Uma leitura mais atenta à matéria do El País sobre o último ataque à Síria

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Por Babel Hajjar*

 

A linguagem jornalística, bem como a própria atividade do jornalista, são entendidas por muitos como “isentas”. Em outras palavras, o mito do “fato” jornalístico nos diz que mídias atuam como meros “meios”, imparciais, entre a verdade e seu público.

A decisão pela análise da matéria de 26/2/2021 do jornal El País, sobre o ataque estadunidense de 25/2/2021 à Síria foi proposital, uma vez que tal veículo, em sua versão brasileira, tem buscado nos últimos anos apresentar uma postura crítica à direita e progressista, ao menos no que concerne à América Latina. Porém, quando o assunto é Oriente Médio, a postura do veículo se mostra pouco crítica à ingerência dos EUA em outras nações. Sobre o ataque à Síria promovido pelo EUA na última quinta feira, El País fez como faz a maioria dos veículos, se rendendo a versões oficiais e rótulos de fácil reprodução de ideias simplificadas e deturpadas.

A matéria abaixo contém quatro parágrafos, além de título e linha fina (subtítulo). É sabido no jornalismo que a grande maioria das pessoas lê até o primeiro parágrafo de uma matéria. Portanto, o artigo de jornal é construído como uma pirâmide, e Título, linha fina e primeiro parágrafo devem conter as informações mais relevantes, ou aquelas que se quer deixar em evidência para o leitor.  Este é o recorte editorial do fato jornalístico.

 

TÍTULO: EUA lançam ataque aéreo na Síria contra estruturas de milícias apoiadas pelo Irã

  • Comentário: O ataque foi na Síria, mas as estruturas atacadas seriam pró-Irã.

LINHA FINA: A primeira operação militar da era Biden responde aos bombardeios contra alvos norte-americanos no Iraque, explicaram fontes do Governo à mídia

  • Comentário: destaque para “a primeira operação militar” – espera-se outras . Além disso, quem interrompe a leitura por aqui entende que foi uma “resposta” a um ataque, e pensa então que há uma certeza por parte das “fontes do governo”.

 

PARÁGRAFO 1. – Os Estados Unidos realizaram a primeira operação militar da era Joe Biden na Síria nesta quinta-feira. As forças norte-americanas lançaram um ataque aéreo contra uma estrutura que pertencia a milícias apoiadas pelo Irã, de acordo com o Departamento de Defesa, em resposta aos recentes ataques sofridos pelos EUA e sua coalizão no Iraque. Os bombardeios, autorizados pelo presidente, destruíram instalações localizadas em um posto de controle usado por grupos como o Kataeb Hezbollah ou o Kataib Sayyid al-Shuhada.

  • Comentário: o primeiro parágrafo praticamente repete título e linha fina, e acrescenta que as estruturas eram utilizadas OU por um grupo, ou por outro, passando uma incerteza sobre a autoria do ataque que teria motivado a “resposta”. A matéria também desconsidera o fato de que um posto de controle dentro do território sírio é uma instalação do governo sírio, de modo a ignorar por completo a quebra de soberania.

 

PARÁGRAFO 2. – “Esta resposta militar foi realizada em conjunto com medidas diplomáticas e em consulta com os parceiros da coalizão”, explicou o chefe de imprensa do Pentágono, John Kirby, em um comunicado. “A operação envia uma mensagem inequívoca: o presidente Biden agirá para proteger os EUA e as tropas da coalizão”, continuou ele.

  • Comentário: o parágrafo mostra que houve uma “consulta a aliados”, a tal “coalizão”, sem deixar claro quem seriam, dando a entender que não foi ato impensado, mas resultado de cálculos militares. Depois, enfatiza a “mensagem inequívoca”, ou seja, o que foi feito, foi feito para proteger os EUA e será feito novamente – quando os EUA julgarem necessário –  portanto deve ser perdoado.

 

PARÁGRAFO 3. a) O Pentágono apresentou a Biden outras opções de ataque em larga escala, mas o líder democrata optou por opções mais limitadas, explicaram fontes da Defesa à imprensa local.

  • Comentário: é necessário destacar a razoabilidade e a humanidade do “líder que é democrata” Biden ao decidir pelo “menor ataque possível”. A ideia de “ataque cirúrgico” vem à mente, e Biden é apresentado como um bom doutor que, não vendo outra saída, se vê obrigado a uma intervenção – a menor possível  – para remover um tumor maligno.

PARÁGRAFO 3. b) A decisão de atacar apenas na Síria e não no Iraque impede o país de responder e lhe dá tempo. O Governo iraquiano está conduzindo sua própria investigação sobre o ataque de 15 de fevereiro, no qual uma série de foguetes atingiu a base militar norte-americana localizada no Aeroporto Internacional de Erbil, na região semiautônoma liderada por curdos, causando a morte de um empreiteiro não norte-americano e ferindo outros empreiteiros dos EUA.

  • Comentário: Aqui fica claro que NÃO HÁ AINDA CONCLUSÃO SOBRE QUEM LANÇOU O ATAQUE DE 15/2, que teria supostamente motivado a atual “resposta” estadunidense. Se o leitor não chegou até este parágrafo, não sabe disso e nem do suposto motivo estadunidense – a menção do ataque que causou a “resposta” só aparece aqui. Além disso, há uma justificativa pouco clara sobre o ataque-resposta ter sido conduzido na Síria e não no Iraque.

 

Washington não apontou oficialmente o responsável pelo ataque, mas fontes do Governo lembraram nesta semana que grupos xiitas ligados ao Irã foram responsáveis por operações semelhantes no passado. Os ataques com foguetes contra as posições dos EUA no Iraque coincidiram com as negociações entre Washington e Teerã para retomar o acordo nuclear de 2015 abandonado pelo ex-presidente Donald Trump.

  • Comentário: o último parágrafo, que contém informações vitais, segue no site após um box de propaganda, e pode não ter sido visto por muitos leitores. Aqui fica claro que WASHINGTON NÃO SABE QUEM ATACOU EM FEVEREIRO, e baseou sua resposta em  “ataques semelhantes do passado”. Por último, fica claro que os EUA vão se utilizar deste conflito de alguma forma no seu esperado retorno às negociações sobre o acordo nuclear com Teerã.

 

FONTE: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-02-26/eua-lancam-ataque-aereo-na-siria-contra-estruturas-de-milicias-apoiadas-pelo-ira.html

*Babel Hajjar é Mestre em Ciências pela Universidade de São Paulo. Em sua pesquisa de mestrado (2016), analisou como a midia global reportou a guerra na Síria.

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