Turquia: relações complicadas com vizinhos e aliados

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3/12/2015, Gary K. Busch (Londres), Dance with bears, Moscou

Tradução Vila Vudu

O aspecto mais frustrante da cobertura que a mídia-empresa tem dado aos esforços para suprimir as forças do Daesh (ISIS) no Iraque e na Síria é a terrível escassez de pensamento ‘aglutinante’ por trás da maioria das análises.Há incontáveis testemunhas oculares a ‘noticiar’ eventos diários nos países, cidades bombardeadas, aviões derrubados, disputas táticas pelo controle de cidades e províncias, alianças secretas e atividades nefandas, além de uma litania de oportunismos de políticos profissionais que vivem de nos empurrar análises dos eventos que eles próprios constroem para se autoelogiarem.O problema mais importante, contudo, é que cada aspecto do impacto da crise síria é tratado como unidade discreta, como problema que se esgotaria nele mesmo, sem nenhuma relação que faça algum sentido pelo menos, com o quadro maior.Não há provavelmente melhor exemplo disso, que a reação mundial aos eventos na Turquia e a busca por uma solução para a atual crise em torno da Síria e seus problemas concorrentes.A Turquia é a chave para a crise síria, e é na situação da Turquia – geográfica, política, étnica e militar – que se encontram os problemas antecedentes formativos mais importantes que o mundo enfrenta, sempre que tenta adotar política críveis e prestáveis para lidar com a Síria.A Turquia desempenhou, e continua a desempenhar, papel de duas caras em relação à Síria; assim, pôs-se em conflito com inimigos domésticos e internacionais – opõe-se furiosamente ao regime de Assad, mas muito mais odeia e ataca os curdos, apesar de os curdos terem feito o serviço mais pesado nas batalhas contra o Daesh.A Turquia apoiou o Daesh na Síria; sustentou, com dinheiro e suprimentos a Frente al-Nusrah; atacou e bombardeou os curdos ao sul e a leste da fronteira; criou um mercado de petróleo que rouba da Síria; recusou-se (até recentemente) a permitir que os EUA usassem a base aérea Incirlik; atacou e derrubou um avião russo que esteve (se esteve!) por 17 segundos no espaço aéreo turco. A Organização Nacional de Inteligência da Turquia (tu. Millî İstihbarat Teşkilatı, MIT) há tempos é o principal fornecedor de explosivos, munição, medicamentos e livre trânsito para os agentes armados do Daesh, dentro das fronteiras e sobre as linhas de fronteira da Turquia.Mas, se tudo isso é sabido e ressabido, por que a Turquia tem alvará universal e eterno de “Indenunciável & Inencarcerável”, dado a ela pela ‘comunidade internacional’?Algumas das razões são geográficas. O atual território da Turquia está no centro das conexões que ligam Europa e Ásia; entre as nações das terras centrais árabes e do Golfo, e iraquianos e iranianos; e, ainda mais crucialmente importante, a Turquia controla a distribuição da água daBacia dos Rios Eufrates e Tigre.A crucial questão da águaHá acordos entre esses países todos já desde 1926, com o Acordo de Boa Vizinhança entre Turquia a Síria francesa, demarcando os direitos da Síria à água; e o Tratado de Amizade de Relações de Vizinhança entre Turquia e Iraque, pelo qual a Turquia comprometeu-se a não alterar o fluxo do Rio Eufrates ou construir represas ou outros itens, sem consulta prévia ao Iraque.

Nos anos 1960s, Turquia, Síria e Iraque negociaram uma nova fase de seu relacionamento no que tivesse a ver com a água, depois que a Turquia decidiu construir a

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Represa de Keban

Represa de Keban no rio Eufrates. Depois de demoradas negociações, a Turquia comprometeu-se a manter descarga de 350 m3/s na vazante imediata da represa, desde que o fluxo natural do rio fosse adequado para garantir essa descarga. A decisão foi comunicada a Síria e Iraque no mesmo ano. Além do mais, durante aquelas conversações a Turquia propôs que se estabelecesse uma Comissão Técnica Conjunta (CTC), à qual caberia inspecionar cada rio para determinar a descarga média anual (Mapa 1).

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Em 1965, as três nações reuniram-se novamente para trocar dados técnicos sobre as represas Haditha (Iraque), Tabqa (Síria) e Keban (Turquia) que estavam em construção no rio Eufrates. Nos anos imediatamente seguintes houve vários pequenos acordos de procedimento. Mas não houve nenhum acordo geral sobre a propriedade do uso da água.

Em 1987, turcos e sírios firmaram um protocolo provisória sobre as águas do Eufrates, quando a Turquia estava enchendo sua Represa Ataturk. Outro protocolo foi acordado no Acordo de Alocação da Água entre Síria e Iraque: foi o Protocolo de 1989. Regulava que a Síria permitiria que fluísse para o Iraque a mesma quantidade de água que a Turquia permitisse que fluísse para a Síria (Mapa 2).

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O preço do acordo entre Turquia e Síria foi que os sírios reprimiriam a grande população curda que vivia próxima da fronteira turca.

[1]O problema fundamental nessa divisão das águas dos rios Tigre e Eufrates é que os níveis da água vêm baixando gradualmente, e os períodos de escassez de água são problema sempre crescente para Síria e Iraque.

[2] Desde 1975, a construção extensiva, pela Turquia, de barragens e usinas hidroelétricas vem reduzindo o fluxo de água para Iraque e Síria em quase 80% e 40% respectivamente. Aproximadamente 90% do fluxo de água no Eufrates e 50% no Tigre origina-se na Turquia. Síria e Iraque ficaram em posição de vulnerabilidade.Essa situação complicou-se muito mais e tornou-se crítica com o crescimento da bacia Daesh. A expansão ininterrupta do Daesh por toda a região resultou em “atores não estatais” que já tomaram conta de recursos hídricos nacionais na Síria e no Iraque. Daesh pode usar suas estruturas como meios para impedir que Bagdá e a população xiita que habita a parte sul do Iraque tenham acesso à água. A falta de água tem impacto negativo na produção agrícola e na geração de energia. A escassez de água leva a emigração da região e ao esvaziamento da autoridade e influência política dos países ribeirinhos. Mas o Daesh no norte da Síria e em áreas próximas a Mosul no Iraque também depende do fluxo de água que vem da Turquia. Implica que Iraque e Síria – e também o Daesh – não podem pressionar muito a Turquia, sem se expor ao risco de sofrer racionamento de água.

Uma segunda vantagem para a Turquia, como resultado de sua específica geografia, é que o país controla o Estreito de Dardanelos e o Bósforo. O acesso de navios que entram e saem do Mar Negro depende da Turquia e da Marinha turca que faz guarda no Bósforo e em Dardanelos, ambos em território turco (Mapa 3).

A questão do livre acesso ao Mar Negro foi resolvida na Convenção de Montreux para Controle dos Estreitos, assinada dia 29/7/1936. A convenção modificou a penalidade imposta ao Império Otomano, derrotado na 1ª Guerra Mundial – expressa no Tratado de Lausanne de 1923, que demarcou as novas fronteiras da Turquia, desmilitarizou os estreitos e pôs a navegação sob autoridade de uma comissão internacional.

O pacto de Montreux é acordo internacional reconhecido, registrado na Série dos Tratados da Liga das Nações dia 11/12/1936. Regula o trânsito de navios de guerra. A Convenção dá à Turquia integral controle sobre os estreitos e garante livre passagem de navios civis em tempo de paz. Mas restringe a passagem de navios e embarcações em geral que não pertençam a estados do Mar Negro. Os temos da convenção têm sido fonte de controvérsias que já duram anos, especialmente porque a Marinha Soviética sempre insistiu em viajar para o Mediterrâneo pelos estreitos.

Sem permissão da Turquia navios russos de guerra não podem passar pelos estreitos. A Convenção assegura autoridade à Turquia para fechar os estreitos a todos e quaisquer navios de guerra em tempo de guerra, ou sempre que a Turquia sinta-se ameaçada. A Turquia também foi autorizada a recusar passagem a navios mercantes de países em guerra com a Turquia. Navios de estados que não sejam do Mar Negro só passam pelos estreitos se tiverem menos de 15 mil toneladas. Navios de estados que não sejam do Mar Negro só podem passar pelos estreitos em grupos de nove, desde que a tonelagem somada dos nove não ultrapasse 30 mil toneladas; e só podem permanecer no Mar Negro por, no máximo, 21 dias.

Erdogan acredita piamente que tenha alvará universal e eterno de “Indenunciável & Inencarcerável”, por causa do Tratado de Montreux.

Quando a Rússia impõe sanções à Turquia por ter derrubado avião russo, Erdogan só pensa nas limitações de qualquer possível retaliação russa. O cálculo que se faz hoje em Ancara – e também em Washington – é que, se a Turquia declarar que há “iminente perigo de guerra” (Tratado de Montreux, arts. 20-21) que a Rússia lhe esteja movendo, a Turquia pode cortar o acesso dos russos ao Mediterrâneo, tornando muito mais difícil e caro o reabastecimento das forças russas estacionadas na Síria. Os turcos creem que esse aspecto preocupa os russos.

Os russos, por sua vez, sempre viram essas ameaças turcas, tradicionalmente, como causa para guerra. No caso presente, guerra mundial. A Convenção de Montreux não dá autoridade unilateral à Turquia para decidir quando haveria algum “iminente perigo de guerra”. Na verdade, Montreux assegura aos estados europeus e ao Conselho de Segurança da ONU pleno poder para desautorizar os turcos nesse quesito.

Segundo o sistema que rastreia online o tráfego de navios marinetraffic.com, depois do ataque turco, dia 24/11, que derrubou o SU-24 russo, vários navios russos foram retardados nas manobras para abordar o Estreito pelo sul, à espera da permissão turca para rumar para o norte, para o Mar Negro. Navios de outros países, também rastreados eletronicamente, não sofreram nenhum retardo desse tipo. Dia 28/11, os navios russos voltaram a passar normalmente pelo Bósforo. Um navio, o “Bratsk”, ficou retido por mais de nove horas; o “Volgobalt”, por 14 horas. A mídia-empresa norte-americana noticiou os ‘atrasos’ como ponto marcado pelos turcos, nesse ‘jogo’. A mídia-empresa russa descartou os relatos sobre navios retidos como golpe da mídia-empresa norte-americana.

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Saratov”,navio cargueiro de atracação russo.

 

[3]O “Saratov”,navio cargueiro de atracação russo, da classe Alligator, passou pelo estreito dia 21/11, segundo o Bosphorus Naval News, jornal turco.

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O “Korolev”, cargueiro também de atracação da classe Ropucha III, navegou para o norte pelo Bósforo dia 28/11, como registra a rede turconavy.net.Confortados pelo art. 5º do Tratado do Atlântico Norte que diz que ataque contra um aliado deve ser considerado ataque a todos os aliados, o cálculo em Ancara e Washington é que é pouco provável que Moscou empreenda ação militar considerável contra a Turquia, para não se arriscar a ter de enfrentar confrontação mais ampla, mais letal. A Turquia conta com esse art. 5º, como sua primeira linha de defesa. Por outro lado, há sinais de que, entre os aliados europeus na OTAN não parece haver apoio para as táticas confrontacionais turcas, ou de provocação contra a Rússia nos estreitos. O art. 5º deixa por conta de cada estado-membro a “assistência” a ser decidida “como pareça necessário a cada estado-membro”. Não há nenhum apoio nem alemão nem francês, para ir à guerra para ‘defender’ a Turquia.

Os turcos têm mais um alvará universal e eterno de “Indenunciável & Inencarcerável”, na questão do problema europeu de refugiados. Milhões de sírios estão deixando a Síria por causa da guerra. Muitos entraram na Turquia ou cruzaram a Turquia e uniram-se às colunas de refugiados que aceitaram o oferecimento que lhes fez a chanceler Angela Merkel, de que a Alemanha os consideraria bem-vindos. As proporções do movimento de refugiados ultrapassou a capacidade da Europa para absorvê-los. Assim sendo, apesar da antipatia que sentem pela Turquia e de se recusarem a admitir o país na União Europeia, os europeus aceitaram engolir o desagrado pelos abusos que o governo turco comete contra seus cidadãos, contra sua imprensa, contra seus curdos e contra suas instituições políticas; cederam à chantagem que Erdogan lhes aplicou; e pagaram 3 bilhões de euros para que Erdogan bloqueie o fluxo de refugiados. Além disso, os turcos passarão a receber vistos entregues rapidamente, para viajar pela Europa; e o pedido da Turquia para se tornar membro da UE será novamente posto em discussão. Agora então os turcos fizeram retornar milhares de refugiados e os abandonaram à própria sorte.

Os turcos também descobriram que tem alvará universal e eterno de “Indenunciável & Inencarcerável” que pode usar também com os EUA. Quando os EUA estava saindo do Afeganistão, precisou deslocar homens e máquinas para fora do teatro e de volta para casa. Problemas com o Paquistão tornaram inviável a passagem por aquele país.

Numa ação que a mídia-empresa ignorou completamente, os militares dos EUA arranjaram com os russos a ‘Rede Norte de Distribuição’ (RND) [orig. ‘Northern Distribution Network (NDN)’. De fato, a RND incluía várias rotas, a partir de um de dois nodos ocidentais, na Latvia e na Geórgia. Dessas plataformas seguras de partida, a carga seguia por uma combinação de trens, caminhões e barcos por território russo e alguns “-stões” ex-soviéticos adjacentes, para entrar no Afeganistão pelo norte. Todas as novas rotas partilham o mesmo traço, muito atraente, de evitar o Paquistão. Tomadas em conjunto, essas novas rotas na RND garantiram várias vias para deslocamentos de suprimentos por terra que, embora caras, tornaram logisticamente sustentável, para EUA e aliados, manter sua campanha afegã e, ao final, trazer para casa homens e equipamentos (Mapa 4).

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A precondição chave para aquela colaboração entre EUA e Rússia foi que a Turquia recusara-se a permitir que os EUA se servissem da base Incirlik ou de outras bases na Turquia, para levar para casa seu material afegão. Agora, essa recusa já não existe.

Em agosto de 2015, afinal, a Turquia permitiu que os EUA voltassem a Incirlik para bombardear o Daesh no Iraque e Síria. No primeiro dia em que os EUA voaram missões a partir de Incirlik, os turcos serviram-se da oportunidade para atacarem bases curdas no Iraque e na Turquia. Esse movimento pôs fim, unilateralmente, aos acordos de Washington que haviam criado um cessar-fogo na luta entre turcos e curdos.

Os turcos sabem o quanto é importante para os EUA manter presença na base Incirlik. Os EUA calculam que, porque Washington está agora dependente da Turquia, essa relação conseguirá inibir, nos turcos, o desejo de atacar os curdos.

Os turcos tiveram papel importante na radicalização do Islã na Ásia Central. Por mais de uma década, imãs turcos, patrocinados com dinheiro wahhabista saudita, mantiveram ativas suas escolas religiosas (madrassas) radicais em toda a Ásia Central (Turcomenistão, Cazaquistão, Uzbequistão e no Cáucaso). Há muito tempo dão treinamento a jovens alunos na área; e ao mesmo tempo, os caminhões turcos de transporte dominaram o comércio por terra na região. É o que explica que os contrabandistas de petróleo (para fora) e de armas (para dentro) tenham encontrado condições já praticamente instaladas, que inúmeras vezes usam para seu comércio na região.

O Partido Justiça e Desenvolvimento (tu. AKP) na Turquia foi muito generoso ao prover dinheiro e apoio àquelas madrassas na Turquia e em toda a região. O atual primeiro-ministro, Ahmet Davutoğlu, é o líder da maioria do AKP no Parlamento.

O AKP promoveu aumento explosivo no orçamento alocado para o Diretorado de Assuntos Religiosos e no número de funcionários, que passou, de 70 mil em 2002, para mais de 120 mil em 2014. Por exemplo, de 2010 a 2014, cerca de 40 mil pessoas foram recrutados como professores de Corão, imãs, pregadores e muezzins. Em 2003, havia 3 mil cursos de Corão; no início do ano escolar em 2014, já eram 24.757. Há hoje 85 mil mesquitas, comparadas às 75 mil em 2003, e há planos para construir mesquitas em mais de 80 universidades; por lei, deve haver locais de oração (mescit) em shopping-centers, cinemas, teatros e outros espaços públicos. Escolas religiosas de nível secundário (escolas imam-hatip) têm papel crucialmente importante nos planos do partido AKP para transformar a sociedade turca. Em 2002, tinham 65 mil estudantes; hoje, já são cerca de 1 milhão. Planejadas originalmente para treinar imãs, o número delas ultrapassa em muito a necessidade. Na verdade, são escolas planejadas para formar os quadros “da nova Turquia”. De 2010 a 2014, houve aumento de 73% no número de escolas imam-hatip; e no mesmo período quase 1.500 escolas secundárias ‘gerais’ foram fechadas e cerca de 40 mil adolescentes foram matriculados em escolas secundárias religiosas contra a vontade deles.

[4]

O que mais interessa aos EUA é apoiar os combatentes curdos no Iraque e na Síria. Erdogan, nesse item, opôs-se ferozmente.
O que Erdogan vem querendo da OTAN é que crie uma “zona segura” que impeça os curdos de capturar território no norte da Síria e de unificar seu território com cantões já unificados pelos curdos das Unidades de Defesa do Povo (YPG). Se os curdos do YPG conseguirem criar uma região que eles controlem no norte da Síria, impedirão que os turcos de Erdogan continuem a prover ajuda, armas e assistências aos seus fregueses na Síria: terroristas dos dois grupos, da Frente Al-Nusra e do Daesh.

É importante observar que os sírios turcomenos apoiados pelos turcos de Erdogan que ocupam a região têm impedido que as forças curdas das Unidades de Defesa do Povo (YPG) (apoiadas pelos EUA) unam-se e vedem completamente a fronteira norte da Síria. Por isso as milícias turcomenas tornaram-se também alvos da campanha russa naquela área.

Até agora, os EUA têm-se mantido em silêncio sobre esse desenvolvimento, como se tivessem realmente posto fim a qualquer esperança que Erdogan ainda acalente de ter sua “Zona Segura” na fronteira.

Assim, as coisas vistas de fora, tudo sugere que o governo de Erdogan seja realmente capaz de descartar todos os seus inimigos externos, com vasta gama de desincentivos.

O que o governo de Erdogan não pode fazer é controlar o que acontece dentro da Turquia e na política turca. Por mais que o AKP tenha-se saído muito bem na reeleição de novembro, na Turquia não há quem não saiba que adversários políticos do AKP reúnem-se já para derrubar o governo de Erdogan. Os trabalhistas e sindicalistas turcos estão mobilizados, na luta contra repetidos ataques aos seus direitos. Há jornalistas muito conhecidos, atrás das grades. Houve assassinato de advogados e há advogados presos. O serviço de inteligência MIT pode estar mesmo nas mãos de correligionários de Erdogan do AKP, mas o Exército prepara-se para reestrear naquele cenário.

Grande parte dos militares turcos têm o mais profundo desprezo por Erdogan e não apoiam o partido AKP. O AKP ascendeu ao poder com planos para manter os militares para sempre longe do governo na Turquia. Em julgamento em 2012, um tribunal turco condenou 326 oficiais das forças armadas, incluídos os ex-comandantes da Força Aérea Turca e da Marinha Turca, acusados de conspirar para derrubar o governo nacional islamista, em 2003, num caso que ajudou a restringir a influência dos militares na política nacional (e que ficou conhecido como “A Marreta” ou Bolyuz). Um tribunal de três juízes condenou o ex-comandante da Força Aérea Ibrahim Firtina, o ex-comandante da Marinha Ozden Ornek e o ex-comandante do Exército Cetin Dogan a penas de prisão perpétua, depois reduzidas a 20 anos de prisão, porque o ‘complô’ não teve sucesso. A corte também condenou 323 outros oficiais, da reserva e da ativa, inclusive um ex-general eleito ao Parlamento, por envolvimento na conspiração, vários deles com penas de 18 anos de cárcere. 36 oficiais foram absolvidos, e o processo de três outros acusados foi adiado.

No tribunal, os procuradores acusaram os 365 militares de terem conspirado para depor Erdogan, gerando tumultos de rua em todo o país que teriam preparado o caminho para um golpe militar. As acusações incluíram ter participado de seminário militar em 2003, quando se traçaram planos para um golpe que incluiria bombardeamento de mesquitas, derrubada de um avião turco e outros atos de violência, que abririam caminho para intervenção militar sob o pretexto de restaurar a ordem.

E não só os militares sofreram repressão do governo do partido de Erdogan. Mais de 400 pessoas – incluídos jornalistas, acadêmicos, políticos, sindicalistas e soldados – foram julgadas, acusadas de envolvimento numa conspiração que teria sido organizada por uma gangue de nacionalistas seculares chamada “Ergenekon.” Iniciado em 2007, o julgamento Ergenekon terminou em 2013, com o ex-general Ilker Basbug, condenado a prisão perpétua. Basbug, que serviu como comandante do Estado-maior no governo de Erdogan, foi preso em 2012, acusado de liderar o complô do grupo Ergenekon contra o líder do partido AKP. Penas semelhantes foram aplicadas a outros 18 militares ex-subordinados ou colegas de Basbug. Hursit Tolon, ex-comandante do Primeiro Exército, foi condenado a prisão perpétua, sob a mesma acusação feita a  Basbug. O ex-vice-comandante do Estado-maior, general Hasan Igsiz, também foi condenado a prisão perpétua. O general aposentado Nusret Tasdeler e o coronel aposentado Fuat Selvi também receberam penas de prisão perpétua. O ex-comandante da Polícia Nacional, comandante Sener Eruygur, recebeu “pena perpétua agravada” – punição reservada para casos de terrorismo –, confinado em cela solitária, com horário limitado para exercício e para contato com outros prisioneiros e, com a família, só por telefone e sem possibilidade de recorrer da sentença. O general aposentado Veli Kucuk foi condenado a duas penas: a primeira, de prisão perpétua; e, depois de cumprida essa, outra, de 99 anos e um mês.

Kucuk e o coronel aposentado Arif Dogan foram acusados de criar e dirigir um esforço terrorista para subverter a ordem e derrubar as atuais autoridades. Dogan foi acusado de ser o mentor de uma Unidade Antiterrorismo da Inteligência da Polícia Nacional, organização subversiva, cuja existência tem sido questionada por jornais turcos importantes, como o diário Hurriyet [Liberdade]. No mesmo processo Ergenekon, Dogan foi condenados a 47 anos de prisão.

Dentre outros ex-apoiadores de Erdogan condenados a prisão perpétua no processo Ergenekon, está o advogado e nacionalista fanático Kemal Kerincsiz. Kerencsiz processou o jornalista armênio-turco Hrant Dink, que editava o semanário Agos [Sulco (na terra, para plantar)], em idioma armênio, com sessões em turco e em inglês. Dink, que Kerincsiz acusava de “insultar a turquidade” – acusação atualmente redefinida como “ofender a nação turca”, que é ofensa grave – foi assassinado no início de 2007 quando esperava ser indiciado no processo. A lei que torna crime “insultar a turquidade” foi criada no governo de Erdogan, com cumprimento zelosamente fiscalizado por Kerincsiz.

Dentre outras figuras políticas e midiáticas ceifadas pela “justiça” no processo Ergenekon, está Mustafa Balbay, colunista do jornal diário Cumhuriyet [A República] e deputado eleito ao Parlamento pelo tradicional e historicamente secular Partido do Povo Republicano [tu. CHP], condenado a prisão perpétua, bem como um corréu no mesmo processo, Tuncay Ozkan, também secularista e também jornalista.

[5]Em 2011, consolidaram-se 33 condenações políticas, todas no mesmo processo Ergenekon. A lista dos acusados é tão variada quanto longa; o único traço que liga todos os condenados e alguma associação em qualquer tipo de militância na política secular. Em maio de 2014 o AKP atacou diretamente a força policial, depois que Erdogan disse que estava cheia de “gulenistas”, seguidores de um seu ex-aliado, Fethullah Gulen (que vive hoje nos EUA). O partido de Erdogan promoveu o expurgo de centenas de gulenistas expulsos da polícia, do exército e do serviço civil público.

A Turquia preocupa-se frequentemente com o que se conhece lá como derin devlet  [estado profundo]. Trata-se de um grupo de influentes coalizões antidemocráticas ativas dentro do sistema político, constituído de elementos de alto escalão nos serviços de inteligência (interna e estrangeira), entre os militares turcos, na segurança, no judiciário e na máfia turca, todos engajados em combater contra a democracia, a justiça social e os curdos. Acredita-se que essas redes se teriam organizado durante a Guerra Fria, para combater agitadores comunistas subversivos dentro da Turquia. Mas também há quem diga que foram usadas contra a insurgência curda que tomou o sudeste da Turquia nos anos 1980s e 1990s.

A batalha pela Turquia prossegue e, no que tenha a ver com inimigos externos, o alvará universal e eterno de “Indenunciável & Inencarcerável” que dá cobertura ao poder turco ainda funciona, embora, no que tenha a ver com Erdogan, o mundo já tenha perdido a paciência quase completamente.*****



[1] “Water-Shortage Crisis Escalating in the Tigris-Eufrates Basin”, Future Directions (Australia) 28/8/2012.

[2] Aysegül Kibaroglu,”Transboundary Water Governance in the Euphrates Tigris River Basin”, E-International, 22/7/2015.

[3] Sobre esse evento, ver também 4/12/2015, “WANTED, O Procurado: Tayyeep Bin Ardogan (derrubou o jato e bloqueou o Bósforo) , orig. Moon of Alabama.

[4] Robert Ellis, “The Rise of the turco Reich” [“Nasce o Reich turco”], Zaman, 2/2/2015.

[5] Susan Frazer, “Turquia’s Ergenekon Trial: Alleged 2002 Coup Plotters Convicted, Including Former Military Chief Ilker Basbug”, Associated Press, 5/8/2013.

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