Um filme libanês para refletir: Noites Sem Dormir

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Por Luciana Garcia*. 

Será que é possível uma mãe que tem um filho ainda desaparecido conseguir reconciliar-se com um dos responsáveis pelo desaparecimento em nome da paz? Esse é só um dos dilemas apontados no documentário“Noites Sem Dormir” (Sleepless Nights) da diretora libanesa Eliane Raheb e do palestino Nizar Hassan, documentário pela qual foi apresentada uma belíssima e detalhada pesquisa acerca das histórias particulares de dois grandes conhecidos da imprensa libanesa, de um lado Assaad Shaftari e do outro Maryam Saiidi.

A produção da obra foi no entanto, motivada à partir das confissões e do pedido de desculpas publicada em três capítulos em um jornal de grande circulação no Líbano no ano de 2002 e de um depoimento de Shaftari em uma fita cassete, a qual confessava alguns dos seus inúmeros crimes cometidos durante a trágica guerra civil libanesa. A partir de então, foram através de depoimentos e entrevistas que Eliane Raheb conseguiu passar o perfil psicológico de Assaad Shaftari e o caminho traçado por um personagem ativo no passado na inteligência das Forças Armadas libanesa e a sua volta à vida civil, seu surpreendente anúncio público em prol da paz e à promoção de iniciativas em auxiliar os familiares dos desaparecidos políticos na revelação de informações sobre as circunstâncias dos desaparecimentos como forma de se construir um convívio pacífico na sociedade libanesa. O que levou um antigo miliciano de Direita à promover tantos workshops sobre educação para a promoção da paz e da coexistência?

Estima-se por sua vez que, durante o longo período de guerra civil libanesa, Assaad Shaftari havia sido absolvido por um padre da culpa pela morte de cerca de 500 pessoas. Isso diretamente permitiu que ele assassinasse mais 500 seres humanos, na esperança de que seria mais uma vez perdoado por essas atrocidades. Desde que voltou ao status civil, Shaftari, busca uma espécie de graça divina, pois no fundo, mais parece acreditar na justeza da sua guerra.

Por outro lado e enquanto Assaad Shaftari promove suas aparições públicas, é apresentado outra grande personagem, Maryam Saiidi, uma mãe cuja vida havia sido radicalmente transformada com o desaparecimento de seu filho, Maher Kassir, e encontra-se hoje em sessões constantes de terapia. O trabalho de pesquisa de Raheb e Hassan também procurou analisar os motivos que levaram um jovem universitário à pegar em armas, tornar-se um revolucionário em um cenário completamente sectário que o transformaram em um verdadeiro monstro na década de 1980.

O documentário, no entanto é marcado pelas recorrentes confrontações entre Maryam e Assaad, e o modo como essa dialética interferem nitidamente no caráter de Shaftari. As discussões apresentadas demostram com muita maestria toda a dificuldade da busca da verdade e, expõe todo o sofrimento do processo de reconciliação na atual conjuntura libanesa. Por isso o filme não pode ser classificado como um documentário sobre a guerra do Líbano, mas é tão somente uma história do presente, mais especificamente sobre os atuais debates entre os inimigos do passado e os acertos de contas no presente por parte daqueles que carregam as memórias e as cicatrizes profundas da guerra civil até o atual período de Anistia política.

Tal temática, tão familiar em tantas conjunturas e realidades, ao mesmo tempo, nos revela o quanto é difícil obter uma única verdade, ou mesmo uma verdade absoluta dos acontecimentos do passado marcado pela instauração de um Estado de exceção, guerras e ditaduras. A ansiedade e frustração de Maryam é ter que admitir que Assaad não tenha todas as respostas que ela espera, porque ele é apenas um entre muitos ex-milicianos do então governo de Bashir Gemayel, ao mesmo tempo, Maher, é somente um dos cerca de 17.000 desaparecidos durante a sangrenta e longas guerras no Líbano.

Noites Sem Dormir possui uma função social: provocar seus expectadores, de modo a não ficarem passivos diante de uma cultura de impunidade pelos crimes cometidos no passado. Ao revelar cenas dos depoimentos de Maryam sobre os últimos momento de Maher e, da mesma forma, as discussões nos encontros com Assaad Shaftari, sobretudo durante a cena em uma exposição de fotografias dos desaparecidos políticos em que Maryam desabafa muito emocionada a culpa de Assaad na morte do seu filho, é possível constatar que ainda falta muito para ser revelado, discutido e analisado na recente história do Líbano. As cenas trazem a sensação de que a sociedade libanesa ainda é responsável pelo sofrimento de Maryam, que passa todo o documentário procurando as pistas sobre os locais, de prisão, tortura e assassinado de seu filho, Maher.

O documentário, juntamente com as recentes evidências sobre a existência de cemitérios clandestinos e valas comuns, nos debates sobre a Anistia política no Líbano vem reforçar a idéia da importância da continuidade das apurações e da necessidade de que as informações sejam reveladas para que a história do Líbano possa ser enfim narrada sem omissões e esquecimentos. E a justiça seja restaurada para que a transição política possa finalmente existir.

Assistir Noites Sem Dormir, para muitos é uma experiência emocionalmente desgastante, a produção de Eliane Raheb e Nizar Hassan conseguiu capturar os ressentimentos e a dor de uma nação que permanecem até os dia de hoje. É impossível não se comover com a trilha sonora, cantada por Najat Al Saghira que diz “You left without saying goodbye” (Você partiu sem dizer Adeus).

Fonte original: Carta Maior.

*Luciana Garcia de Oliveira integra o Grupo de Trabalho sobre o Oriente Médio e o Mundo Muçulmano do Laboratório de Estudos sobre a Ásia da Universidade de São Paulo (LEA-USP).

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