Pepe Escobar: A verdadeira agenda B3W*-OTAN (3/4)

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16/6/2021, Pepe Escobar, Asia Times

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The West is the best
The West is the best
Get here and we’ll do the rest
Jim Morrison, The End


Para os que foram poupados do suplício de examinar o comunicado da reunião de cúpula da OTAN, aqui vai resumo bem conciso: Rússia é “aguda ameaça”; China é “desafio sistêmico”.

A OTAN, claro, é só um punhado de garotinhos inocentes construindo castelos de areia no parquinho.

Foram-se os dias em que Lord Hastings Lionel Ismay, primeiro secretário-geral da OTAN, cunhou o objetivo dos transatlanticistas: “manter a União Soviética no lado de fora; os norte-americanos no lado de dentro; e os alemães por baixo.”

O remix dos The Raging Twenties1 tem de ser lido como “manter os norte-americanos dentro; a União Europeia por baixo; e Rússia e China contidas”.

Assim sendo, a organização do Atlântico Norte (grifo meu) acaba de ser realocada por toda a Eurásia, combatendo o que descreve como “ameaças que vêm do Oriente”. Bem, é um passo além do Afeganistão – a intersecção de Ásia Central e Ásia do Sul, – onde a OTAN foi humilhada sem cerimônias, por um bando de pashtuns armados com Kalashnikovs.

A Rússia permanece como a mais grave ameaça – mencionada 63 vezes no comunicado. O chiuaua de mais alto escalão da OTAN, Jens Stoltenberg, diz que a OTAN absolutamente não “espelhará” a Rússia: gastará mais que a Rússia e a cercará com múltiplas formações de combate, agora que “já implementamos o maior reforço de nossa defesa coletiva desde o fim da Guerra Fria”.

O comunicado é bem claro: para o gasto militar só há uma via possível, para cima. Contexto: o orçamento total da “defesa” dos 30 membros da OTAN crescerá 4,1% em 2021, alcançando espantosíssimo $1,049 trilhão ($726 bilhões dos EUA, $323 bilhões de aliados variados).

Afinal, abundam “ameaças que vêm do Oriente”. Da Rússia, há todas aquelas armas hipersônicas que confundem os generais da OTAN; aqueles exercícios em larga escala próximos das fronteiras de membros da OTAN; repetidas violações do espaço aéreo; integração militar com aquele “ditador” em Belarus.

Quanto às ameaças que vêm da China – Mar do Sul da China, Taiwan, no Indo-Pacífico sobretudo – cabia ao G7 trazer um plano.

Entra o “verde”, “inclusive” Build Back Better World (B3W), [aprox. “Reconstruir Melhor o Mundo”] apresentado como a “alternativa” ocidental à Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE). B3W respeita “nossos valores” – que o cômico primeiro-ministro britânico Boris Johnson não pode deixar de descrever como construir infraestrutura de modo “neutro em gênero”, ou “feminino” – e, mais adiante na estrada, remover as cadeias de suprimento de bens produzidos com trabalho forçado (praticamente sinônimo de Xinjiang).

A Casa Branca tem seu próprio discurso a favor do B3W: seria “parceria movida por valores, de alto padrão e infraestrutura transparente”, a qual “mobilizará capital privado em quatro áreas focais – clima, saúde e segurança sanitária, tecnologia digital e qualidade de gênero – com investimentos catalíticos que venham de nossas respectivas instituições de desenvolvimento.”

Os “investimentos catalíticos” para BW3 foram estimados em $100 bilhões. Ninguém sabe como esses fundos virão das “instituições de desenvolvimento”.

Experientes observadores do Sul Global já apostaram que tais fundos virão essencialmente dos empréstimos “verdes” do FMI/Banco Mundial ligados ao investimento do setor privado em mercados emergentes selecionados, de olho nos lucros.

A Casa Branca afirma que “B3W será global no escopo, da América Latina e Caribe à África e ao Indo-Pacífico”. Note-se o claro esforço para ter alcance idêntico ao da ICE.

Todos esses recursos “verdes” e novas cadeias logísticas financiadas pelo que será uma variante de Bancos Centrais derramando ‘dinheiro de helicóptero’ acabarão por beneficiar os membros do G7 – não, com certeza, a China.

E o “protetor” desses novos corredores geoestratégicos “verdes” será – e quem mais poderia ser? – a OTAN. É a consequência natural do “alcance global” enfatizado na agenda OTAN 2030.

OTAN, protetora de investimentos

Já proliferam esquemas “alternativos” de infraestrutura, trabalhando para manter bem longe da UE a “provocação dos russos” e a “intromissão dos chineses”. É o caso da
Three Seas Initiative, TSI [Iniciativa dos Três Mares], de 12 estados da Europa Oriental membros da UE, que se pressupõe que interconecte melhor os Mares Adriático, Báltico e Negro.

Essa iniciativa é pálida cópia do mecanismo 17+1 da China para integrar a Europa Oriental como parte da ICE. No caso da TSI, forçando aqueles 12 estados a construir infraestrutura caríssima para receber caríssimas importações de energia norte-americana.

A ofensiva contra “ameaças que vêm do Oriente” está condenada a fracassar.

Dmitry Orlov detalhou o modo como “a Rússia é excelente na construção e na operação de grandes sistemas de energia, transporte e produção de materiais” e, em paralelo, o modo como “a tecnosfera (…) foi silenciosamente realocada e hoje conecta Moscou e Pequim.”

Como qualquer geek sabe, a China está muito à frente em 5G e é o principal mercado do mundo para chips. E agora a Lei de Proteção Contra Sanções de Países Estrangeiros [ing. Anti-Foreign Sanctions Law] – significativamente aprovada pouco antes do G7 na Cornualha – “salvaguardará” as empresas chinesas contra “medidas unilaterais e discriminatórias impostas por países estrangeiros” e contra “o braço longo da jurisdição” dos EUA, forçando assim o capital Atlanticista a escolher.

De fato, é a China, como potência global em ascensão, que primeiro propõe uma “alternativa” ao Sul Global, contragolpe à infindável armadilha da dívida que FMI/World Bank criaram em décadas anteriores. A Iniciativa Cinturão e Estrada é estratégia complexa de desenvolvimento e comércio/investimento, com potencial para integrar vastas porções do Sul Global.

Aí está uma conexão direta com a famosa teoria do presidente Mao, da divisão dos Três Mundos;2 a ênfase de então no Movimento dos Não Alinhados pós-colonial, do qual a China foi um dos pilares, hoje recobre todo o Sul Global. No fim, trata-se sempre de soberania contra neocolonialismo.

B3W é a reação ocidental, essencialmente norte-americana, à Iniciativa Cinturão e Estrada: tentar impedir o maior número possível de projetos, ao mesmo tempo em que, no processo, atormentam a China sem parar, dia e noite.

Diferente de China ou Alemanha, os EUA praticamente não produzem os produtos manufaturados que o Sul Global deseja comprar; a manufatura responde por apenas 5% de uma economia norte-americana essencialmente sustentada pelo EUA-dólar como moeda de reserva e pelo – minguante – Império de Bases do Pentágono.

China produz abundantes dez engenheiros de alta especialização, para cada “especialista em finanças” dos EUA. A China aperfeiçoou sistema que é conhecido entre especialistas bilingues em áreas tech como sistema efetivo para criar planos de desenvolvimento específicos, mensuráveis, viáveis, relevantes e cronometrados (ing. “specific, measurable, achievable, relevant and time-bound”, SMART) – e para implementá-los.

A ideia de que o Sul Global será convencido a privilegiar a ‘agenda’ B3W – que não passa de golpe raso de Relações Públicas, no máximo – e a abandonar a Iniciativa Cinturão e Estrada é ridícula. Mesmo assim, a OTAN será arregimentada para proteger ativamente os investimentos que sigam os tais “nossos valores”. Uma coisa é certa: haverá sangue.

** Ing. Build Back Better World (B3W), aprox. “Reconstruir Mundo Melhor” (NTs).

1 The Raging Twenties Raging Twenties: Great Power Politics Meets Techno-Feudalism, é título do mais recente livro de Pepe Escobar, acessível em https://www.amazon.com/Raging-Twenties-Great-Politics-Techno-Feudalism/dp/1608882330 (ainda sem tradução) (NTs).

2 Ver também Mao Tse Tung, “On the Question of the Differentiation of the Three Worlds” (ing. Sobre a questão da diferenciação dos três mundos), 22/2/1974, em marxists.org [NTs].

Traduzido pelo Coletiovo Vila Mandinga

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