Por Saif Daana
Al-Akhbar English
Daqui a um ano, mais ou menos, seremos capazes de ler os documentos da Conferência de Herzliya 2015, e então saberemos o que exatamente se passou na cabeça dos mais importantes estrategistas de Israel, em julho de 2014.
“Se pegarem em armas, vocês colocarão um fim nisso. Mas se esperarem os que estão no poder decidam por um fim nisso, esperarão muito tempo” – Malcom X, discurso na Universidade de Oxford
Depois de analisar atentamente os documentos produzidos pelas conferências anteriores e também da literatura publicada pelo Instituto Israelita de Estudos de Segurança Nacional em anos anteriores, pode-se concluir com segurança que os seus olhos não estarão focados somente em Gaza e no distrito Shujayeh, mas também nos Estados Unidos e nas avaliações de estrategistas norte-americanos que sairão dos bastidores do ataque brutal de Israel em Gaza.
Pode-se também inferir que os líderes de Israel estarão extremamente preocupados com as implicações do que acontece em campo na Faixa de Gaza para o status da entidade sionista e sua posição na estratégia global dos EUA. Na verdade, qualquer revés para Israel enfraquece a sua posição e importância para os Estados Unidos, que é uma questão existencial para os israelenses como os seus documentos e estudos nos dizem.
A razão é realmente muito simples. Medir os ganhos e perdas em guerras, que os israelenses são muito hábeis em fazer, nunca é apenas sobre o número de vítimas ou a escala da destruição, não importa quão grande. Pelo contrário, a barbárie e a brutalidade desenfreada, como se vê, por exemplo, no massacre de Shujayeh, é na verdade um sinal de derrota, como aprendemos com a Guerra de Julho 2006 no Líbano.
Foi exatamente assim que a Casa Branca viu o pedido israelense urgente de uma grande quantidade de mísseis guiados em 21 de julho de 2006, depois de Israel ter esgotado seus estoques no bombardeio brutal dos subúrbios do sul de Beirute e sul do Líbano. Para os americanos, o pedido sinalizou que a campanha aérea destinada a destruir o arsenal de foguetes do Hezbollah falhou miseravelmente e que Israel estava em apuros militares, especialmente porque só uma vez Israel fez tal pedido para a Casa Branca anteriormente, no auge da guerra de outubro de 1973. Um ex-funcionário do Pentágono ainda comentou: “Isso [o pedido] só pode significar uma coisa. Eles estão nas cordas” (Veja[1]: Como Hezbollah derrotou Israel, Parte 2: Ganhando a ofensiva terrestre, por Alastair Crooke e Mark Perry). Naquele dia, os americanos perceberam que a guerra acabara e que o Hezbollah havia vencido.
De Gettysburg para Gaza: A ofensiva terrestre
Outro sinal da derrota de Israel em julho de 2006, tal como interpretada pelos americanos, surgiu no mesmo dia (21 de julho), quando Israel, surpreendentemente, decidiu chamar suas forças de reserva, algo que o Hezbollah não fez durante a guerra e algo que Israel está fazendo novamente em Gaza hoje. Na época, Olmert – como Netanyahu hoje – pensavam que uma ofensiva terrestre resolveria o problema que a Força Aérea não podia.
Mas os israelenses se esqueceram de que um erro semelhante do general Robert E. Lee que mudou o resultado da guerra civil americana em Gettysburg, se não o resultado da própria história americana. General Lee não ouviu os conselhos de um de seus oficiais, como ele estava cego pela arrogância do poder. “Ah, eu posso chegar lá, sem problemas”, disse o oficial. “Permanecer lá é que será o problema.”
No entanto, os líderes israelenses não precisam voltar a julho de 1863, a data da batalha mais sangrenta e fatal da guerra civil norte-americana. Tudo o que têm a fazer é voltar a julho de 2006, e lerem os relatórios dos soldados que foram enviados através da fronteira durante a guerra. Na análise de Alastair Crooke e Mark Perry da Guerra de Julho, afirmam: “unidades especiais das IDF [Israeli Defense Forces – Forças de “Defesa” de israel] que operam no sul do Líbano estavam relatando a seus comandantes, já em 18 de julho (ou seja, antes da invasão terrestre) que as unidades do Hezbollah estavam lutando tenazmente para manter suas posições nos primeiros cumes das montanhas [ridgeline] com vista para Israel”.
O que aconteceu em Gaza em 20 de julho de 2014 mostra claramente que os israelenses nada aprenderam com as batalhas em Maroun al-Ras e Bint Jbeil, que conduziram a Brigada Golani (talvez eles deveriam enviar esta brigada para dispersar manifestações de crianças palestinas antes de enviarem-nas para combater adultos). Eles nada aprenderam com todas as lições do Líbano e da Palestina, algo que os americanos também perceberam. (Veja[2]: a resistência do Hezbollah em julho: o milagre da engenharia, Al-Akhbar, 22 de julho de 2013 [árabe]).
Por outro lado, o Hezbollah aprendeu muito bem as lições da batalha de Dien Bien Phu, no Vietnã, aprimorou-as, e as elevou a níveis surpreendentes, como especialistas militares dos EUA que estudaram a Guerra de Julho indicaram. Depreende-se do desempenho heróico da resistência em Gaza que eles tenham aprendido as lições do Vietnã e do Hezbollah muito bem também. A forma como a resistência confrontou soldados inimigos à queima roupa é uma reminiscência de instruções dos líderes vietcongues para seus combatentes: “Lutar contra os americanos em ações de pequenas unidades. Você deve agarrá-los pelas fivelas de seus cintos.”
Felizmente para o Hezbollah, e para os povos que lutam pela sua liberdade que emulariam o Hezbollah depois, um comandante brilhante conduziu a batalha, dando aos estudantes de ciência militar, estratégia e política algo com o que se preocupar por muito tempo. (O desempenho político palestino, mesmo entre os líderes políticos da resistência ainda não chegaram ao patamar de genialidade e heroísmo do desempenho da resistência no campo de batalha em Gaza, o que nos deixa preocupados com a possibilidade de perder mais uma oportunidade).
Como Ho Chi Minh e Vo Nguyen Giap, Hassan Nasrallah sabia que a vitória não era apenas sobre baixas e números, e como eles também, entendeu que há limites para o que o colonizador pode tolerar e que o colonizado só precisava pagar um preço maior do que os colonizadores, a fim de ganhar. Nasrallah também sabia que valia a pena sacrificar-se por um objetivo nobre (não confio em um líder palestino que não coloca seus filhos e filhas na linha de frente como Nasrallah fez). Mais importante ainda, Nasrallah sabia que as implicações do que acontece nos campos da política, cultura, sociologia, economia e estratégias militares, local, regional e até mesmo global, também são fatores importantes nos cálculos de perdas e ganhos.
Em última análise, o inimigo perdeu a batalha, apesar da enorme destruição infligida e as milhares de vítimas, a maioria civis, que matou. Hezbollah prevaleceu porque o desempenho dos combatentes da Resistência no campo de batalha e o desempenho político astuto de seu líder virou o resultado da guerra em “uma derrota política dos Estados Unidos – que inquestionavelmente tomou partido de Israel durante o conflito e se recusou a levá-lo a um fim – [que] foi catastrófico e teve um impacto duradouro sobre o prestígio dos EUA na região “, como Alastair Crooke e Mark Perry e outros especialistas concluíram.
Espere um resultado semelhante para o desempenho surpreendente dos heróis em Gaza com consequências semelhantes para o estado de Israel e sua existência futura. Vamos ler sobre isso em seus documentos em breve.
Como mudar o mundo – com artilharia – em 57 dias
“170 dias de confronto, 57 dias de inferno”, é como o mote de um filme francês descreve a batalha de Dien Bien Phu, uma das batalhas mais épicas travadas pelos povos do Sul global contra o colonialismo europeu. Esses 57 dias foram suficientes para arrancar cem anos de colonização francesa do Vietnã, e para encerrar a campanha imperialista francesa na Ásia de uma vez por todas. Alguns anos mais tarde, a Argélia seguiria o exemplo, removendo também da África o império francês.
Os preparativos para o confronto começaram em 20 de novembro de 1953, e duraram vários meses até o grande dia em 13 de março de 1954. Se não fosse pelas extraordinárias conquistas militares e logísticas realizadas por Hannibal o cartaginês, que transportou um enorme exército de seres humanos, elefantes e cavalos e seus equipamentos da África para Roma através dos Alpes para atacar Roma, o que Ho Chi Minh e Vo Nguyen Giap fizeram em Dien Bien Phu provavelmente teria sido a maior conquista logística na história militar.
Para a grande batalha, os vietnamitas moveram centenas de unidades de artilharia pesada e um lote de equipamentos em suas costas, através das estradas de montanha mais acidentadas e difíceis da Ásia. Eles cavaram trincheiras e fortificações com as mãos para os seus canhões muito simples, além do alcance da artilharia e aviões de guerra franceses, que tinham poder de fogo superior.
Os franceses queriam usar Dien Bien Phu, uma área remota no noroeste do Vietnã, para encurralar combatentes vietnamitas e derrotá-los usando seu enorme poder de fogo. No entanto, o gênio da liderança vietnamita, que sabia muito bem o significado de vitória e derrota, foi capaz de transformar a emboscada em uma oportunidade que entrou para a história como uma das maiores batalhas militares de todos os tempos (imagine se Mahmoud Abbas e Saeb Erekat tivessem liderado a batalha em vez de Ho Chi Minh e Vo Nguyen Giap, a França talvez tivesse colonizado até a lua agora, imagine a Ásia). Esta foi a primeira vez na história que uma resistência popular de um povo colonizado se desenvolveu a partir de simples guerrilha num exército convencional, que foi capaz de, também pela primeira vez, derrotar o mais poderoso dos impérios e reformular o mapa político da região e do globo.
De acordo com a lenda que os franceses muitas vezes contam, Ho Chi Minh, em uma reunião na véspera da batalha com seus tenentes seniores, tirou o chapéu, virou-o e explicou a seus comandantes: Dien Bien Phu é uma tigela de arroz, os franceses estão na parte inferior, e nós estamos ao redor das bordas e não vamos deixá-los sair.
No dia seguinte, em 13 de março de 1954, Vo Nguyen Giap deu suas ordens para abrir fogo. Só no primeiro dia, nove mil projéteis de artilharia foram disparados contra as posições do exército que, apenas alguns anos antes disso, e desde a batalha de Napoleão em Austerlitz, era considerado como um dos mais poderosos exércitos do mundo. A batalha durou 54 dias, mas já tinha sido resolvida com o primeiro projétil.
Aqueles grandes projéteis, simples, baratas, armas dos pobres de fácil fabricação, foram capazes de derrotar o mais poderoso dos impérios, armado até os dentes com aeronaves caras. Para a sua liberdade, os vietnamitas pagaram um preço que era muitas vezes maior que os colonos franceses poderiam suportar para continuar a saquear o Vietnã. A equação era simples: há limites para o que os colonos podem suportar, e todo o colonizado tinha que fazer era pagar um custo maior para vencer.
Em Dien Bien Phu, 2.293 soldados franceses morreram e mais de 23.000 vietnamitas foram martirizados, mas foi um desastre militar e político francês, que abriu o caminho para o fim da campanha francesa na Ásia, e mudou completamente o mapa político do mundo. Os vietnamitas venceram apesar de seus enormes sacrifícios, e as hostilidades cessaram em 08 maio de 1954, nos termos estabelecidos por Ho Chi Minh e Giap, que sabiam que o registro do que aconteceu no campo de batalha foi muito além dos números de baixas.
O que torna esta batalha ainda mais importante, e explica a dialética por trás do preço fenomenal pago pelos vietnamitas em Dien Bien Phu, é que eles não só combateram a elite do exército imperial francês e seus paraquedistas, mas também estavam lutando contra um exército apoiado logisticamente e financeiramente pelos Estados Unidos, o império emergente na época, que forneceu aos franceses tanques M24, por exemplo, e pagou mais de US$ 1 bilhão para ajuda-los em Dien Bien Phu antes que os próprios norte-americanos tivessem que invadir o Vietnã mais tarde.
No entanto, a mesma equação permaneceu válida com os norte-americanos: há limites para o que os colonos podem suportar, e todos os colonizados tinham que fazer era pagar um custo maior para vencer. Os vietnamitas perderam mais de 1,3 milhão de mártires e venceram, e os Estados Unidos foram derrotados porque não poderiam suportar perder mais de 55.000 soldados. A derrota dos EUA também se tornaria um fator importante mais tarde na formação da política internacional, o que levou Immanuel Wallerstein a narrar o início do declínio dos EUA com a derrota no Vietnã. Em outras palavras, 1,3 milhão de mártires vietnamitas foram o custo de mudar o mundo, e não apenas libertar o Vietnã.
Aprendendo a amar o foguete
Lembre-se desta data: 16 de novembro de 2012 seus filhos e netos irão aprender que este dia foi o ponto de virada na história do conflito árabe-sionista. Eles vão aprender que, nesse dia, a Resistência bombardeou Tel Aviv pela primeira vez em sua história. Depois disso, bombardear Tel Aviv no primeiro dia de qualquer confronto seria natural e esperado, em vez de um evento extraordinário.
Eles vão aprender que em 16 de novembro de 2012, na heróica e grande Gaza, os foguetes se tornaram mais que uma arma. Foguetes tornaram-se parteiras da história. Foram-se para sempre os dias que, agora parecem tão distantes no passado, quando bombardear Tel Aviv era um sonho distante, como uma vez achamos, ou um limite intransponível [red line], como o inimigo já pensou.
Em Gaza, que muitos traíram por motivos políticos sujos, esses foguetes eram o título da maior conquista militar e logística na história da revolução palestina, se não na história árabe moderna. Após esses foguetes serem transferidos através de milhares de quilômetros, atravessando fronteiras, países e até continentes, e ignorando espiões e satélites espiões, a Resistência cavou trincheiras para eles, em preparação para o momento decisivo. Em 16 de novembro, quando o dia prometido finalmente chegou, a terra da Palestina sorriu, e o solo de Gaza se partiu para disparar um foguete Fajr-5. O céu pegou fogo naquele dia, pressagiando a épica batalha inevitável entre nós e eles.
Este foguete maravilhoso, os foguetes feitos pelos heróis de Gaza, e os foguetes que seguiram os seus passos, em Julho de 2014, são como um livro de história que chegou até nós a partir do futuro: Nós o lemos para vermos a batalha atual como apenas o prelúdio para uma grande batalha que, sem dúvida, culminará com o fim da entidade sionista e a libertação da Palestina.
Aqueles que não viram o fim de Israel com o primeiro foguete que atingiu a Tel Aviv, e não viram toda a Palestina livre, desde o rio até o mar, com as primeiras sirenes que ecoaram no que foi outrora uma cidade árabe, é cego de visão e discernimento. Aqueles que não leram a história por vir da grande batalha que vem escrito na fuselagem de cada foguete que surgiu desde o ventre de Gaza, sobre o Dien Bien Phu árabe a chegar na Palestina, é ignorante das lições mais simples da história.
Todos que traíram Gaza, ou conspiraram contra seu povo, irão se arrepender. Nós, que gostamos da grande e heróica Gaza e seu povo, dizemos que a nossa tristeza pelas crianças e civis só nos fará mais determinados e mais apaixonados por esses foguetes maravilhosos.
Como gostaríamos de poder falar com aqueles foguetes, e dizer-lhes do nosso grande desejo da inevitável batalha com o inimigo. Como gostaríamos de poder enviar ao inimigo uma carta a bordo desses foguetes a dizer: Vamos lutar com você, nós, nossos filhos e nossos netos e seus filhos, se for preciso. Vamos lutar com você até que o último centímetro da Palestina for recuperado, e todo árabe que não o fizer é um traidor. Só depois disso é que o mundo irá mudar.
Saif Daana é professor de sociologia na Universidade de Wisonsin-Parkside. Ele também é editor associado da Arab Studies Quarterly e contribui para a Al-Akhbar em árabe e inglês, assim como Al-Ahram Weekly.
Original: The dialectic of victory: how I learned to stop worrying and love the rocket
[1] How Hezbollah defeated Israel, Part 2: Winning the ground war
Saif Daana é professor de sociologia na Universidade de Wisonsin-Parkside. Ele também é editor associado da Arab Studies Quarterly e contribui para a Al-Akhbar (árabe e inglês), assim como Al-Ahram Weekly.
[2] Hezbollah’s resistance in July: the engineering miracle