Do Ocidente para o Oriente, ou: “A Eurásia Expandida” 

Share Button

Декан факультета мировой экономики и мировой политики НИУ ВШЭ Сергей Караганов. Фото: РИА Новости

25/10/2016, Sergei A. Karaganov, ing. em Global Affair, de orig. ru. publicado em 24/10/2016, em Rosiiskaya Gazeta, Federal Issue n. 7.109


Pepe Escobar em Twitter, 10/6/2022, 1130 04:32

(…) Karaganov é o autor-chave do conceito de Eurásia Expandida, que me explicou no final de 2018, em Moscou. Está focado na real integração Rússia-Europa, deixando de lado o Excepcionalistão.

Altos funcionários que participaram do Fórum Econômico Oriental recentemente realizado em Vladivostok discutiram, numa das sessões, sobre quem teria sido o verdadeiro autor da ideia do movimento de pivô, da Rússia, em direção ao Oriente. Alegra-me que o tenham feito, pois há muito tempo venho defendendo o impulso econômico da Rússia em direção aos mercados asiáticos em crescimento. A discussão converteu-se em mais uma prova de que o pivô não apenas ocorreu, mas estava realmente ganhando impulso; pelo menos na mente da elite russa.

A vitória tem mil pais, mas a derrota é órfã. Levará algum tempo até que mudanças semelhantes ocorram na mente de outros russos, cuja mentalidade ficou presa em algum ponto dos tempos soviéticos, quando a Ásia era vista em geral como suja e retrógrada; e a China era vista como nada menos que ameaça real. Outros talvez tenham parado nos anos 90, quando sonhávamos acordados e ‘víamos’ que o Ocidente viria nos resgatar. Assim muitos não viam que o Ocidente quase arruinou nosso próprio país. Pior que isso, os russos não perceberam ascensão do Oriente.

Muitos dados orgulhosamente citados pelo Ministério para o Desenvolvimento do Extremo Oriente russo mostram claramente que o movimento de pivô em direção Leste está ganhando impulso. O investimento na região ultrapassou 1,1 trilhões de rublos em 2016 e espera-se outro trilhão no próximo ano; 66.000 novos empregos foram criados; 14 territórios de desenvolvimento avançado oferecem termos de investimento muito benéficos (bastante regulares pelos padrões gerais, mas bastante únicos para a Rússia); a maioria dos portos da região aderiu ao programa “Porto Livre de Vladivostok”, desfrutando de privilégios substanciais (na verdade, bastante normais pelos padrões regionais).

O Fundo para o Desenvolvimento do Extremo Oriente Russo e a Agência para o Desenvolvimento de Recursos Humanos, Investimento e Apoio à Exportação tornaram-se operacionais. Foram adotadas leis-chave e um programa modernista para o desenvolvimento da região.

Mas ainda há muito a ser feito. O governo não só deve atrair investidores, mas também oferecer-lhes uma estratégia econômica externa clara, baseada em previsões (embora cada vez mais negativas) para o desenvolvimento da economia mundial e dos mercados do sudeste asiático, a fim de criar novas instalações de produção para os mercados futuros ou encaixar-se nas cadeias tecnológicas emergentes. Caso contrário, os investimentos serão inúteis ou deficitários ou, na melhor das hipóteses, serão dirigidos ao mercado interno, não conseguindo impulsionar as exportações e garantir o acesso a novos mercados e recursos externos necessários para o desenvolvimento em meio à retração da demanda global, especialmente nos mercados antigos.

Pode-se ficar encantado com um aumento relativo no comércio da Rússia com a Ásia e com o fato de que a China é agora nosso parceiro comercial número 1 e, de investimentos, é número 2. Mas é hora de começar a diversificar nosso comércio também com a Ásia, a fim de evitar a dependência excessiva – até mesmo da amistosa China. Tal dependência enfraquecerá as posições políticas e as cartas com que a Rússia pode trabalhar na negociação econômica.

Japão, Coréia do Sul e os países da ANSA (Associação nas Nações do Sudeste Asiático; ing. ASEAN) podem fornecer tecnologias modernas e recursos financeiros, mas sobretudo, e mais importante: liberdade de manobra tanto no Oriente como no Ocidente.

A última cúpula Rússia-ASEAN foi bastante bem-sucedida e produziu uma série de acordos que agora precisam ser preenchidos com conteúdo econômico e, possivelmente, militar-político.

Também foram feitos progressos na área ocidental do Extremo Oriente russo. Em vez de conflito entre os dois países da Ásia Central, que muitos na Rússia e na China temiam que acontecesse – e que muitos fora da região desejavam –, Moscou e Pequim concordaram em “emparelhar”, lado a lado, seus respectivos projetos: as Novas Rotas da Seda (também chamada “Iniciativa Cinturão e Franja”) e a União Econômica Eurasiana, UEE (ing. EEU).

Os dois países estão agora discutindo detalhes concretos de integração. (Tanto quanto sei, a noção de “se emparelharem” as duas iniciativas foi proposta pelo diplomata russo Igor Morgulov). Chegou-se a um acordo, embora um pouco tardio, para criar uma ligação ferroviária via Azerbaijão com Irã e Índia, que deverá crescer rapidamente nos próximos anos.

Mas a Rússia precisa fazer mais para alcançar a melhor posição geoeconômica e geopolítica possível, como centro e elo de ligação para a Eurásia, e agir como contrapeso amigável e construtivo à China para garantir que ela não se torne “forte demais” ou se transforme em hegemon em potencial, que assuste os vizinhos.

Finalmente, ao mesmo tempo em que a desglobalização ganha força, a ordem econômica mundial torna-se cada vez mais fragmentada; e os EUA tendem cada vez mais a usar a interdependência econômica e os laços econômicos como arma para obter ganhos políticos próprios, vai-se tornando cada vez mais vitalmente importante para a Eurásia evitar estes perigos. Espera-se que venha a tornar-se o berço de uma nova ordem mundial mais justa e estável que substituiria a velha ordem que está desmoronando.

A ordem mundial que os EUA  tentaram construir após o colapso da União Soviética, com base na hegemonia política, econômica e ideológica do Ocidente, provou-se – como se podia prever que aconteceria – inviável. Começou a desmoronar muito rapidamente a partir de meados dos anos 2000, tanto porque o Ocidente cometeu erros, muitas vezes criminosos, como a agressão a Iugoslávia, Iraque e Líbia, como também, e simplesmente, porque passou a crer que a partir daqueles ‘sucessos’, a vitória final já lhe estaria assegurada.

Tudo isso resultou em super-estresse imperial nos EUA e numa série de trapalhadas ou erros por inação na União Europeia quando a ação era extremamente importante. Tudo isso acabou por levar a crise profunda ainda sem fim à vista.

Parte das elites europeias procuram manter sua união que derrete a olhos visto, tentando consolidá-la com muita retórica anti-Rússia. (Agora que a política de sanções provou ser inútil, a UE as mantém só para mostrar alguma “unidade” sob a liderança alemã; e também para demonstrar a lealdade de Berlim a Washington). Mas essa base é frágil demais, insuficiente para evitar que a união desmorone. Todos os europeus pensantes podem ver claramente o que se passa, mas não têm qualquer solução à mão. Também preveem uma inevitável retirada dos EUA, da Europa, ainda que com hesitação e até mesmo com tentativas persistentes de reavivar o confronto.

Os europeus precisam de uma chance, pelo menos teórica, de encontrar saída construtiva para seu atual impasse.

A crise da ordem mundial, que o Ocidente tentou impor desde os anos 90, foi gravemente agravada nos anos 2010, quando desafiada, de forma bastante direta pela Rússia, um pouco menos pela China e outros novos líderes, mas mesmo assim bem abertamente, como ordem mundial injusta, desvantajosa para eles e perigosa para o mundo; e sobretudo como ordem disfuncional.

Foi aí que uma nova alternativa foi proposta.

Rússia e China surgiram, conjunta e oficialmente, com o conceito de parceria ou comunidade da Grande Eurásia, ou Eurásia Expandida, como espaço comum de cooperação econômica, logística e de informação, de paz e segurança de Xangai a Lisboa e de Nova Deli a Murmansk.

No século XIX, a Rússia estendeu a Europa até o Oceano Pacífico. As casas anteriormente ocupadas por empresas e bancos russo-alemães e russo-holandeses continuam lá, como verdadeiro adorno, nas ruas de Vladivostok, Khabarovsk e outras cidades siberianas, até hoje.

Atualmente, a Rússia tem a oportunidade de colher benefícios políticos e econômicos atuando como outro canal ou talvez mesmo como centro de integração em ascensão entre a Ásia e a Europa, que ainda é tecnologicamente avançada, embora mais murcha, a cada nova crise.

O mais importante, a Rússia tem a chance de ganhar novo status, não o de periferia da Europa com posses na Ásia, mas como potência do Atlântico e do Pacífico atlântico-pacífico comprometida com o futuro, como um dos centros da ascendente Eurásia Expandida.

Naturalmente, qualquer papel de liderança em nova comunidade (se outros argumentos ainda forem necessários) exigirá que a Rússia siga ativa política de desenvolvimento econômico e tecnológico. Mas desde o início, a Rússia terá que se encaixar na estrutura e nas cadeias tecnológicas da Eurásia. Na Eurásia Expandida, a Rússia pode produzir e fornecer, junto com antigos e novos parceiros, alguns produtos de alta tecnologia, alimentos, produtos de uso intensivo de água e uma variedade de matérias primas processadas a níveis profundos. Mas, ainda mais importante, pode tornar-se o principal fornecedor de segurança no continente. Afinal, a Rússia já faz isso, embora ainda sem ter exibido a própria capacidade, que permanece desconhecida, mas já preocupando muito os “velhos líderes”, precisamente por manter as coisas como estão.

O conceito da Grande Eurásia também pode ajudar a resolver os problemas de segurança europeus criados pela expansão das alianças ocidentais e pela reação natural da Rússia àquelas alianças, e que permanecem sem solução dentro da velha estrutura.

Os verdadeiros desafios de segurança que o subcontinente europeu enfrenta (além do confronto residual que alguns estão tentando reviver) – imigração, terrorismo, extremismo religioso, crescente desigualdade econômica ou desemprego em massa entre os jovens –, só podem ser resolvidos se tratados em todo o continente.

Claramente, uma comunidade ou parceria para o desenvolvimento, cooperação e segurança na Eurásia Expandida é projeto conjunto de todos os Estados que desejem participar. Seus contornos serão ajustados pela vida real e pela busca de maneiras de lidar com antigos e novos desafios.

Os seguintes elementos da arquitetura geoeconômica e geopolítica da Eurásia Expandida, projeto iniciado pela Rússia e pela China, parecem ser óbvios, pelo menos para mim, nesse momento.

Geograficamente, é provável que o projeto abranja países que participam da Organização de Cooperação de Xangai (ing. SCO), da União Econômica Eurasiana (ing. EEU), da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ing. ASEAN), países envolvidos na integração da Rota da Seda e da União Econômica Eurasiana, provavelmente incluindo Turquia, Irã, Israel, Egito e um novo espaço econômico a ser criado junto com a Parceria Econômica Global Regional promovida pela China e pela ASEAN com Índia, Japão e Coréia do Sul.

A Rússia e seus parceiros da EEU terão de decidir quanto ao modo como devem juntar-se ao processo de construção desse grupo econômico flexível.

Organizacionalmente, a Grande Eurásia se baseará, e obviamente é como deve ser, na coordenação de vários projetos econômicos e políticos como a SCO, a EEU, outras organizações e instituições financeiras na Eurásia, onde já se multiplicam rapidamente, possivelmente com a UE acabando também por saltar para esse comboio.

A SCO pode atuar como aglutinante nessa construção, com maior número de estados observadores e, o mais importante, com comitês permanentes e fóruns de negociação a serem criados dentro da Organização, para liberalizar o comércio, coordenar padrões técnicos e políticas econômicas, financeiras e de segurança, incluindo a luta contra o terrorismo e o crime cibernético, bem como os esforços para controlar a migração. A SCO pode também precisar criar um tribunal de arbitragem para resolver disputas econômicas e políticas.

Uma parceria ou comunidade da Eurásia Expandida deve ser baseada em princípios esclarecidos e realistas. Dentre esses princípios destacam-se:

  • Compromisso com maior bem-estar de todos os estados membros, a ser alcançado, dentre outras coisas, mediante movimento gradual em direção a uma área de livre comércio pancontinental;
  • Apoio a um sistema econômico livre, isto é, liberal, continental e global, e a esforços para evitar que se fragmente e politize-se;
  • Cooperação baseada em jogo de soma positiva, benéfico para todos;
  • Respeito incondicional à soberania do Estado e à integridade territorial de todos os países que compõem a comunidade e o mundo como um todo;
  • Respeito igualmente incondicional ao pluralismo político, ao direito de cada nação escolher o próprio caminho para o desenvolvimento e seu modo de vida, apoio à liberdade de toda e qualquer interferência externa, ao pluralismo cultural, à fé e à tolerância religiosa. Os povos que vivem no continente e no resto do mundo podem, um dia, encontrar diferentes versões de um modelo político, ou seja, da própria democracia. (Peguei emprestado este pensamento do respeitado especialista russo em relações exteriores Fyodor Lukyanov). Também é possível que não exista modelo que sirva a todos os países;
  • Resistência contra as políticas de força utilizadas para criar novas ou reviver velhas alianças e divisões político-militares;
  • Compromisso de cooperar para a solução de problemas continentais e globais, como poluição ambiental e mudança climática, utilizando práticas avançadas, inclusive europeias.

Esses não são princípios novos. São inspirados pelo bom senso e declarados sob diferentes enunciações na Carta das Nações Unidas e outras organizações internacionais. O problema é que não são aplicados. O progresso da humanidade e do mundo pode ser interrompido e revertido pelo retrocesso, por guerras e pela intolerância.

Devemos fazer um esforço para desenvolver e fortalecer esses princípios dentro da Eurásia Expandida no início. E depois temos de tentar estendê-los, mediante o exemplo e a cooperação, ao resto do mundo.

Naturalmente, esse projeto está aberto a todos os países e continentes, e deve continuar assim. O projeto não deve procurar isolar o maior ator-protagonista do mundo – os EUA.

Mas cabe aos EUA escolher. Décadas atrás, os EUA ajudaram grande parte da Europa do pós-guerra e derrotaram os inimigos a seus pés, e desempenharam papel fundamental na criação do moderno sistema econômico global internacional. Mas, tendo optado nos anos 90 por tentar a hegemonia global, e fracassado, os EUA agora buscam vingança.

Ao agir de forma que objetivamente (e muitos supõem que com má intenção) só colabora para desestabilizar muitos países e regiões, os EUA perderam o rumo, e hoje vivem grave crise política (ver Clinton-Trump).

Mas a humanidade não pode esperar que os EUA parem de esbravejar e lançar fogo pela boca.

Junto com a ação firme da Rússia para deter as manifestações mais perigosas da política norte-americana, é necessário construir alternativa construtiva para a ordem mundial bipolar arruinada, e para a ordem unipolar que desmorona.

A parceria ou a comunidade da Eurásia Expandida pode e deve se tornar um dos elementos-chave desta nova ordem mundial.

O poeta inglês Rudyard Kipling escreveu em seu poema [The Ballad of East and West]: “Oh, Oriente é Oriente, e Ocidente é Ocidente, e os dois não devem jamais se encontrar (…)” [aqui, ing.].

Quem nunca leu essa balada quase sempre a cita para dizer que um conflito de civilizações seria inevitável. Mas o que Kipling diz no seu [longo] poema, é que, sim, podem unir-se, quando um lado mostrar que respeita o outro. Não há qualquer dúvida de que o respeito é como o trampolim, para que se chegue à Eurásia Expandida.*******

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

Share Button

Deixar um comentário

  

  

  

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.