9/6/2021, Pepe Escobar, Asia Times
A próxima reunião do G7 na Cornualha deveria parecer um peculiar encontro de “EUA voltaram” com “Grã-Bretanha Global”.
Mas o Grande Quadro é muito mais sensível. Três reuniões de cúpula em sequência – G7, OTAN e EUA-UE – pavimentarão o caminho até o momento mais ansiosamente esperado: a reunião Putin-Biden em Genebra – que com certeza não será algum reset.
Os interesses que comandam pela retaguarda o holograma que atende pelo nome de “Joe Biden” têm agenda geral clara: arregimentar as democracias industrializadas – especialmente na Europa – e metê-las em ala coreografada de combate contra as tais ameaças “autoritárias” à segurança nacional dos EUA, pelas “maléficas” Rússia e China.
É como ser lançado de volta àqueles – ah-tão-estáveis! – dias de Guerra Fria dos anos 1970s, com James Bond combatendo demônios estrangeiros e o comunismo subversivo de Deep Purple. Bem, os tempos estão mudando.[1] China sabe muito bem que agora o Sul Global “responde por quase dois terços da economia global, em comparação com o um terço do Ocidente: nos anos 1970s, era exatamente o contrário.”
Para o Sul Global – vale dizer, para a expressiva maioria do planeta – o G7 é amplamente irrelevante. O que interessa é o G20.
China, superpotência em ascensão, vem do Sul Global e é líder no G20. Dados todos os respectivos problemas internos, os players da UE no G7 – Alemanha, França e Itália – não têm como se opor a Pequim em termos econômicos, comerciais e de investimento.
Um G7 reformatado como cruzada cinofóbica não terá defensores. Japão e convidados especiais na Cornualha, potências tecnológicas como Coreia do Sul e Índia, e África do Sul (ambos países BRICS), receberam o ‘estímulo’ de uma possível extensão da titularidade como membro, à guisa de cenoura balançada diante do nariz.
O pensamento desejante de Washington e a ofensiva de Relações Públicas resumem-se a se autovender como primus inter pares do Ocidente, como líder global revitalizado. O motivo pelo qual o Sul Global não está deixando-se convencer pode ser visto, muito claramente, no que aconteceu ao longo dos últimos oito anos. O G7 – e especialmente os norte-americanos – simplesmente não conseguiram responder à estratégia de amplo alcance de desenvolvimento/comércio pan-eurasiano – a Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE).
A “estratégia” norte-americana até aqui – demonização da ICE, 24 horas por dia, 7 dias por semana, como “armadilha da dívida” e máquina de “trabalho forçado” – a ninguém convenceu. E agora, pouca coisa e tarde demais, vem um esquema de G7, envolvendo “parceiros” como a Índia, para “apoiar”, pelo menos em teoria, vagos “projetos de alta qualidade” em todo o Sul Global: é a “Clean Green Initiative“ (Iniciativa Verde Limpa), focada em desenvolvimento sustentável e transição verde, a ser discutida no G7 e nas cúpulas EUA-UE.
Comparada ao BRI, a “Clean Green Initiative” dificilmente seria aceita como estratégia geopolítica e geoeconômica coerente. A Iniciativa Cinturão e Estrada tem sido apoiada e assumida como parceria por mais de 150 nações-estados e corpos internacionais – e isso é mais de metade do total de 27 estados-membros da UE.
Fatos em campo são muito claros. A China e a Associação de Nações do Sudeste da Ásia (ANSA) estão próximas de firmar um acordo de “ampla parceria estratégica”. O comércio entre China e os Países da Europa Central e Oriental [ing. Central and Eastern European Countries, CCEC], também conhecido como Grupo 17+1, incluindo 12 nações da UE, continua a crescer. A Rota da Seda Digital, a Rota da Seda da Saúde e a Rota da Seda Polar continuam a avançar.
Assim sendo, só resta o burburinho em altas vozes ocidentais sobre vagos investimentos em tecnologia digital – talvez financiadas pelo Banco Europeu de Investimentos, com sede em Luxemburgo – para reduzir o “alcance autoritário” da China em todo o Sul Global.
A cúpula UE-EUA pode estar lançando um “Conselho para Comércio e Tecnologia” [ing. “Trade and Technology Council”], para coordenar políticas sobre 5G, semicondutores, cadeias de suprimento, controles de exportação e regras e padrões de tecnologia. Um lembrete: UE-EUA não podem, simplesmente, controlar esse ambiente complexo. E carecem desesperadamente da Coreia do Sul, de Taiwan e do Japão.
Espere um minuto, Receita Federal!*
Para sermos justos, o G7 prestou serviço público a todo o mundo, quando os ministros de Finanças do grupo firmaram, sábado passado, em Londres, um acordo suposto “histórico” sobre um imposto mínimo de 15% a ser cobrado de empresas multinacionais.
O Triunfalismo esteve na ordem do dia – com elogios intermináveis à “justiça” e à “solidariedade fiscal”, lado a lado com notícias realmente ruins para diversos paraísos fiscais.
Ora, ora… É um pouco mais complicado.
Esse imposto já é discutido há mais de uma década, nos mais altos escalões da OECD em Paris – especialmente porque hoje os estados-nação perdem pelo menos $427 bilhões ao ano, na evasão fiscal praticada empresas multinacionais e vários multibilionários. Em termos do cenário europeu, aí não se inclui sequer o que os países perdem por fraude, em termos do Imposto por Valor Agregado – atividade a que se dedica animadamente, dentre outras, a empresa Amazon.
Assim sendo, não surpreende que os ministros de Finanças do G7 estejam muito atentos à Amazon, que vale $1,6 trilhão. A divisão de computação em nuvem da Amazon deve ser tratada como entidade à parte. Nesse caso, o megagrupo de tecnologia terá de pagar mais impostos em alguns de seus maiores mercados europeus – Alemanha, França, Itália, Reino Unido –, se esse imposto global de 15% vier a ser aprovado.
Significa que, sim, trata-se sobretudo das Big Tech – especialistas master em fraude fiscal e em colher benefícios máximos dos paraísos fiscais localizados até mesmo dentro da Europa, como Irlanda e Luxemburgo. Pelo modo como foi construída, a UE permitiu que a competição fiscal entre os estados-nações literalmente apodrecesse. Essa discussão ainda é virtualmente tabu em Bruxelas. Na lista oficial dos paraísos fiscais da EU, não se veem Luxemburgo, Holanda ou Malta.
É possível que não passe de golpe de Relações Públicas? Pode ser. O principal problema é que o Conselho Europeu – no qual os governos dos estados-membros da UE discutem suas questões – arrasta-se há muito tempo, e como que delegou toda a discussão à OECD.
No pé em que estão as coisas, só se conhecem vagos detalhes desse imposto de 15% – ainda que o governo dos EUA permaneça como principal beneficiado, porque suas empresas multinacionais deslocam lucros massivos por todo o planeta, para fugir dos impostos norte-americanos sobre empresas.
Para nem dizer que ninguém sabe se, quando e como o acordo será globalmente aceito e implementado – o que exigirá trabalho de Sísifo. Pelo menos será outra vez discutido, no G20 em Veneza, em julho.
O que a Alemanha quer[2]
Sem a Alemanha, não teria havido avanço real no Acordo de Investimentos UE-China, ano passado. Com novo governo, o acordo volta a emperrar. A chanceler Merkel, agora de saída, é contra a separação econômica do bloco China-EU. E industriais alemães também são contra. Essa é uma subtrama muito interessante de acompanhar no G7.
Em resumo: o que a Alemanha deseja é continuar a expandir-se como potência comercial global, usando sua grande base industrial, num quadro em que os anglo-saxões abandonaram completamente a própria base industrial para abraçar a financeirização não produtiva. E a China, por sua vez, quer negociar com todo o planeta. Adivinhem quem é o player sem parceiro, a ser descartado…
Considerando-se o G7 como reunião de facto do hegemon e suas hienas, chacais e chiuauas, será importante desafio assistir e decifrar a semântica. Que grau de “ameaça existencial” será atribuído a Pequim – sobretudo porque, para os interesses que controlam o holograma “Biden”, a real prioridade é o Indo-Pacífico?
Esses interesses dão importância-zero ao desejo da UE de alcançar maior autonomia estratégica. Washington anuncia seus diktats sem sequer consultar Bruxelas.
Eis afinal do que realmente tratará esse Triplo X de reuniões de cúpula – G7, OTAN e UE-EUA: O hegemon pisa em todos os breques para conter/dificultar a emergência de uma potência em ascensão, acionando suas satrapias para “lutar” e defender a “ordem internacional baseada em leis” que o próprio hegemon concebeu há setenta anos.
A História ensina que não funcionará. Dois exemplos: os impérios britânico e francês não conseguiram deter a ascensão dos EUA no século 19; outro exemplo, ainda melhor, o eixo anglo-norte-american0 não conseguiu parar a ascensão simultânea de Alemanha e Japão, nem ao preço de duas guerras mundiais; o império britânico foi destruído e a Alemanha aí está, de volta, ao lugar de principal potência europeia.
Bastaria isso para reduzir a reunião de “EUA voltaram” e “Grã-Bretanha Global” na Cornualha ao status de mera, esdrúxula nota de rodapé da história.*******
[1] Orig. the times they are-a-changin. É verso de Bob Dylan e título de álbum lançado em 1964. NTs).
* Aí se ouve um deslizamento semântico intraduzível entre “Wait a minute, Mr. Taxman” (lit. “Espere aí, senhor coletor de impostos”) que se lê no original acima traduzido, e Wait a minute, Mr. Postman (lit. “Espere aí, senhor carteiro”, Beatles, 1964) [NTs].
[2] Orig. “What Germany wants”. É título de um interessantíssimo mapa do período entre as duas guerras mundiais, datado de 1917, da coleção
Traduzido peço Coletivo Vila Mandinga