‘Maquiavel no pensamento, Mussolini na ação’ 

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Ver a imagem de origem14/12/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation

No início desse mês, a TV libanesa al-Manar levou ao ar cenas de bases israelenses na Alta Galileia, filmadas por um drone do Hezbollah. Vê-se no vídeo uma base israelense em Brannite e um centro de comando em Rowaysat al-Alam no norte de Israel. Segundo Southfront, de especialistas de reconhecida expertise em questões militares, o Hezbollah opera hoje  vários tipos de drones, alguns dos quais com capacidades de combate. Matérias de jornal sugerem que o Hezbollah tenha estabelecido uma força formidável de drones ‘invisíveis aos radares’ [ing. stealth] e mísseis cruzadores inteligentes (com o apoio do Irã).

Southfront, site de especialistas ligados à Rússia, conclui que, hoje, o movimento está mais bem treinado e equipado que muitos exércitos em todo o mundo.

Israel está convencido de que, pela primeira vez, a ‘próxima guerra’ não ficará limitada ao território libanês; de que violará as fronteiras de Israel; e de que forças ofensivas de combate entrarão nas colônias e casas de colonos [que Israel chama de “assentamentos” e “assentados”] e confrontarão soldados de Israel.

Nesse ‘xadrez’ gigante – provavelmente sairá vitoriosa uma combinação de drones armados, drones suicidas e mísseis ‘inteligentes (em vez de tanques, como na guerra de 2006).

Na tese que está desenvolvendo de nova guerra contra o Hezbollah, Israel crê que todos seus campos de pouso serão bombardeados com mísseis de precisão. (Por isso, está tentando que os EUA lhe deem alguns esquadrões da nova geração de jatos F-35B, que não exigem longas pistas, para assim tentar garantir a superioridade aérea do estado judeu, ante um possível enxame de drones ou mísseis de ataque contra as defesas aéreas israelenses).

Aí está apenas um componente da transmutação, operada pelos iranianos, segundo a qual qualquer opção ‘militar’ norte-americana ou israelense contra o Irã foi convertida em ‘Pílula Vermelha’ suicida. Em silêncio, enquanto todo o mundo concentrava-se na Big One (pressupostas armas nucleares), ao longo dos últimos quatro anos, o Irã construiu um ‘enxame’ de drones convencionais e ‘inteligente’ (e virtualmente ‘invisíveis’, indetectáveis por radar), um ‘formigueiro’ de ‘micro’ armas que hoje cercam a região – de Gaza, Líbano, Síria e Iraque até o Iêmen.

Embora ainda esteja sob risco de se afogar no pensamento europeu e norte-americano (obcecado com a possibilidade do quadro, já ultrapassado, da bomba Big One – no JCPOA), o Irã, silenciosamente inverteu o cálculo. Hoje o Irã está em vantagem. E tem outras possibilidades que se abrem de comércio (porque olha para o Oriente). Israel e Estados do Golfo seus aliados, ao contrário, estão na defensiva.

Assim sendo, o que vem por aí? Entrou em vigência uma lei iraniana que dá prazo de 60 dias, para que os EUA levantem as sanções. Se os EUA não o fizerem, a lei determina que o Irã passe imediatamente a enriquecer urânio a 20% e limite o acesso de inspetores da ONU às suas instalações nucleares. Para Israel, o prazo significa que esse novo paradigma exige conversações confidenciais, e rápidas, com os EUA.

Alguns em Israel claramente ‘entenderam’: é como se a realidade estivesse sendo mostrada em duas telas; numa das telas, a realidade é a bomba atômica iraniana (sobre a qual se focam as políticas dos EUA). Mas na outra tela a realidade é a contenção pela ‘Pílula Vermelha’ iraniana contra os EUA, que têm agora de pensar duas vezes sobre repor sobre a mesa a opção militar.

Mas, como o Professor Michael Brenner observou, “a política externa dos EUA tem sido pouco rigorosa nos últimos dois anos” (Irã e o JCPOA são a única exceção):

“Mesmo sobre essa [última] questão, há pouca discordância em relação às propostas gêmeas de que o Irã seria Estado hostil que ameaçaria nossos interesses vitais, e de que o desaparecimento do Estado islâmico eliminaria anátema grave. Esse consenso é tão generalizado que a comunidade dos negócios estrangeiros desenvolveu algo que se assemelha a imunidade do rebanho, ‘resistente’ ao pensamento crítico. As elites políticas, os especialistas, e gurus de consultoria cantam todos em coro, sempre do mesmo hinário. As diferenças existentes são variações quase imperceptíveis nas avaliações de ameaças fundamentalmente iguais ou nas táticas de combate às alegadas ameaças. Estratégia não se vê em lugar algum.”

Hoje, somos todos excessivamente suscetíveis a perspectivas “tecno-chovinistas”. Por que somos incessantemente ‘informados’ de que a tecnologia – seja militar, ou via controle algorítmico – seria motor irresistível de mudança. Consequentemente, hoje simplesmente não podemos imaginar um futuro no qual a solução de nossos problemas não seja mais e mais tecnologia (nem mais ou melhores armas). Claramente, evoluções em armamentos podem demarcar mudança real de jogo (como acaba de acontecer); mas a melhor lição que a história pode oferecer é que o futuro é determinado por dinâmicas culturais, tanto quanto é modelado pela tecnologia

E assim como EUA experiencia sua guerra cultural Azul versus Vermelho, assim também o Oriente Médio tem suas próprias guerras culturais, que estão sendo exacerbadas e tornadas mais e mais intratáveis por efeito da ‘orelha surda’, de Washington, a qualquer pensamento crítico, e a insistência em definir o mundo à volta como numa luta maniqueísta entre forças da luz e forças das trevas; entre liberdade e despotismo; entre justiça e opressão e crueldade.

Washington realmente olha para a própria imagem no espelho, e lança um amplo véu sobre o resto do mundo. A própria eleição presidencial nos EUA já não é puramente política; hoje ela é também configurada mais como uma ‘cruzada’ contra um mal cósmico – um demônio, ou demiurgo (Trump). A importância disso para o Oriente Médio é que o que os EUA definem como ‘mau e maligno’ pode já não ser as guerras culturais de outras sociedades (pouco diferentes das dos próprios EUA).

Aqui está o ponto: a tecnologia – seja militar ou financeira – frequentemente não é o determinante. A nação iraniana foi posta sob tremendo stress, e mesmo assim encontrou os recursos internos para construir uma solução (uma inteligente arma de contenção). O Irã mostrou energia societal e cultural. Isso faz diferença.

Jacques Barzun, filósofo da história, faz a pergunta: “O que faz uma nação?” E ele mesmo responde. “Uma grande parte da resposta a essa questão é: as memórias históricas comuns. Quando a história da nação é miseravelmente ensinada nas escolas; ignorada pelos jovens, e arrogantemente rejeitada pelos mais velhos cultos,  toda a consciência da tradição consiste em querer destruí-la”.

A edição de dezembro da revista The Atlantic publica entrevista com o professor Peter Turchin, que de fato é zoólogo. No início da carreira dedicou-se a analisar dinâmica populacional. Por que uma dada espécie de abelhas habita determinada floresta, ou por que aquelas abelhas somem da mesma floresta? Desenvolveu alguns princípios para explicar esses movimentos e discute se se aplicariam também a populações humanas.

Padrão recorrente, o que Turchin observou é o que chama de ‘superprodução de elite’ [ing. ‘élite overproduction’]. Acontece quando uma classe governante na sociedade cresce mais depressa do que o número de governantes dos quais necessita. (Para Turchin, “elite” parece significar não só líderes políticos, mas todas essas empresas, universidades e outras grandes instituições ‘que governam’, bem como todos os que ocupam o topo da cadeia alimentar econômica.) Como The Atlantic a descreve:

“Um dos modos pelos quais uma classe governante cresce é a via biológica – pense na Arábia Saudita, onde príncipes e princesas nascem mais depressa do que se possam inventar postos reais para eles e elas. Nos EUA, as elites se super-reproduzem, mediante mobilidade econômica e educacional, de baixo para cima: Mais e mais gente enriquece e mais e mais gente recebe educação e formação. Nada disso parece ruim em si. Afinal, quem não quer que todos enriqueçam e recebam educação e formação ótimas?

O problema começa quando o dinheiro e os diplomas de Harvard tornam-se equivalentes a títulos de realeza à maneira da Arábia Saudita. Se gente demais recebe esses ‘troféus’, mas só uma pequena porção tem poder real efetivo, os que não o tenham, mais dia menos dia, voltam-se contra os que tenham (…)”.

O gatilho final para o iminente colapso, diz Turchin, tende a ser a insolvência do Estado. Em algum momento, a insegurança crescente torna-se muito cara. As elites têm de pacificar cidadãos infelizes, com folhetos e quinquilharias – e quando folhetos e quinquilharias esgotam-se, têm de recorrer a dissuasão policial e à opressão do povo. Eventualmente, o Estado exaure todas as soluções de curto prazo, e o que o dia pode ter sido uma civilização coerente desintegra-se.

O artigo de Turchin foi concebido para ressoar – e ressoou – como descrição do atual estado em que vivem os EUA. Mas aplica-se mais perfeitamente ao Oriente Médio – especialmente no contexto do petróleo a preços baixos. A região é hoje um desastre econômico. E, não, as observações de Turchin aplicam-se não só aos autocratas regionais, mas também, em alguns importantes aspectos, – a saber, na pobreza e na desigualdade que grassam na sociedade – aplicam-se também a Israel, como a quaisquer outros países.

‘Guerra’ cultural também tem a ver com se uma dada ‘vida’ civilizacional está em recessão, ou se é vital e fértil ao mesmo tempo.

Logo depois da Revolução Iraniana, do 11/9 e da ‘Primavera Árabe’, Robert Worth observa num longo ensaio na NYT Magazine, líderes chaves do Golfo, como Mohammad bin Zayed (MbZ), mudaram-se, de uma abertura inicial ao Islã político, para uma ‘constatação’ de que a trilha da Fraternidade Muçulmana, e a trilha de MbZ rumo ao poder feudal, simplesmente “eram incompatíveis”.

MbZ foi-se tornando cada vez mais implacavelmente hostil à FM, ao Irã e desconfiava, inclusive, do establishment Wahhabista na Arábia Saudita. À altura de 2013, MbZ vivia profundamente preocupado com o futuro. Os levantes da Primavera Árabe haviam derrubado vários autocratas, e islamistas políticos ascendiam para preencher o vácuo. Worth elabora:

“Foi receita de violência apocalíptica; e potências regionais pouco fizeram para deter aquela violência.

A Turquia veementemente estimulou seus islamistas preferidos e apoiou alguns, com armas. Assim os vizinhos ricos em petróleo, Qatar e EAU no Golfo Persa. Os sauditas então ambivalentes, em situação dificultada por um monarca idoso e enfermo.”

“Logo acolheria Mohammed bin Salman como aliado, o jovem príncipe coroado, codinome MbS, o qual de vários modos é protegido de MbZ. Juntos, ajudaram os militares egípcios a depor o presidente islamista eleito em 2013.

Na Líbia em 2015, MbZ intrometeu-se na guerra civil, desafiando um embargo da ONU e diplomatas norte-americanos.

Combateu a milícia Shabab na Somália, alavancando os portos comerciais de seu país, para se posicionar como poderoso negociador no Chifre da África.

Uniu-se à guerra saudita no Iêmen para combater a milícia Houthi apoiada pelo Irã. Em 2017, quebrou uma antiga tradição, ao orquestrar embargo ostensivo contra seu vizinho Qatar, no Golfo Persa. Tudo isso visava a conter o que para ele seria uma ameaça islamista em crescimento.”

Claro que tudo isso, e o exército de modelo ‘espartano’ do monarca treinado na Real Academia Militar em Sandhurst, Reino Unido, converteram-no em estrela em Washington (embora depois tenha rompido com Obama, por causa do apoio que o presidente norte-americano deu a Morsi, e adiante, por causa do ‘acordo nuclear’ de Obama, JCPOA, ao qual MbZ opôs-se).

Qual, então, foi a resposta do Golfo e dos sunitas a essa iminente guerra cultural catastrófica? MbZ atualizou um sonho ambicioso:

“construir um estado que mostraria o movimento islamista como bem-sucedido, onde de fato falhara. Em vez de uma monarquia não liberal [ing. illiberal democracy] — como a da Turquia – MbZ construiria o oposto, uma autocracia socialmente liberal, semelhante ao que Lee Kuan Yew* fez em Cingapura nos anos 1960s e 1970s. O futuro era escolha binária: repressão ou catástrofe. MbZ escolheu a repressão: ‘guerra cultural’, disse ele”.

Aí se viu em plena desintegração, uma civilização coerente, apesar de pequena. Uma tradição cultural do Golfo foi eviscerada para blindá-la contra os ‘vírus’ islamista e iraniano. Até mesmo Worth, que visitou várias vezes a região, descreveu os habitantes como ‘indivíduos sem raízes’, vagando pelas cavernas por baixo das torres de vidro hipercapitalistas. A energia evanesce, e suavemente a civilização morre.

Mas para Zvi Barel, comentarista israelense, a normalização com Israel promovida por MbZ seria simplesmente a continuação inevitável – mais uma parte tecida no pano da visão de mundo de MbZ: “O ódio que MbZ nutre pela Fraternidade Muçulmana só é igual ao medo que tem do Irã, onde vêm ameaça clara e imediata aos Emirados, em particular – e ao Islã sunita em geral”.

No Oriente Médio, os xiitas – amplamente – vivem um renascimento, bem no momento em que o ‘velho’ establishment sunita sofre convulsões de medo de estar sendo ultrapassado pelos xiitas na região.

A virilidade cultural pode vencer a repressão, como o Irã está mostrando. E a ‘opção militar’ só muito raramente é resposta correta a uma ressurgência cultural. A prontidão do Irã para enfrentar o ‘acordo nuclear’ JCPOA torna urgente uma correção de curso no ocidente. Acontecerá? Em Washington, quase certamente, não: teremos apenas um balançar instável e nervoso na beirada do penhasco das exigências de Israel e EUA, de “contenção para sempre” – aguardando os acontecimentos.*******

* Ídolo do ‘liberalismo raiz’ do Instituto Liberal do Brasil. Aqui, artigo que faz propaganda de uma ‘Cingapura’ impressionantemente assemelhada ao que Guedes & Bolsonaros dizem que estariam fazendo no Brasil, onde o que se vê é um ‘desprojeto’, tipo ‘Golbery, quem diria, acabou feito um Guedes-do-Irajá’ [NTs].

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

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