21/7/2016, MK Bhadrakumar, IndianPunchline
Traduzido por Vila Vudu
Reunião de cinco horas entre ministro de Relações Exteriores visitante e o presidente Vladimir Putin da Rússia não é apenas evento raro; na verdade, ninguém consegue lembrar-se de outra. Putin faz raras exceções para receber ministros de Relações Exteriores. E quando os recebe é sempre depois que já falaram com o ministro russo, Sergey Lavrov. Sob todos esses critérios, a reunião entre Putin e o secretário de Estado dos EUA John Kerry, 5ª-feira passada no Kremlin for extraordinária.
Kerry rumou diretamente para o Kremlin no momento em que pousou em Moscou na 5ª-feira à noite e esteve com Putin até 1h da madrugada da 6ª-feira. A rara presença de Putin em conferência conjunta de imprensa com ministro estrangeiro (Kerry), a linguagem corporal de Putin e, claro, a conferência de imprensa que aconteceu logo depois, com Kerry e Lavrov – todos sempre dedicados a dar a impressão de que EUA e Rússia estariam engajados numa grande ação conjunto relacionada ao conflito sírio (aqui e aqui).
Nenhum dos três – nem Putin e Lavrov nem Kerry – foi sequer remotamente afetado pela energia negativa irradiada pela reunião de alta cúpula da OTAN, que acontecera em Varsóvia, apenas quatro dias antes, e cujo leitmotif foi a forte determinação da aliança ocidental para deter as pressupostas tendências agressivas da Rússia na Eurásia.
Kerry vai-se reunir ainda hoje em Londres com um grupo seleto de líderes europeus aliados, para informá-los sobre “passos concretos que EUA e Rússia planejam dar”. Revelou que teve uma conversa por telefone com Lavrov na 3ª-feira, e
“Nós dois [Kerry e Lavrov] acreditamos que compreendemos a direção em que estamos andando e o que interessa alcançar. Nossas equipes vão-se reunir em breve para continuar a trabalhar nisso e fazer avançar a cessação de hostilidades, para aumentar nossa capacidade para lutar contra Al-Qaeda, Nusra, e também para reagir contra o ISIL.”
Soa bom demais para ser verdade. Mas, afinal, Kerry é diplomata experiente, com 30 anos de experiência no Senado dos EUA, período durante o qual presidiu a Comissão de Relações Exteriores do Senado, e já há três anos é o principal diplomata dos EUA. Por que os EUA, de repente, põem-se a trabalhar tão publicamente num processo de paz com a Rússia, tida como potência regional agressiva, para fazer avançar um processo político na Síria?
Os EUA sempre tentaram um “engajamento seletivo” com a Rússia em questões que interessassem a Washington, ao mesmo tempo em que trabalhavam, noutra via, na estratégia de contenção. É possível que Lavrov tenha, gentilmente, lembrado a Kerry essa discrepância, quando Kerry lhe telefonou, na 5ª-feira, para discutir os “passos concretos” sobre a Síria, no prosseguimento da conversa dos dois no Kremlin semana passada.
Curiosamente, o release do Ministério de Relações Exteriores faz uma referência indireta a Lavrov ter-se servido também, inter alia, da oportunidade, para gentilmente recordar a Kerry o quanto o governo Obama está movendo céus e terras, hoje mesmo, para humilhar a Rússia em outro front, ao impedir que atletas russos participem dos Jogos Olímpicos do Rio. São dois diplomatas experientes, que não precisam preocupar-se com esconder muita coisa um do outro. O release do MRE russo diz: “O embaixador Kerry aceitou que não se deva politizar o esporte” (aqui).
E Moscou não saberia que Kerry pode até estar fingindo um acordo com a Rússia sobre a Síria? E Moscou não saberia que o governo Obama chegou à derradeira etapa e o tempo está acabando? A questão é que há um poderoso lobby em Washington, incluindo o Pentágono e aparentemente também dentro do próprio Departamento de Estado, que se opõe absolutamente a qualquer modalidade de cooperação EUA-Rússia na questão síria que não vise a depor, o mais rapidamente possível, o presidente Bashar al-Assad. (Sobre opinião dos falcões de Washington, veja documento de trabalho da Brookings Institution, aqui.)
Fato é que os EUA estão aproximando empenhadamente da Rússia, ante o pano de fundo dos eventos dramáticos na Turquia. O terreno mudou, na geopolítica da região. Interessante, Kerry fez sua viagem às pressas, não agendada, a Moscou, semana passada, com apenas quatro dias da cúpula da OTAN, com o golpe na Turquia ainda em andamento. Na verdade, Kerry tinha encontro previsto com Putin no Kremlin – ou já falara com Putin pelo telefone – desde que o golpe começou na Turquia. Alguma coisa aqui não cola muito bem, não é? Fato é que muito depende da antecedência com que Kerry (o governo Obama) realmente soube(ram) do golpe em preparação na Turquia. (Relato trepidante, golpe a golpe, do ‘golpe turco’, pelo veterano editor Murat Yetkin, no Hurriyet de hoje, aqui.)
Claro, o golpe gorado na Turquia torna-se momento de definição para o conflito sírio. Os militares e a inteligência estatal turca – e a liderança política – passam hoje por tal turbulência, que Ancara simplesmente não tem ‘cabeça’ ou simplesmente não tem capacidade para manter qualquer política intervencionista na Síria, em futuro próximo. Ao mesmo tempo, brotaram importantes incertezas no relacionamento da Turquia com EUA e Europa. Não pode haver dúvidas em Moscou de que a Turquia precisa desesperadamente agarrar-se a uma mão russa – o que, sim, amplia as opções político-militares da Rússia na Síria. Esse pensamento transparece num comentário de um dos principais especialistas em Kremlin, Fyodor Lukyanov, no Moscou Times (aqui).
Claramente as políticas dos EUA para a Síria estão em agonia. As forças sírias levantaram o cerco a Aleppo, e os rebeldes apoiados pelos EUA estão sitiados dentro da cidade, ao mesmo tempo em que a Turquia pode ter encerrado a ajuda que lhes dava. Não resta a Washington outra via que não seja conseguir de Moscou que conceda alguma fórmula de saída honrosa aos EUA.
Mas e a Rússia, o que ganha em troca? Participação nos Jogos Olímpicos do Rio? Não será surpresa se o Comitê Olímpico Internacional passar por alguma repentina mudança de humor, e disser ‘Da’ [“sim”, ru.] aos atletas russos. Se acontecer, estará conforme as melhores tradições de ‘toma-lá-dá-cá’ entre russos e norte-americanos, e Kerry trabalhou muito para conseguir.*****