanças nos governos ocidentais, com as desregulações e a imposição do Consenso de Washington, fez reverter a situação equatoriana com domínio cada vez maior das finanças e da elite internacionalista. Os mesmos que impediram a integração hispano-americana, assassinaram Alfaro, destituíram o triunvirato de 1972 e trabalham para sujeição nacional ao exterior.

O retrocesso neoliberal

Neste curto resumo da história do Equador, vê-se o que ocorreu e ocorre com a América Latina. O Equador poderia ser substituído pelo Peru, pela Colômbia, pelo Chile e todos demais. Uma elite de herdeiros da colônia se julgam proprietários do País para o explorar em seu proveito. E encontram o apoio do exterior, desde 1980, nas finanças apátridas que têm os mesmos procedimentos do século 19: apenas o comércio, financiado pelo capital financeiro, o próprio capital financeiro e a propriedade das terras exercem o poder. Todas as demais fontes de renda, principalmente do trabalho, lhes são submetidas.

A escolha do Equador deveu-se à nova fase de dominação das finanças apátridas que, mais cedo mais tarde, estará afligindo todos nós: o domínio do poder nacional pelo crime.

O Equador tem, hoje, seu Fernando H. Cardoso, chamado Gustavo Noboa. Embora não se conheça o parentesco direto de Daniel com Gustavo, as famílias Noboa são ricas empresárias exportadoras, que constam das anotações dos Odebrecht, apreendidas na Operação Lava Jato. O atual presidente nasceu em Miami, onde vivem seus pais.

O Equador, sem o petróleo, fica refém de qualquer grupo internacional. Esse fato vem mantendo a Petroecuador sob domínio do Estado. É país de exportação de produtos primários. Porém o Estado dominado por narcotraficantes terá o petróleo a lhe fornecer ainda mais recursos. E se expandir ao redor, seja pela selva amazonense, pela cordilheira andina, ou pelo planalto central sul-americano.

O Equador não tem moeda própria, o que o torna vulnerável aos fluxos internacionais de capital e de mercadorias, por onde trafegam os ilícitos. A explosão da violência é a consequência da dolarização econômica. A resposta meramente policial, longe de resolver o problema, aprofunda-o, pois, além de não ir à raiz do problema, coloca as forças estatais a serviço de grupos criminosos específicos, combatendo os rivais deles.

O que ocorre no Equador é o sinal de alerta aos governos que se curvam às finanças apátridas. Estamos assistindo a derrocada do mundo ocidental nestes 40 anos de neoliberalismo e defesa do mercado como o senhor das nações.

Não se trata somente da questão econômica ou das soberanias nacionais, trata também do retrocesso moral, do avanço das forças corruptoras e marginais. É verdadeiramente o retrocesso civilizacional.

XI – O Nacional trabalhismo

constituição em frente ao congresso nacional

Nestes Ensaios que percorremos algumas das governanças, com diferentes tempos históricos, que foram implementadas em reinos, impérios, repúblicas, independentes e colonizados, acreditamos ter se evidenciado uma qualificação: a nacional.

Sendo a governança uma relação de poder, é difícil ser copiada de outras, executadas em realidades geográficas diferentes, por culturas construídas em histórias ligadas a fenômenos distintos, enfim, por povos e locais estrangeiros.

Estas avaliações foram descritas nas experiências malogradas. Não se trata de juízos de valor nem de crenças religiosas ou ideológicas. Trata-se da realidade construída na interação de um povo com a natureza, melhor se diria, com os recursos naturais do espaço em que se formou sua identidade.

Ser nacional é portanto a qualificação primeira da governança. Vamos discorrer sobre o que é ser uma governança nacional. Para evitar qualquer viés político partidário, examinemos um país estrangeiro e sua construção da governança atingida neste século 21.

É, também, importante verificar que a governança, sendo uma resultante cultural, ela varia no tempo, nas tecnologias disponíveis, na compreensão do povo, ou seja, ela tem tempo e local, pode surgir das mesmas forças, mas é para aqui e agora.

O exemplo que usaremos é da China, que desenvolve o modelo “socialista com características chinesas” para sua governança. Examinemos historicamente esta construção política.

A China se formou num vastíssimo território, a sudoeste com o complexo de montanhas do enrugamento himalaio, grande zona de estepes, com desertos e regiões cultivadas, entre florestas siberianas e planícies de aluvião, até encontrar o Oceano. E tendo a leste a península coreana e as ilhas nipônicas. Com mais de nove milhões de quilômetros quadrados, varia de temperatura do frio e seco norte ao quente e úmido das florestas tropicais, próximas ao Mianmar, Laos e Vietnã.

Esta diversidade da geografia física encontra imensa unidade populacional, pois mais de 90% do povo pertence à etnia “han”. Conforme dados arqueológicos, os homens chegaram à China entre 30 mil e 15 mil anos, pois é o tempo que medeia a saída do Oriente Médio e a chegada à América. E encontraram locais e climas propícios à agricultura, ali ficando e desenvolvendo sua cultura. A unidade étnica favoreceu a construção de modelo centralizado de governança, o que caracteriza a China até hoje. Também, por se dedicarem à agricultura e rapidamente evoluírem da agricultura de subsistência para a de trocas, os chineses mostraram a capacidade de lidar com as realidades, o que fez o povo onde mais de 90% da população não acredita em deus ou deuses.

Por conseguinte, o poder centralizado e não religioso não é resultado do marxismo-leninismo, implementado a partir de 1949, e já bastante submetido às “características chinesas”, mas à própria construção milenar da identidade nacional.

A Questão Nacional

Vivemos no Brasil, desde a década de 1980, ou seja, desde o denominado processo de redemocratização, a invasão ideológica neoliberal. A democracia, em si, não trouxe o neoliberalismo, mas o acompanhou, e, na retórica dominante, a ele foi associada, de modo que a retomada das liberdades civis foi mais efetiva para poucos do que para muitos.

De certo modo permanece a submissão do País a ideologias e governos estrangeiros que tem sido a mais constante governança brasileira: a colonial.

Períodos de autonomia foram poucos: dos governos de Getúlio Vargas (13 anos) e dos militares de 1967 a 1979 (outros 13 anos). De acomodação com interesses estrangeiros tivemos também poucos, o de João Goulart e o de Juscelino Kubitschek, que sofreram golpes ou tentativas de golpes de Estado.

Mas tivemos notáveis intelectuais que elaboraram projetos, discorreram sobre política nacionalista como o Patriarca da Independência, paulista José Bonifácio de Andrada e Silva, os fluminenses Alberto Torres e Oliveira Viana, o gaúcho Júlio de Castilhos, o mineiro Darcy Ribeiro, além do próprio Vargas. E como o mais notável operador nacionalista, o único a governar dois estados, Leonel Brizola.

O que vem a ser a Questão Nacional? Fundamentar a organização do Estado Brasileiro e sua governança na mais arraigada percepção nacional, naquela que se formou pela luta para sobrevivência, pela domesticação da natureza, pela mistura de raças e crenças que formam o brasileiro, um ser específico. É nesta individualidade, como nos “Han” chineses, que se constrói nossa estrutura de organização e nossos padrões de governança.

Veja-se pelo período que se denomina os “50 anos gloriosos” ou a “Era Vargas” que vai de 1930 a 1980. Foram períodos autoritários, com o poder centralizado no Executivo, com o Congresso muitas vezes fechado e o Judiciário modificado em número de ministros no Supremo Tribunal Federal (STF) e na designação de magistrados pelo Poder Executivo.

Mas seria estranho à formação do Poder no Brasil? De modo algum. Sempre tivemos um poder que se sobrepunha aos demais, na Colônia, no Império, na formação da República – Deodoro e Floriano – e no período republicano, como mencionado.

Também, regionalmente, sempre fomos o país dos “coronéis”, autoridades regionais que impunham suas vontades, acima do poder público, em distritos, municípios e mesmo Estados que constituíam a Nação.

Se isso se dá pela falta de construção da cidadania, não significa que não exista e, com certeza, será muito melhor absorvido pela população do que a “democracia”. Que nem é efetiva, pois o povo não participa das decisões, nem mesmo uma pálida imagem ideológica, pois os próprios candidatos saem de um núcleo de poder partidário, religioso, ou regional (coronelista).

A natureza do poder, onde quer que exista, é hierárquica. A distribuição igualitária de poder é uma utopia que ainda não se verificou em parte alguma. Resta saber, porém, quem exerce e a quem serve o poder central. Se é à Nação, temos o nacionalismo; se é às altas finanças, o neoliberalismo.

Portanto, a estrutura organizacional brasileira, mais coerente com nossa formação cultural, deve ser composta de um poder central e nacional, o Presidente, e como órgãos participativos, as Assembleias que serão muitas, pois organizadas regionalmente e por setores técnicos (educação, saúde, habitação, energia, saneamento, infraestrutura etc.).

O Presidente poderá ter Vice-presidentes que reúnam conteúdos de mesmo objetivo, por exemplo: Defesa Nacional, Construção da Cidadania, Energia e Infraestrutura e outros. O que hoje denominamos Poder Judiciário pode compor o detalhamento da Construção da Cidadania como Garantia dos Direitos, incluindo as fases da prevenção, da investigação, do julgamento e da gestão penitenciária.

Uma nova Constituição voltada para a cultura brasileira, estruturando o Estado conforme as mais profundas raízes, que nem são religiosas, como se tenta impingir. Na verdade, autores religiosos, como filósofos de diversas épocas, distinguem a superstição da religião. O brasileiro, em sua mistura de crenças e ritos, deve ser entendido como povo supersticioso, não religioso. E esta não deve ser uma questão de organização do Estado Nacional, nem para garantir nem para impedir direitos, mas a manifestação individual de cada um. Fica no campo das liberdades que permitem torcer por clubes de futebol, preferir tipo de comida e bebida ou professar ou não qualquer fé ou crendice.

O trabalho

São duas as vertentes que constroem a economia de uma Nação, diferentemente de uma família, como erroneamente ensinam os comentaristas das redes de televisão. Ou está fundamentada no trabalho ou no capital.

Faz-se mister definir ambos, para evitar mal-entendidos. Por trabalho, se entende toda ação intencional e planejada de modificação do meio. O trabalho é o processo de humanização do mundo, de superação da natureza pela construção da cultura. Por capital, se entende a acumulação privada de excedentes socialmente produzidos.

Naturalmente, o capital pode ser trabalhador, quando se dedica a empreendimentos úteis, empregadores de trabalho. O lucro afigura-se assim como recompensa legítima pelo risco. O capital se torna lesivo quando se aparta da economia física/real e se torna parasita da sociedade. Temos, assim, o capitalismo, sistema que consagra a prioridade do capital.

O mundo neoliberal no qual vive o Brasil e o mundo ocidental, desde o final do século passado, está baseado no capital. O que nos faz afirmar, por exemplo, que a Constituição dos Estados Unidos da América (EUA) criou o país plutocrático, ou seja, governado pela riqueza, logo pelo capital que a hierarquiza.

Ao lado da nacionalidade construtora da governança nacional, o trabalho é, e estará assim definido formalmente, a única modalidade de construir riqueza. Vejamos algumas consequências destas definições.

Se o trabalho fundamenta a economia nacional, o salário passa a ter a importância que hoje se dá à dívida financeira, ou seja, será o orientador dos orçamentos, das aplicações, dos investimentos.

Assim, ele não pode ser aviltado, ao contrário, deve ser valorizado para que mais dinheiro circule e mais se produza, mais se crie, mais tecnologia seja desenvolvida para fabricar usando as riquezas naturais do país.

Em vez de “ajustes fiscais” para encolher o dinheiro em circulação, ter-se-á o salário para exigir mais manufaturas, mais conforto, mais produção. Não se falará de “superávit fiscal”, mas de investimentos em energia, em infraestrutura, em tecnologia, para que mais e melhor a população possa ser atendida.

Teremos uma sociedade onde a educação estará aliada ao trabalho, porque o trabalho é valorizado e quanto mais e melhor produz mais se ganha. Hoje um engenheiro dirige uma moto como “uber”, sem salário, sem condição de melhorar que não seja expondo a vida e a saúde, para realizar mais entregas e receber um pouco mais.

O trabalho exige emprego, e o emprego é regulado por leis de proteção à vida e à saúde, impede portanto o incitamento, o encorajamento ao risco, à saúde e à vida.

Em vez de meta de inflação, que significa encolhimento da economia, submissão a padrões estrangeiros de câmbio, de juros, que levam ao déficit nas transações correntes, tem-se a meta de emprego, que expande a industrialização no País, a valorização do estudo, pois a indústria, pelas próprias condições de desenvolvimento, exige, cada vez mais, mão de obra qualificada.

Pela simples posição do trabalho na sociedade já se estará democratizando o País, pois a imensa maioria dos brasileiros não é rentista, mas trabalhadora. E substituir o banco pelo sindicato significa substituir um homem rico e provável corruptor, por centenas de trabalhadores, vigilantes com a lisura dos gestores.

O Brasil é possuidor de enorme riqueza mineral e pode, sem grandes investimentos, voltar a ser autossuficiente em energia. Logo, tem as condições fundamentais para se tornar grande potência na esfera internacional. Falta governança.

O que estamos aqui propondo é a mudança dos referenciais importados pelos nacionais, quer na organização política do País, quer no referencial econômico.

Organizando o Brasil de acordo com a tradição histórica que mais riqueza trouxe para o País, com as orientações dos seus melhores estudiosos, e alterando radicalmente o referencial de sua economia do capital para o trabalho, em menos de um lustro teremos outro País, mais seguro, mais produtivo, mais honesto e feliz.

Isso também depende de cada um de nós.

XII – Uma perspectiva africana

Edifícios da União Africana

Ao iniciar o século 20, à exceção da Abissínia, todo continente africano era colônia europeia: da França, da Grã-Bretanha, da Itália, da Alemanha, de Portugal, da Espanha e da Bélgica. A Abissínia, também designada Império Etíope, resultou do tratado firmado em 1896, o Tratado de Adis Abeba, pelo qual a Itália reconhecia a Etiópia como país independente, porém ficava autorizada a manter sob seu domínio a Eritreia.

Cortado pelo vale formado pelo rifte africano, que se constitui de movimento divergente de placas tectônicas, o local é muito especial para a antropologia. Possui nove sítios considerados patrimônios mundiais pela Unesco e onde foi encontrado o fóssil mais antigo de ancestral humano, Lucy ou Dinknesh, australopiteco, descoberto na depressão de Afar, no Vale do Rifte. Estima-se que viveu há, aproximadamente, 3,2 milhões de anos.

A Etiópia é país jovem, média de idade inferior a 20 anos, com expectativa de vida de 67 anos, majoritariamente rural, taxa de urbanização de 22%, e pobre, PIB per capita de 950 dólares estadunidenses (FMI, 2021).

Em 2018, a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (em inglês, EPRDF) escolheu como líder Abiy Ahmed, do partido Oromo, que junto com os Ahmara são dos dois principais grupos étnicos do país. Entre os primeiros atos de Ahmed esteve a assinatura do acordo de paz com a Eritreia, com quem estava formalmente em guerra desde 1998. O gesto lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz e também a desconfiança dos Tigrínios, excluídos da decisão e desde sempre os mais hostis em relação aos eritreus.

Tanto a Etiópia quanto a Eritreia sofreram a invasão neoliberal nas duas décadas finais do século 20 e, como vem ocorrendo na África, buscam novos modelos de autonomia.

Repensar a história do berço da humanidade

O diálogo Sul-Sul começa nos intelectuais africanos do século 19, que buscaram americanos de origem africana, líderes asiáticos e das Caraíbas para discutir as questões do colonialismo, do nacionalismo e do desenvolvimento.

Porém eram muito fortes as influências liberais que deixavam fora da história as narrativas dos oprimidos. Eram vistas como fracassos para construção das nações, a incapacidade das burguesias nacionais e a falta de liderança entre os trabalhadores.

Surge o Grupo de Estudos Subalternos (GES), que busca novos métodos de análise e novas referências de pesquisas. Este Grupo acolhe africanos, asiáticos, sobretudo indianos, e latino-americanos.

As independências africanas que surgem a partir de Gana, em 1957, buscam um domínio que possa ser indubitavelmente africano e resistente a qualquer forma de imperialismo.

São, portanto, afastados os argumentos liberais, mesmo que “progressistas” e, obviamente, o marxista, por universalizante. Os fracassos nas independências das décadas de 1960 e 1970 obrigaram as gerações mais recentes a buscarem novas bases de dados e de avaliação social.

Dentre as novas aproximações sociológicas está do etnólogo alemão Leo Frobenius (1873-1938), que assim se expressou: “Há um vínculo entre o presente e o passado mais poderoso do que pirâmides e bronzes e esculturas e manuscritos: a memória dos homens que não aprenderam ainda a escrever, ou que ainda não tiveram o tesouro das lembranças arruinado pelo uso excessivo da palavra escrita” (Ursprung der afrikanischen Kulturen, 1898, e Kulturgeschichte Afrikas, Prolegomena zu einer historischen Gestaltlehre, 1933).

Havia, de acordo com Frobenius, sempre uma verdade acompanhando os mitos, mesmo que simplificada ou subentendida. E o caso da Atlântida, já encontrado em Platão (400 a.C.), passou a ser verdadeiro ao se deparar com escultura em Ifé (cidade iorubá de 500 a.C.). Ali Frobenius viu surgir e desaparecer a Atlântida nas águas do Oceano Atlântico.

São as memórias inconscientes de uma etnia, de uma cultura, que podem, melhor do que objetos, reportar a origem da tradição, do valor que não morre para aquela sociedade.

O continente africano, nesta segunda década do século 21, abriga quase 1 bilhão de pessoas, que dá a densidade de 30,6 habitantes por km², dividida em cerca de oitocentos grupos étnicos.

Embora polêmico, o trabalho de Quentin Atkinson, da Universidade de Auckland, sobre a origem africana de todos idiomas falados no mundo, aponta para os quatro grupos linguísticos da África: (a) Afro-asiático, no norte e nordeste do continente; (b) Nilo-saariano, que corre a faixa do Sahel e surge mais ao sul, nas proximidades da nascente do rio Nilo; (c) Banto, amplamente dominante no centro e no sul da África, com o (d) enclave dos Khoisan (Bushmen-Hottentots), na região da Namíbia. Na ilha de Madagascar, o Banto se mistura com o malaio-polinésio, mais recente.

A maioria das línguas africanas evoluiu da tradição oral. A datação de 20 a 50 mil anos de seus surgimentos é semelhante aos estudos antropológicos voltados para outros fins, que colocam o homem, que produz a primeira manufatura (Lionel Balout, “A Hominização: problemas gerais”, em História Geral da África, Unesco, 1980, I Volume), ou seja, tem nas mãos artefato inédito, por ele produzido, há 30.000 anos.

Os tempos na evolução das habilidades humanas, a partir do uso da mais antiga pedra, são cada vez menores na medida em que nos aproximamos do tempo atual. Antes do recurso da pedra, o homem só contava com sua energia natural, das pernas, dos braços, do corpo. Pouco diferia dos demais animais.

“A evolução tecnológica durante o Paleolítico e o Neolítico é facilmente demonstrada pela transformação e diversificação dos utensílios de pedra, pela maior eficácia do instrumental lítico, bem como de seus métodos de fabricação” (John E. Giles Sutton, “A pesquisa pré-histórica: introdução à metodologia”, em História Geral da África, Unesco, 1980, I Volume).

Sendo berço do homem, a África foi também pioneira na organização social que, a exemplo de outras civilizações, se deu ao longo dos rios. Na África, o rio Nilo, onde se desenvolveram os egípcios; no Oriente Médio, os rios Eufrates e Tigre, a Mesopotâmia, de onde surgiram os sumérios; e no extremo oriental asiático, às margens do rio Amarelo, os Zhou e os Shang (Yin), ainda que estas dinastias chinesas estejam cercadas de lendas.

As transformações ambientais, como o ressecamento do Saara, fizeram algumas populações da margem sul do Sahel migrarem no sentido leste-oeste, em torno de 3.000 a.C. Estudos arqueológicos em escavações na Nigéria revelaram a “cultura Nok”, no segundo século antes da era cristã. Lá se produziram utensílios e armas de ferro, dando aos bantos condição de superioridade aos povos locais que ainda estavam na Idade da Pedra (Colin Peter McEvedy, The Penguin Atlas of African History, 1980).

Também surgiram complexas organizações políticas, como reinos e impérios, na costa ocidental, ao sul do Deserto do Saara, entre os rios Senegal e Níger, por volta do século 4 a.C. São exemplos o Reino de Gana e a imperial civilização Axun, que dominou o Reino Kush, na parte meridional da península arábica.

Estas populações que se desenvolveram na própria África tiveram limites de crescimento que não conheceram aquelas que se expandiram para outros continentes. As trocas se limitavam às necessidades de sobrevivência e aos recursos disponíveis nas áreas ocupadas.

Um fator de grande transformação foi a expansão do Islã, no século 7, porém não passou da linha do Equador, exceto na costa oriental que atingiu a atual Tanzânia e a ilha de Madagascar.

Talvez esta permanência de boa parte da população originária, trabalhando com as mesmas realidades e dificuldades, tenha impedido o desenvolvimento que encontraram as que cruzaram a Ásia e desbravaram a Europa.

Um continente escravo

Escravidão na África (ilustração Wellcome Collection, domínio público)

O historiador canadense Paul E. Lovejoy, especialista em África, entre sua vasta bibliografia, escreveu, em 2000, Transformations in Slavery: A History of Slavery in Africa, traduzido por Regina Bhering e Luiz Guilherme Chaves para Civilização Brasileira (A escravidão na África – Uma história de suas transformações, RJ, 2002).

Essa defasagem entre a cultura desenvolvida para única realidade e aquela que vai migrando e enfrentando múltiplas condições da natureza e de contato com outros seres vivos deu aos europeus, principalmente, mas igualmente aos mongóis, o ímpeto de dominação que veio a se revelar nos séculos seguintes.

Porém essa pode ser uma condição, outras precisam ser analisadas para explicar, por exemplo, a evolução do “hen”, chineses, que construíram muralhas para garantir seus afastamentos de outras civilizações e inventaram a pólvora, o papel e a impressão, a bússola e o carrinho de mão.

“A escravidão estava fundamentalmente ligada ao trabalho. Não era a única forma de trabalho dependente, mas os escravos podiam ser levados a desempenhar qualquer tarefa. Eles tinham que fazer o que lhes fosse ordenado; como consequência desempenhavam as tarefas mais ignóbeis e pesadas”. E “quando a interação estrutural entre a escravidão, o comércio e o emprego doméstico dos escravos era a parte mais importante da formação social, podia-se dizer que o modo de produção escravo era dominante. Nesse caso, a escravidão tornava-se essencial para reprodução da formação social” Lovejoy (obra citada)

A África negra ou subsaariana esteve isolada do resto do mundo desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, até a chegada dos europeus e dos muçulmanos. Isso era comum a outras regiões do globo, com exceção do extremo oriente que realizava trocas pela Ásia e chegaram até a Europa. Houve, assim, uma estagnação no desenvolvimento societário, restrito à etnia e ao parentesco.

Os modos de produção eram definidos pelas idades e sexo, e a escravidão, uma forma de controle. O homem podia ter controle de várias mulheres, e com a chegada do islamismo na África do norte e do leste, esta condição passou a ter, também, um sentido econômico.

No entorno do Mediterrâneo, as relações sociais eram mais complexas e envolviam outras condições que não da etnia e parentesco. A África Negra ficou portanto afastada destas transformações.

Esta condição da escravidão que foi aproveitada pelas religiões e pelo comércio para tolher o desenvolvimento africano transformou, ao fim, em vítima da espoliação internacional. O tráfico de escravos africanos passou a ser uma forma de economia para os não africanos a partir de 1600. Lovejoy afirma que, apenas para as Américas, entre 1600 e 1800, foram enviados quase 10 milhões de escravos, praticamente o dobro da população estimada deste nosso continente.

Formação da Organização da Unidade Africana, 1963 (foto reprodução União Africana)

A luta por uma governança africana

Vimos que a Europa dominou por séculos a África, impôs seus idiomas, religiões e modos de vida. Encontrou a facilidade de um continente em estágio civilizacional mais atrasado. Assim, não é de surpreender que o primeiro esforço de libertação tenha se dado pela cor da pele, o que era a mais evidente diferença dos africanos para os nativos nos demais continentes: a negritude. Porém com a restrição que os primeiros líderes fossem intelectuais de expressão europeia, como Léopold Senghor, Kwame Nkrumah, Agostinho Neto, Patrice Lumumba, Eduardo Mondlane, entre outros.

Constituíram a geração independentista nacionalista dos anos 1960, com forte influência socialista, que desapareceu com a invasão neoliberal globalizante a partir da década de 1980.

No entanto, passado o período de transferência de recursos públicos e de privatizações para que fluísse para o sistema financeiro o patrimônio estatal, a banca, agora denominada gestora de ativos, mostrou sua incapacidade administrativa. Apenas sabe promover guerras e lançar títulos financeiros sem lastro, levando os países onde domina a política à falência, desindustrialização, desemprego, fome e miséria, como se vê na Europa, nos EUA e nas suas colônias financeiras e ideológicas.

Surge então, em países da área do Sahel, nova luta pela independência, agora já experiente do passado recente, buscando, inclusive, tornar oficial os idiomas nativos, sendo os europeus, quando muito, idiomas de trabalho.

Seguem o precursor Julius Nyerere, da Tanzânia, único a ter em idioma africano, o suaíli, a língua oficial do país. O suaíli, falado em 12 países, faz parte do grupo idiomático banto.

Os países que agora se levantam foram colônias francesas, da África Ocidental Francesa: Guiné, Burkina Faso, Níger, Mali, apenas o Sudão do Sul pertenceu ao britânico Sudão Anglo Egípcio.

A CEDEAO, Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, bloco econômico-militar de 15 países, é criação colonial que logo se manifestou contra as insurreições que atendem aos interesses das populações e não da elite local suportada pelos capitais estrangeiros.

O novo ciclo de descolonização aponta a insofismável decadência da geopolítica europeia, que, de centro mundial, gradualmente retorna à condição de periferia eurasiática, e possibilita à África construir as instituições e as infraestruturas necessárias à integração ativa na globalização comercial e tecnológica, que o colonialismo europeu não pode lhe proporcionar.

Ainda é incipiente, mas pode sair deste movimento novo modelo de governança, na linha do tentado pelo Estado Plurinacional da Bolívia. O importante é assegurar a unidade nacional pela ação estatal, para que os objetivos comunitários possam ser alcançados num mundo que é, como sempre foi, marcado pelo poder dos grandes estados e soberanos.

 

XIII – Como será o amanhã?

Bandeira do Brasil - Ordem e Progresso (foto de André Maceira, CC)

Iniciando esta série, em 19 de dezembro de 2023, perguntávamos: o que significa governar? E nos propúnhamos a refletir, tendo por base a história, como tirar o Brasil da crise que nos acomete desde quando aceitamos as finanças neoliberais como recurso para retirar os militares do poder, em 1980, ou seja, na sucessão do presidente Ernesto Geisel.

Pelo período, que hoje se encerra, percorremos criticamente a China Confuciana, as primeiras manifestações no Egito e na Mesopotâmia, e o mundo ocidental, de Roma ao neoliberalismo do Consenso de Washington. Arriscamos entender a África, por séculos um continente dominado por terceiros, que busca sua expressão de independência mais uma vez.

Todavia, para que todos estes exemplos nos servem hoje, na terceira década do século 21? Com o mundo dominado pelo medo de guerra, que pode eliminar a vida civilizada, com o retrocesso das transições energéticas e do domínio oligárquico da informação cibernética?

O gênio Darcy Ribeiro, esperançoso, via na revolução termonuclear o caminho da independência e da vida harmoniosa em nível planetário.

O Brasil, abundante em recursos naturais, proporciona gama sortida de fontes energéticas: as quedas d’água, as marés, os ventos, a luz solar, a biomassa, a termonuclear, além das imensas jazidas do pré-sal. Energia é trabalho, trabalho é riqueza, e riqueza é soberania. Nada falta ao Brasil, em termos materiais, para sermos soberanos.

Porém, o devido aproveitamento dos nossos dotes naturais passa pela consciência das nossas potencialidades – questão de comunicação – e pela vontade de realizá-las – questão de poder. Energia, comunicação e poder, eis a tríade sobre a qual realizaremos o sonho do Brasil Potência.

Desenvolveremos esses três temas para conclusão do leitor arguto e bem informado do Monitor Mercantil.

A energia

Pode-se entender a história do homem na Terra pela apropriação das energias. Quanto mais sofisticada e maior a quantidade de energia disponível, mais complexa e rica será a sociedade. Compare o homem coletor caçador, que viveu há mais de 30 mil anos, e só tinha a força das pernas e braços, e a China de hoje, que já produziu, em laboratório, a energia da fusão nuclear, o que significa ter criado, ainda que por poucos minutos, um sol.

Apropriar-se das energias mais possantes é não só ter maior bem-estar, mas igualmente mais poder para a sociedade.

No passado, as energias disponíveis eram a solar, a eólica, a dos rios e do fogo, a mais antiga. Desde a Revolução Industrial, o mundo conheceu o maior e mais rápido desenvolvimento, que se deveu às energias fósseis: o carvão mineral e o petróleo.

Sintetizando, temos hoje as energias hídrica, fóssil, atômica e da biomassa. Sendo o petróleo a mais versátil, barata e permanente, mas que concorre com o próprio petróleo como insumo industrial para infinidade de produtos.

Analisemos, separadamente, o petróleo como fonte primária de energia e como insumo industrial. Ele está distribuído irregularmente pelo planeta, formando quatro polos. O mais abundante está no Oriente Médio tendo, em 2020, reservas da ordem de 836 bilhões de barris, ao qual seguia a América Latina, 330 bilhões, a Comunidade dos Estados Independentes (CEI), 146 bilhões, e a África, 125 bilhões.

Algumas informações divulgadas por revistas e instituições que tratam do petróleo cometem o erro de somar reservas de petróleo com as dos folhelhos ou areias betuminosas, que não apenas se encontram diferentemente do petróleo na natureza, como são extraídos por processos também diferentes.

Fora destes polos, poder-se-ia citar a China, com 26 bilhões de barris de reservas, a Noruega, com 8, e a Índia, com 4,5 bilhões de barris.

Esta concentração fora do domínio anglo-estadunidense ou, ainda mais, da União Europeia (UE) e dos Estados Unidos da América (EUA), provoca uma situação diferente das Revoluções Industriais, no que se refere à concentração de poder político, econômico e militar.

Ainda no campo da energia, um barril de petróleo contém 1.700 KWh. E de energia que pode ser estocada e fornecida independentemente das condições de tempo e clima. E pode ser transportado quer na forma líquida quer gasosa com facilidade. Daí sua importância para a sociedade consumidora de grandes quantidades de energia como a industrial urbana.

As farsas da transição energética nada mais representam do que a luta pelo controle do petróleo, altamente concentrado no mundo, como demonstramos.

Cabe desenvolver a biomassa, no campo da energia. Ela também precisa do petróleo como fertilizante e como provedor de equipamentos. Mas pode trazer a descentralização da produção de energia que atende a áreas de vocação agrícola diversificada, pois são diversos insumos que produzem a biomassa.

O diplomata e economista Adriano Benayon (Brasil de Fato, janeiro de 2008) afirmou que “não é o uso da biomassa para gerar energia que agravará a fome, mas o modelo econômico concentrador”. Realmente, a grande vantagem da biomassa está na dispersão de produção de energia por pequenas propriedades, favorecendo, mais do que impedindo, a distribuição de renda.

No Brasil, o sucesso inicial do Pró-Álcool foi derrotado pela invasão estrangeira na produção e comercialização do etanol, tirando as possibilidades de “Empresas Brasileiras de Agroenergia”, como propusera José Walter Bautista Vidal, principal responsável pela implantação do Pró-Álcool, como secretário de Tecnologia Industrial no governo do presidente Geisel.

O petróleo como insumo industrial tem imensa gama de produtos: para indústria farmacêutica, para solventes, tintas e vernizes, para detergentes, fibras sintéticas, fertilizante, borracha, plásticos de uso na construção civil, em equipamentos industriais e de transporte etc. E durante muitas décadas ainda não encontrará competidor em diversidade de usos, facilidade de manuseio e custo.

Uma residência de classe média no Rio de Janeiro e São Paulo consome em torno de 350 KWh, ou seja, pouco mais do que 20% de um barril de petróleo. O preço do KWh, fornecida pelas empresas privadas de distribuição de energia, está em torno de R$ 1,30. Um barril está por US$ 80, logo o custo da energia deveria ser, para a residência escolhida, US$ 16. Porém as concessionárias cobram cerca de US$ 90, ou seja, mais do que um barril de petróleo para fornecer 20% da energia nele contida.

Não se trata apenas da fome de lucro destas empresas, mas as energias de outras fontes, que não o petróleo, não são permanentes, ou não permitem estocagem, ou exigem mais altos investimentos no transporte e distribuição. E, de algum modo, usam também petróleo…

A comunicação

Pathé Diagne, linguista, historiador e político senegalês escreveu: “A história visa ao conhecimento do passado. A linguística é a ciência da linguagem e da fala. A narrativa e a obra histórica são conteúdos e formas de pensamento. A língua é, em si mesma, o lugar desse pensamento” (“História e Linguística”, em História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África, Unesco, 1980).

Antes de identificar as etnias, os antropólogos identificaram os falares. O mapa dos falares africanos permitiu identificar o caminhar dos primeiros homens pelo continente, donde se concluiu a dispersão inicial pela faixa de terra que parte do chifre da África, entre a zona de deserto e do Sahel, ao norte, e a floresta, ao sul, até encontrar as bacias dos rios Níger e Senegal, quase na costa do Atlântico.

Porém a comunicação passou pela revolução da Teoria Matemática da Comunicação (Claude Shannon, 1948), e os textos e falares passaram a ter tratamento digital, passo seguro e definitivo para a comunicação virtual. Embora a comunicação virtual tenha começado com a invenção do telefone, foi o advento das câmaras, das redes de informações e outros recursos para comunicações instantâneas que tornaram a comunicação virtual o grande sucesso de hoje.

O processamento digital, buscando a economia dos signos levou à construção de linguagens que depauperaram os idiomas, os empobrecendo, inclusive o inglês, que foi o mais utilizado. Esta alteração da comunicação teve grave influência no modo de pensar e agir.

Os vagidos pré-natais e dos primeiros dias da criança apenas mostram o desconforto pelas cólicas, pela fome, pela necessidade de trocar de roupas ou de ambiente. Paul Chauchard (Le langage et la pensée, 1956) discorre sobre um “processo inato” de acrescentar aos vagidos uma linguagem que poderá satisfazer ao círculo que cerca o bebê. E este médico e cientista francês afirma ser o começo para o domínio das linguagens.

Ora, os nascidos nesta era digital necessitarão conhecer a linguagem dos notebooks, dos celulares, das redes de relacionamento, sem a qual estarão limitando seu círculo de contatos, demonstrando uma contemporaneidade não coetânea.

Investir no controle das mídias deixou de ser uma necessidade de marketing para se transformar no controle da própria sociedade. Não é por acaso que as pessoas que surgem como as mais ricas, nas informações socioeconômicas, são as proprietárias de linguagens e de sistemas de comunicação digital.

Tão importante quanto dominar, há poucas décadas, línguas estrangeiras, é ter competência no uso dos recursos fornecidos pela Microsoft, empresa cujo principal acionista é o bilionário William Henry “Bill” Gates III. O mesmo diz respeito aos aplicativos que desconhecem fronteiras nacionais e estão no cotidiano de todos, como o Uber, o Instagram, o iFood.

E não estamos tratando das desinformações de interesse político, ideológico, religioso. Não seria minimamente razoável alguém se declarar, há mais de 20 anos, “sionista cristão”. Soa, para nós, como declarar-se “gordo magro”, ou “alto baixo”.

Sionista é o adepto do movimento político religioso que defende a autodeterminação do povo judeu e a existência do Estado nacional judaico, independente e soberano no território onde teria existido o antigo Reino de Sião. Sem levar em consideração as populações que também historicamente ocupam aquele território. Cristão é a pessoa que crê e vive de acordo com as mensagens de Cristo, que podem ser resumidas em “não faça aos outros o que não deseja para si”, ou “amai-vos uns aos outros”.

O domínio da comunicação passou a ser um bem tão valioso quanto o domínio da principal fonte de energia.

O poder

O poder surge, historicamente, pela força ou pela riqueza. Ao tratarmos da governança romana, assinalamos a excepcionalidade da lei, como poder, e da múltipla origem étnica na cidadania. Porém a ideologia religiosa demoliu esta construção societária.

Ao se desenvolver, as sociedades vão criando modelos mais sutis de governança, para que poucos a exerçam efetivamente. Veja a situação atual do Brasil. Tende-se a demonstrar a existência de diversos grupos disputando o poder. Na realidade, eles apenas disputam a possibilidade de servir ao único e verdadeiro poder, que tomou a civilização ocidental desde 1980: o financeiro neoliberal.

Urge, pois, o adequado planejamento estratégico da Energia, da Comunicação e do Poder para colocar a governança à persecução dos objetivos nacionais permanentes, quais sejam, a soberania, o desenvolvimento e a justiça social.

Não há “livre-mercado” quando se lida com os recursos vitais das coletividades: se o Estado Nacional não planejá-los em benefício da Pátria, as finanças transnacionais o farão em proveito próprio. Somente o Estado nacional é capaz de representar e resguardar a soberania, ainda mais em tempos de acirramento da competição entre impérios e civilizações, como hoje.

Eis, portanto, a necessidade de sistema de governança verdadeiramente nacional, para que, a despeito das vicissitudes históricas, o Brasil seja sempre dos brasileiros.

 

(*) Felipe Maruf Quintas, doutor em ciência política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

(**) Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.

Publicado originalmente em XIII partes no Monitor Mercantil

Este texto expressa a opinião dos seus autores e não as do Oriente Mídia.

Share Button

Deixar um comentário

  

  

  

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.