1/10/2020, MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Três dias depois do início do conflito no Alto Carabaque[2] [ing. Nagorno-Karabakh], na região da Tra
nscaucásia – também conhecida como Sul do Cáucaso – está-se tornando claro que a narrativa binária divulgada por comentaristas ocidentais de que se trataria de conflito turco-russo de vontades e estratégias é simplesmente ingênua, ou propositalmente enganosa.
A questão é que Rússia e Turquia – e Irã num papel de apoio – já falam proativamente de negociações envolvendo os lados em conflito.
30 de setembro foi uma espécie de reviravolta. Na véspera, Teerã pedira ao Azerbaijão e à Armênia que resolvessem pacificamente suas diferenças pacificamente e ofereceu-se para, com Turquia e Rússia, ajudar os dois países a resolverem suas diferenças.
O presidente Hassan Rouhani repetiu esta oferta em conversa por telefone com o primeiro-ministro armênio Nikol Pashinyan. De acordo com o relato iraniano, Pashinyan respondeu positivamente que “qualquer tensão e conflito aconteceria em detrimento de todos os países da região; e acolheu qualquer iniciativa prática para parar a violência.”
A Armênia é país sem litoral e depende do Irã para lhe fornecer uma rota de transporte vital para o mundo exterior. Por seu lado, Teerã manteve relação calorosa com a Armênia (embora o rival Azerbaijão seja país muçulmano), fornecendo-lhe inclusive gás natural.
Teerã manteve-se na trilha amistosa, mesmo após a “revolução colorida” na Armênia em 2018 e a ininterrupta gravitação Pashinyan para o campo dos EUA no período subsequente, ao mesmo tempo em que permanecia membro da Organização do Tratado de Segurança Coletiva liderada por Moscou. (Ver meus artigos no Asia Times – A color revolution in the Caucasus puts Russia in a dilemma, de 9/5/2018 e Color Revolution in the Caucasus rattles Russian leaders, de 8/8/2018).
O Irã enfrenta profundas preocupações de segurança com as recentes trocas diplomáticas de Pashinyan com Israel (por iniciativa da Casa Branca), o que, claro, trouxe o famoso aparelho de inteligência israelense Mossad direto para as fronteiras do norte do Irã (além da potencial presença do Mossad nos Emirados Árabes, Bahrein e Omã no flanco sul do Irã).
A Turquia também tem motivos para se preocupar com as atividades de Israel na Transcaucásia. Israel está virtualmente ‘pegando carona’ nas revoluções coloridas patrocinadas pelos EUA na Transcaucásia. Depois da revolução colorida patrocinada pelos EUA na Geórgia em 2003, Israel apareceu, da noite para o dia, em Tbilisi. E os laços Israel-Geórgia tornaram-se logo muito estreitos.
Apesar do fracasso da revolução colorida no Azerbaijão em meados de 2005 e das tentativas esporádicas desde então, Israel desenvolveu estreita “cooperação de segurança” com aquele país. Mais ao norte, Israel desenvolveu relações especiais com a Ucrânia, também progênie da revolução colorida, que também tem presidente judeu étnico e ativamente envolvido também na revolução colorida em andamento na Bielorrússia. (O estranho é que, apesar da empresa virulentamente antirrussa que Israel mantém na região do Mar Negro, ela ainda mantenha laços excepcionalmente próximos com a Rússia!)
Tanto a Turquia quanto o Irã entendem perfeitamente bem por que Israel atribui tamanha importância aos três pequenos países da Transcaucásia (população total de 11 milhões), para estabelecer presença de segurança naquela região com o objetivo de criar uma “segunda frente” contra dois inimigos regionais – Ancara e Teerã. (Israel também tem um histórico de ligações com grupos separatistas curdos que têm ligações étnicas com a Transcaucásia.)
O Irã expressou abertamente sua inquietação sobre a decisão de Pashinyan de abrir a embaixada da Armênia em Israel, o que por sua vez inspirou o então Conselheiro de Segurança Nacional (B0lton) a viajar até Erevã, onde abertamente atacou o Irã (e a Rússia). A propósito, a Diáspora Armênia nos EUA é eleitorado influente que Pashinyan também não pode ignorar.
De qualquer forma, pouco depois eclodiram as manifestações em frente à embaixada da Armênia em Teerã, e altos funcionários iranianos advertiram Pashinyan. Comentarista iraniano escreveu: “As considerações de Teerã (…) devem ser levadas em consideração (…) Por outro lado, a Rússia sem dúvida opõe-se à ideia de usar a Armênia para promover a segurança e a influência econômica. Os russos já haviam criticado severamente o acordo de armas de Israel com a Geórgia e a República do Azerbaijão”.
Claramente, analistas ocidentais estão cuidando de não deixar ver o nexo EUA-Israel, em funcionamento na Transcaucásia.
Tanto Ancara como Teerã têm motivos para se preocupar com a possibilidade de os EUA usarem israelenses, por procuração, na região da Transcaucásia – como tem acontecido há décadas, no Oriente Médio, – para enfraquecer e reverter as aspirações crescentes das duas potências regionais.
Em formação o eixo Turquia-Irã
Com a destruição do Iraque e da Síria e o enfraquecimento do Egito, a Turquia (sob o presidente Erdogan) e o Irã são as duas únicas potências regionais autênticas no Oriente Médio muçulmano que podem desafiar as estratégias regionais dos EUA e enfrentar a preeminência militar de Israel.
Significativamente, o aumento do nexo EUA-Israel na Transcaucásia vem na esteira dos recentes “acordos de paz” patrocinados pelos EUA entre Israel e três estados do Golfo Árabe (Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Omã). De fato, tanto Turquia como Irã reagiram fortemente àquele desenvolvimento no Golfo.
Nesta semana, o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Iranianas, Major General Mohammad Hossein Baqeri, alertou explicitamente os Emirados Árabes Unidos de que Teerã verá aquele país como “inimigo” e agirá de acordo, se Abu Dhabi permitir qualquer presença de segurança israelense em seu solo.
Um mês depois do acordo Israel-Emirados Árabes Unidos, o presidente turco Recep Erdogan apareceu numa videoconferência com Rouhani, na qual fez declaração altissonante, ne abertura: “O diálogo entre Turquia e Irã tem papel decisivo na solução de muitos problemas regionais. Acredito que nossa cooperação retornará aos níveis anteriores à medida que as condições pandêmicas forem amenizadas”.
Rouhani respondeu que as relações turco-iranianas são construídas sobre bases sólidas ao longo da história, e as fronteiras entre os dois “países amigos e irmãos” sempre foram “as fronteiras da paz e da amizade”. Afirmou que, especialmente nos últimos sete anos, ambos os governos têm feito grandes esforços com base na cooperação bilateral, regional e internacional.
De forma significativa, Rouhani acrescentou que os dois países estão localizados numa “região sensível” do Oriente Médio e são “as duas grandes potências da região. Houve hostilidade e vingança em relação a ambos os países. Também existe hoje. Não há maneira de ser bem-sucedido contra essas conspirações a não ser reforçando relações amigáveis entre os dois países.”
Com certeza, Israel tomou nota do nascente eixo Turquia-Irã (que também inclui o Catar). Comentário no Jerusalem Post observou que nos últimos anos os laços turco-iranianos “ficaram mais próximos devido à oposição conjunta aos EUA e também a Israel. Irã e Turquia apoiam o Hamas, por exemplo”. O autor observou com ironia que a geopolítica do Oriente Médio construída em torno da luta sectária xiita-sunita pode ter sobrevivido à sua utilidade!
Mais uma vez, a agência de notícias estatal turca Anadolu publicou comentário na semana passada intitulado Novo desenho estratégico do Oriente Médio, em que apontou que os acordos de paz no Golfo trazem à tona o cisma entre os Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Bahrein por um lado, e Qatar e Kuwait por outro. (O Catar é aliado da Turquia, e o Kuwait tem laços amigáveis com o Irã.) Ali se lia:
“Os países árabes parecem ter perdido a confiança e o senso de unidade; quando o senso de confiança está seriamente danificado, é mais fácil pô-los em conflito, e essa divisão regional, como em toda parte, torna os países árabes e seus líderes dependentes de forças externas para a própria segurança e a própria existência”.
O comentário de Anadolu fez o aquecimento para o tema principal, a saber, que o chamado acordo de “normalização” entre Emirados Árabes Unidos e Israel “pode ser esforço velado não apenas para expandir o espaço imperial, mas também para formar um bloco contra Irã e Turquia no Oriente Médio.”
“O Irã é país não árabe e parece arqui-inimigo dos EUA e de Israel; o Irã colabora com a Rússia e a China, arquirrivais dos Estados Unidos, e às vezes com a Turquia, o que pode ameaçar tanto o interesse imperial dos EUA como a segurança de Israel na região. Portanto, o poder regional e a influência do Irã devem ser afastados e encurralados.”
“A Turquia é país da OTAN e parece aliado próximo dos EUA, (mas) a política dos EUA em relação à Turquia na região é ambivalente, obscura e elusiva no sentido de que os EUA ainda continuam a apoiar o grupo terrorista YPG / PKK (curdo) na Síria, que há décadas comete atos terroristas contra a Turquia e mata civis”
“Além disso, EUA e Israel, embora pareçam amigáveis, não querem Turquia forte, porque Turquia forte pode influenciar os países árabes, particularmente usando o Islã e, em seguida, virá-los contra a exploração do Oriente Médio e de seu petróleo e recursos pelas potências neoimperiais, mas os EUA e outras potências imperiais nunca permitirão que a Turquia ponha-se facilmente de pé na região. Podem preferir uma Turquia fraca e frágil, lutando com seus conflitos internos, que sempre sirva aos propósitos do Império.”
Nas crônicas do grande jogo, raramente acontece de os protagonistas manifestarem-se e optarem pela diplomacia pública. O jogo, historicamente, é jogado em silêncio, nas sombras, fora do campo de visão do público. Turquia e Irã decidiram de outra modo.
Parece crível que o conflito na Transcaucásia – região longínqua que faz fronteira com Turquia e Irã, onde Israel está consolidando uma presença de segurança contra eles – tenha eclodido por simples coincidência nesse cenário de novo alinhamento, que promete redesenhar a geopolítica do Oriente Médio?
[1] Orig. Time of Troubles. Expressão faz referência um período da história da Rússia, de crise política, que se seguiu à queda da dinastia Rurik (1598) e terminou com o estabelecimento da dinastia Romanov (1613) [NTs, com informações da Enciclopaedia Britannica].
[2] Seguimos nessa tradução a toponímia definida para o português de Portugal. No Brasil, não encontramos NENHUM estudo linguístico prestável nesse campo. Nagorno-Karabakh é traduzido ao português de Portugal como “Alto Carabaque” (CORREIA, Paulo, Outono de 2008). «Geografia do Cáucaso» (PDF). Sítio web da Direcção-Geral da Tradução da Comissão Europeia no portal da União Europeia. A Folha — Boletim da língua portuguesa nas instituições europeias (n.º 28): 11-13. ISSN 1830-7809. Consultado em 1/10/2020 [NTs].
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga