27/2/2022, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation
O Ocidente coletivo já estava furioso. E está apoplético depois que o presidente Putin chocou os líderes ocidentais ao ordenar “operação militar especial” na Ucrânia, que está sendo amplamente descrita (e percebida no Ocidente) como declaração de guerra: ‘ataque de choque e pavor que afeta cidades em toda a Ucrânia’. Na verdade, o Ocidente está tão furioso que o espaço da informação literalmente se bifurcou: tudo é preto e branco, sem tons de cinza.
Para o Ocidente, Putin desafiou Biden de forma abrangente; unilateral e ilegalmente ‘mudou as fronteiras’ da Europa e agiu como ‘poder revisionista’, tentando mudar não apenas as fronteiras da Ucrânia, mas a atual ordem mundial. “Trinta anos após o fim da Guerra Fria, estamos enfrentando um esforço determinado para redefinir a ordem multilateral”, alertou o alto representante da UE, Josep Borell. “É ato de desafio. É um manifesto revisionista, o manifesto para rever a ordem mundial”.
Putin é caracterizado como novo Hitler, e seus atos são considerados ‘ilegais’. Alega-se que Putin teria rasgado o Acordo de Minsk II. Mas as Repúblicas declararam-se independentes em 2014, assinaram Minsk em 2015, e a Rússia nunca assinou o acordo –, portanto, não pode violá-lo. De fato, os EUA efetivamente vetaram o processo de Minsk desde 2014, e a publicação da correspondência diplomática da Rússia em novembro de 2021 expôs que França e Alemanha também tinham pouca intenção de pressionar Kiev em qualquer implementação significativa.
Assim, tendo concluído que um acordo negociado – conforme estipulado nos Acordos de Minsk – simplesmente não aconteceria, Putin determinou que não havia sentido em esperar mais para implementar a linha vermelha da Rússia.
O falecido Stephen Cohen escreveu sobre os perigos de um maniqueísmo tão desqualificado. Criara-se o espectro de um Putin malfeitor, que envenenou e sobrecarregou de tal modo o personagem que os EUA viam, que Washington foi incapaz de pensar corretamente – não apenas sobre Putin – mas sobre a Rússia per se.
O argumento de Cohen era que essa demonização total enfraquece a diplomacia. Como se demarca a diferença em relação ao mal? Como aconteceu?, Cohen pergunta. E sugere que em 2004, o colunista do NY Times , Nicholas Kristof, inadvertidamente explicou, pelo menos parcialmente, a demonização de Putin. Kristof reclamou amargamente de ter sido “feito de otário’ pelo Sr. Putin. Ele não é versão sóbria de Boris Yeltsin”.
A maioria dos russos, no entanto, apoia Putin no reconhecimento das Repúblicas do Donbass, à qual ele então deu prosseguimento, obtendo a autorização da câmara alta do Parlamento da Rússia (como a Constituição exige), para usar forças armadas fora da Rússia A resolução do Conselho da Federação foi apoiada por unanimidade por todos os 153 senadores em sessão extraordinária na terça-feira.
No Discurso à Nação, Putin falou com a mesma amargura que muitos russos refletem. Ele vê os desenvolvimentos políticos pós-2014 na Ucrânia como projetados para criar um regime anti-russo em Kiev, nutrido pelo Ocidente e com intenções hostis em relação à Rússia. Putin ilustrou esse ponto explicando que “O sistema ucraniano de controle de tropas já foi integrado à OTAN. Significa que a sede da OTAN pode emitir comandos diretos para as Forças Armadas ucranianas, mesmo para suas unidades e esquadrões separados”.
Putin também observou que a Constituição Russa estipula que as fronteiras das regiões de Donetsk e Lugansk sejam como eram “no tempo em que faziam parte da Ucrânia”. Essa é formulação cuidadosamente redigida – as fronteiras das duas repúblicas sofreram mudanças significativas após o golpe de Maidan.
A declaração de reconhecimento de Putin foi acompanhada por um ultimato às forças de Kiev para cessar o bombardeio de artilharia através da Linha de Controle, ou enfrentariam consequências militares. Durante toda a noite de quarta-feira, no entanto, a situação na Linha de Contato esquentou, com fogo de artilharia pesado; mas na manhã de quinta-feira, pela primeira vez, houve vários disparos de foguetes, partidos das forças de Kiev e que cruzaram a Linha de Controle. (Do lado de Kiev, alguém claramente queria a escalada – talvez para pressionar Washington). Putin ordenou imediatamente o que era evidentemente uma Operação Especial pré-preparada “para desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia”.
Algumas horas após a ofensiva, as forças armadas da Rússia anunciaram que todos os sistemas de defesa aérea da Ucrânia haviam sido neutralizados. Vasta presença aérea russa, incluindo caças e helicópteros, foi confirmada em grande parte do país.
Possivelmente essa operação (que Putin disse não visar a ocupar a Ucrânia), seguirá o padrão da Geórgia em 2018, quando as forças russas retiraram-se após alguns dias. Esse foi o padrão também, no Cazaquistão. Simplesmente não sabemos se será o caso na Ucrânia – muito possivelmente não.
Quando Putin falou de ‘desnazificação’, referia-se à opção da qual partilharam os EUA, por uma formação neonazista nas forças armadas da Ucrânia para ajudar a montar o golpe de Maidan em 2014.
A chamada Brigada Azov de neonazistas provou ser a força de combate mais eficaz para repelir a milícia DLR na região de Donbass. (A Ucrânia é a única nação do mundo que inclui formação neonazista em suas forças armadas. Aí haverá contas a acertar).
No entanto, a Ordem Especial de Putin, como com certeza ele previu que aconteceria, chocou profundamente o Ocidente, pela reação militar decisiva.
Putin empurrou o mundo – e seus mercados financeiros e de energia – para o limite.
De fato, esse último aspecto pode vir a ser o mais saliente. Em 1979, as convulsões no Oriente Médio elevaram os preços da energia (assim como está ocorrendo hoje) e as economias ocidentais despencaram. Aonde quer que nos levem os próximos dias, deve ficar claro que a curta coletiva de imprensa de Putin, em 22/2, está operando, como pretendido, como poderoso acelerador.
A “destruição construtiva” da antiga Ordem Global ocorrerá mais rápido do que muitos de nós imaginamos.
Marca-se assim o fim das ilusões – o fim da noção de que a ordem imposta pelos EUA e baseada em regras continua(ria) a ser uma opção.
Como então interpretar a raiva extrema no Ocidente? É simples: é que, afinal de contas, a realidade existe. E essa realidade – ou seja, o que o Ocidente pode fazer a respeito – é tudo o que importa – e é… bem pouco.
A primeira percepção brutal subjacente à raiva é que o Ocidente não tem intenção de – e criticamente, tampouco tem capacidade para – combater militarmente os movimentos da Rússia.
Biden repetiu o mantra ‘sem coturnos em solo’, novamente, após as operações militares russas. E para a Europa, a imposição de um regime de sanções à Rússia não poderia vir em pior momento.
A Europa enfrenta recessão e crise de energia pré-existente (que será enormemente agravada, agora que a Alemanha sacrificou o gasoduto Nordstream 2 aos deuses famintos da vingança).
E o aumento da inflação (agravado com o petróleo a US$ 100) está causando o nervosismo das taxas de juros e dos títulos soberanos. Agora, a pressão será sobre a Europa para encontrar sanções adicionais.
Haverá sanções – e prejudicarão os europeus diretamente nos respectivos bolsos. Alguns estados europeus estão realizando ação de retaguarda para limitar as sanções que possam piorar a próxima recessão europeia.
No entanto, em um sentido muito real, fato é que a Europa está efetivamente se auto-sancionando (e terá de aguentar o principal dano causado por suas próprias sanções). E Moscou prometeu retribuir quaisquer sanções, de modo que prejudique os EUA e a Europa. Estamos numa nova era.
Esse prospecto e a impotência diante dele, devem ser causa de grande parte da frustração e raiva europeias.
Washington espalha que teria uma ‘arma assassina’ direcionada a Moscou: sancionar chips semicondutores. “Seria o equivalente moderno de um embargo de petróleo do século 20, já que os chips são o combustível crítico da economia eletrônica”, argumenta Ambrose Evans Pritchard no Telegraph:
“Mas também é jogo perigoso. Putin tem os meios para cortar minerais e gás críticos, necessários para sustentar a cadeia de fornecimento de chips semicondutores do Ocidente”.
Em suma, o controle de Moscou sobre os principais minerais estratégicos poderia dar à Rússia vantagem equivalente à que teve a Opep, no campo da energia, em 1973.
Aqui reside a segunda vertente da explosão de frustração da Europa:
– o reconhecimento tácito de que a fracassada política de Biden para a Ucrânia; a fracassada diplomacia do Ocidente (todos os processos e nenhuma abordagem substantiva das questões subjacentes); mais o tratamento cauteloso da Alemanha com a questão Nordstream 2, condenaram a UE a anos de declínio econômico e sofrimento.
A terceira vertente é mais complexa e reflete-se no grito indignado de Josep Borell de que Rússia e China são duas potências “revisionistas” tentando mudar a ordem mundial atual.
O ‘medo’ europeu está fundamentado não apenas no conteúdo da declaração conjunta de Pequim, mas provavelmente também no fato de que jamais, em toda a sua vida, o presidente Putin fez discurso comparável ao de segunda-feira, ao povo russo. Jamais antes, tampouco, nomeara os EUA como inimigos nacionais da Rússia, em termos russos tão inequívocos – promessas americanas: inúteis; Intenções americanas: mortais; discursos americanos: mentiras; ações americanas: intimidação, extorsão e chantagem.
O discurso de Putin pressagia uma grande fratura. Parece que os europeus (como Borrell) estão começando a perceber o quanto o discurso de Putin marca um ponto de inflexão. Foi enquadrado em torno da Ucrânia, mas esse último caso – embora convincente – é incidental à decisão da Rússia e da China de mudar para sempre o equilíbrio geopolítico e a arquitetura de segurança do globo.
O reconhecimento das Repúblicas do Donbass foi a manifestação dessa decisão geoestratégica anterior. É o primeiro desdobramento prático dessa ruptura com o Ocidente (nunca absoluta, é claro) e revela a compilação feita já pela Rússia, de medidas “técnico-militares” destinadas a forçar a separação do globo em duas esferas distintas.
A primeira dessas medidas foi reconhecer as Repúblicas; a segunda medida técnico-militar foi o discurso de Putin; e a terceira, a subsequente ordem para ‘Operações Especiais’.
Eles – o Eixo Rússia-China – querem a separação. Deve acontecer ou por meio do diálogo (improvável, uma vez que o princípio central da geopolítica de hoje é a deliberada não compreensão da ‘alteridade’), ou deve será alcançada em disputa de dor crescente (definida em termos de linhas vermelhas), até que um lado ou o outro se dobre.
É claro que Washington não acredita que os presidentes Xi e Putin possam querer dizer o que dizem. – E acreditam que o Ocidente tem e sempre terá domínio crescente no campo de para sempre impor dor ao resto do mundo.
Em termos menos diplomáticos, Rússia e China concluíram que não é mais possível compartilhar uma sociedade global com EUA determinados a impor uma ordem global hegemônica, concebida para criar um mundo ‘semelhante ao Arizona’.
Putin quer dizer o que diz: a Rússia está de costas para a parede, e não há lugar para onde a Rússia possa retroceder – para eles, é existencial.
A obsessão do Ocidente, que insiste que Putin ‘não fala sério’ (assegurando desde já o consequente fracasso da diplomacia) sugere que essa crise estará conosco pelo menos nos próximos dois anos.
É o início de fase prolongada e de alto risco, de esforço liderado pela Rússia para mudar a arquitetura de segurança europeia e dar-lhe nova forma, que o Ocidente atualmente rejeita.
O objetivo russo será manter as pressões – e até mesmo a latência da guerra sempre presente – a fim de pressionar os líderes ocidentais avessos à guerra para que façam a mudança necessária.
Em última análise, após dolorosa luta, a Europa buscará a reconciliação.
Os EUA serão mais lentos: os falcões do Departamento de Estado tentarão subir a aposta. A situação econômica e de mercado ocidental é que pode, em última análise, determinar o ‘quando’.*******
Traduzida pelo Coletivo Vila Mandinga
Texto maravilhoso. Já lia alguns artigos daqui por causa de haver o PEPE ESCOBAR no rol dos que escrevem para este “site”. Agora que o Ocidente nos impurra uma narrativa vomitada pelos ianques golpistas, terei que me informar por cá!
Definição correta, visão crítica perfeita da realidade.
Não vejo a hora de os Povos da Ásia, “Oriente”. África e América Latina, unirem-se em torno de novo esforço de Construção do Multilateralismo, empenhados por Rússia e China.
Vida longa à Rússia e China.
Estamos com vocês.
Espetacular!