24/6/2018, Jacques Sapir, Russeurope em Exil em Les Crises
«O verdadeiro problema criado pela globalização é de natureza política. A globalização engendrou a crise da democracia, justamente por efeito da emancipação das empresas transnacionais, que se livraram de todos os controles pelo Estado e puseram o político sob tutela delas, por aspectos técnicos que geraram o que se chama, não sem alguma razão, de o «momento populista» que vivemos hoje. (…)
Pode-se dizer pois que a desglobalização será o grande retorno vitorioso do político sobre o «técnico», e o «técnico» está aqui encarnado no econômico e no financeiro (…). O econômico e o financeiro voltarão a ser instrumentos a serviço da política. E, com a volta da política, fortalecida, será possível afinal haver democracia do tipo que obtém a própria legitimidade não dos ‘mercados’, mas do povo, democracia a serviço dos interesses do povo, e que se materializa no poder efetivo do povo (…).
Não cabe portanto surpresa, se algumas respostas populares à globalização põem em causa, em parte ou integralmente, o quadro da democracia representativa. É normal, dadas as deformações que a própria democracia participativa também padeceu por efeito da globalização. O apagamento do político nas «democracias» globalizadas tornou-as completamente sem sentido».
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«Não se trata de algum nacionalismo cultural e econômico, mas de uma inflexão significativa – para longe da economia neoliberal, do individualismo e do mercantilismo bruto – rumo a uma experiência humana expandida. (…) [Hoje] a hegemonia da moeda, do poder tecnológico e a ‘dominação’ no campo da energia já não estão, de modo algum, sob a posse garantida do ocidente. Já não pertencem ao ocidente, migração que já começou há algum tempo.»
(Alastair Crooke, «What Trump’s Policy of Energy Dominance Means for the World», 6/5/2018, Strategic Culture Foundation)*
«A fissura mais frisante e mais carregada de consequências, na consciência de classe do proletariado, se revela na separação entre a luta econômica e a luta política.»
Georgy Lucaks, História e consciência de classe, 1920, cap. 5º, marxists.org**
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A edição em espanhol de meu livro La démondialisation [A desglobalização] publicado em 2011 pela editora Seuil[1] acontece quando eventos dos meses recentes, até dessas últimas semanas, trazem uma espécie de confirmação às teses desse livro. O processo de desglobalização, do qual já se viam os primeiros sinais ao longo dos primeiros anos 2000s, foi radicalmente acelerado. Já é provavelmente irreversível, pelo menos para o período histórico no qual entramos.
Mas o que é essa chamada «desglobalização»? Alguns confundem o termo com alguma interrupção voluntária dos fluxos de trocas que correm por todo o planeta. Confundem assim um protecionismo, que pode ser amplamente justificado na teoria econômica, e a prática da autarquia [fr. pratique de autarquia]. Mas esquecem, principalmente, que as trocas de bens, mas também as trocas culturais e, assim, as trocas financeiras, são bem mais antigas que o fenômeno conhecido como «globalização» ou «mundialização». Porque a «globalização», para ficarmos num nome só, não se reduz à existência desses fluxos. O fenômeno da globalização surgiu a partir de um duplo movimento. Havia ao mesmo tempo a combinação e o intrincamento dos fluxos de mercadorias e dos fluxos financeiros, e havia também o desenvolvimento de uma forma de governo (ou de governança) na qual o econômico parecia sobrepor-se à política, e as empresas aos Estados. O que agora se pode constatar é que os Estados estão retomando o controle dos fluxos – um retorno vitorioso da política.
Pode-se dizer pois que a desglobalização será o grande retorno vitorioso do político sobre o «técnico», e o «técnico» está aqui encarnado no econômico e no financeiro. Não que raciocínios econômicos e financeiros venham a perder completamente a importância. Eles continuarão aí, tendo de ser levados em conta. Mas serão secundários, em relação ao político, que recuperará seus direitos. O econômico e o financeiro voltarão a ser instrumentos a serviço da política. E, com a volta da política, fortalecida, será possível afinal haver democracia do tipo que extrai sua legitimidade não dos ‘mercados’, mas do povo, que é democracia a serviço dos interesses do povo, e que se materializa no poder efetivo do povo.
A frase de Lincoln, «Do povo, para o povo, pelo povo» recobrará pleno significado. A desglobalização deve portanto ser compreendida como a volta da soberania – das nações, é claro, que analisamos em livro de 2008,[2] mas soberania democrática, que toma a forma de democracia da soberania do povo.
Evidentemente, esse retorno da soberania não garante o retorno da democracia. Há sistemas soberanos que nada têm de democráticos, claro. Mas a soberania tende à democracia, porque não pode haver regime efetivamente soberano que não seja democrático. Por isso a desglobalização deve ser vista como coisa positiva: porque implica essa reafirmação da soberania que tende à democracia – exige, aspira e possibilita a democracia –, e determinará o contexto dos próximos debates políticos.
1. Registrar claramente as mudanças
Para medir o que separa o contexto desse verão de 2018 e o contexto no qual o livro foi escrito, é preciso voltar sobre os eventos marcantes que mostram que a globalização está recuando. Esses eventos ocorrem num período bastante longo. Começa na paralisia que tomou conta da Organização Mundial do Comércio e a «Rodada de Doha» no início dos anos 2010, e que analisei na edição original do livro. Depois houve outros acontecimentos, que se desdobraram em período mais breve de tempo. Pode-se dizer que o período que vai de 2016 a 2018 foi especialmente fértil e eventos dessa natureza.
A desglobalização em números
O processo de desglobalização foi acelerado depois de vários meses, alguns anos. É período marcado pela estabilização, depois pela queda das trocas, medidas em porcentagem do PIB mundial. Esse movimento está ligado ao fluxo das exportações mundiais (e, na escala mundial, a cada importação corresponde uma importação).
Gráfico 1: Exportações mundiais em bilhões de dólares, dos EUA
Fonte: UNCTAD, Handbook of Statistics 2017, Annex 6.4 – International merchandise trade.
O ponto interessante aí é a queda na porcentagem dessas exportações mundiais relacionadas ao PIB mundial. Essa queda é indicação clara de que o peso do comércio internacional na riqueza mundial está baixando. Em contrapartida, o mesmo ponto nos diz também que uma parte crescente da riqueza é produzida, de fato, para abastecer os mercados internos de diversos países. Dito de outra forma, o impacto quantitativo da «globalização» está em regressão, já há vários anos.
Esse movimento pode ser observado também quando se analisa a evolução do índice de abertura de diferentes grupos de países. Depois de ter aumentado de 2006 a 2011, esse índice está agora em queda, em ritmo bem considerável, de 2011 a 2016. É claro que a desglobalização já não é representação de coisa alguma: a desglobalização está visível nos números e nos fatos.
Gráfico 2: Exportações mundiais em % do PIB mundial
Fonte : UNCTAD, DATABASE, arquivo us_goodsandservicesbpm6_53520188741137.xlsx
Mas o que expôs essa virada tão claramente, que muitos ainda tendem a pensar que teria sido a realidade gerada pela crise 2007 a 2009, apelidada de «crise das hipotecas podres (dos subprimes)», foram de fato dois fatos políticos gigantescos. O Brexit e a eleição de Trump mostraram que mudanças importantes já estavam em andamento.
Theresa May, primeira-ministra britânica que abraçou furiosamente o Brexit, não se cansa de, ao mesmo tempo, afirmar a necessidade de reindustrializar o Reino Unido. A política que ela propõe ignora completamente os mais de 30 anos de política neoliberal no Reino Unido.
Donald Trump, por sua vez, não hesita; depois da política ‘de tuítos’, que levou muitas grandes empresas norte-americanas a se alinharem com algumas de suas ideias, agora Trump já se meteu numa queda de braço com a China. Ao mesmo tempo, lança medidas protecionistas para os carros alemães, mas também sanciona o Canadá e o México. Não há como não ver nesses movimentos o funeral do dogma do livre-comércio.[3] E há uma razão para isso. O secretário de Estado do Tesouro dos EUA, Wilbur Ross, declarou que a segurança econômica é uma modalidade da segurança militar. Não está errado. E essa declaração simboliza perfeitamente a volta do político que é como marca registrada e signo da desglobalização.
Gráfico 3: Comércio mundial – Países em desenvolvimento, Países ditos em transição e Países desenvolvidos
Fonte : UNCTAD Handbook of Statistics 2017, Annex 6.4.
O fracasso do G-7
Nesse contexto, é preciso explicar o jogo dos EUA. Se Donald Trump assume o risco de pôr contra si os mais tradicionais e antigos aliados, como fez ao provocar a crise do G-7 em junho de 2018, é porque já fez sua escolha e, sim, quer arrancar da China um acordo geral que, em resumo, seja uma forma de partilha do mundo. É erro supor que Donald Trump seja doido e temerário, que não tenha estratégia clara. Ele tem visão e estratégia, ainda que seus métodos devam mais ao mundo dos negócios, de onde é egresso, que às paredes revestidas de mogno e ouro e aos punhos de renda da diplomacia tradicional. Estamos de volta à problemática de Yalta.
Essa partilha do mundo será feita muito provavelmente sem os europeus, que também estão pagando caro pela fé que investiram em instituições tão obsoletas quanto perigosas, na lista das quais a União Europeia e o euro têm lugar de destaque. Essas mudanças são imperfeitamente representadas pelo Brexit ou pela eleição de Trump, eventos que, na realidade não passam de respostas parciais a questões globais.[4]
Essas mudanças aceleraram durante o mês de junho de 2018. Na 6ª-feira 8 e no sábado 9 de junho, houve duas reuniões importantes: a do G-7, em Malbaie no Québec, e que terminou em visível fiasco, e a da Organização de Cooperação de Xangai, OCX, em Quingdao (China). As duas reuniões acontecerem no mesmo dia foi acaso. O resultado delas, não. Se a imprensa francesa deu eco ao fiasco do G-7, manteve-se estranhamente silenciosa sobre a reunião da OCX. Com certeza não foi por acaso.
O fracasso do G-7 assinala o esgotamento do «modelo ocidental», de fato, do modelo anglo-saxão, da globalização, ao passo que o sucesso da reunião da OCX indica claramente que voltou o tempo das Nações (e não importa de quais). Assim se confirma uma tendência já observável desde o fim dos anos 2000.[5] E é portanto claro que o processo de desglobalização está hoje em marcha, já irreversível.[6]
O G-7, resultado de uma forma de organização internacional posta em marcha depois que se desfez o sistema de Bretton-Woods em 1973, deu-se por objetivo operar como a torre de controle da globalização, uma plataforma de onde seria possível pilotar a globalização. Passou por fracasso visível do qual não se recuperará. Factualmente, o conflito foi provocado pelo conflito entre o presidente dos EUA Donald Trump e o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau. Donald Trump reagiu vigorosamente contra a apresentação dos resultados do G7 feita por Trudeau e retirou sua assinatura do comunicado final. É ato de extrema importância.
Poder-se-ia pensar que o encontro fracassou por causa das diferenças comerciais entre os EUA e a Alemanha, além do Canadá, tanto por falta de empatia e afinidade pessoal como por diferenças de personalidade entre Trump e Trudeau. Na realidade, o fracasso já estava inscrito nas políticas, pelo excesso de divergências e por interesses agudamente conflitantes. O fracasso, portanto, era previsível.
É preciso constatar, além de numerosos outros assuntos, quer se tratasse da questão do «multilateralismo», da participação da Rússia ou ainda da questão climática, predominaram os objetos de discórdia. Notemos pois que, ao contrário do que quer fazer crer uma parte da imprensa francesa, já completamente convertida em imprensa de aluguel, o conflito não se criou por haver alguma oposição dos seis parceiros a Donald Trump. Não houve, apesar do que disseram alguns veículos franceses, qualquer «frente unida» contra Donald Trump. E isso por uma razão bem simples. Porque o G-7 já não consegue, seja sob o formato atual ou seja pelos princípios que o constituíram, operar como a plataforma que impulsiona e dirige a economia mundial. Perdeu, pois, a legitimidade. Além, claro, de ter perdido também sua importância econômica. Depois de ter ultrapassado 65% do PIB mundial, ao final dos anos 1980s e nos anos 1990s, seu peso desabou hoje para menos de 50%. E há elo evidente entre a perda de legitimidade do G-7 e a queda na influência que tenha no PIB mundial.
Provavelmente, quando o G-7 expulsou a Rússia em 2014, assinou o próprio atestado de óbito. Muito interessante, além do mais, que a Rússia não tenha qualquer interesse em voltar ao G-7. A Rússia, sim, aprendeu com as transformações pelas quais passou o mundo nos últimos 15 anos.
Gráfico 4: G-7 em porcentagem do PIB mundial
Fonte : Base de dados UNCTAD
O sucesso da OCX
Ante o fracasso do G-7, chama a atenção o grande sucesso que foi a reunião da Organização de Cooperação de Xangai, OCX. Sinal de que, sim, estamos assistindo a uma mudança no eixo do mundo. Porque a OCX é a primeira e quase a única organização internacional criada no mundo pós-Guerra Fria. Seu sucesso tem efeito especular fortemente simbólico. Não que não haja conflitos entre os estados-membros ou associados à OCX. Mas ali os conflitos foram controlados. China e Índia coabitam, assim como Índia e Paquistão. Quantas outras organizações internacionais há que ostentem sucessos dessa envergadura? Vê-se aqui a grande vantagem de uma organização que respeita a soberania das nações, admite a aberta manifestação dos interesses nacionais e, a partir disso, consegue firmar compromissos válidos. É muito diferente da estrutura do G-7 que apenas finge que faz, de alguma razão supranacional, a lógica econômica e financeira, como se guiasse a ordem do mundo.
Lembremos também que a OCX é em grande parte criada pelos países BRICS, o grupo em que se reúnem China, Índia, Rússia, Brasil e África do Sul. Nesse grupo, os três principais países são membros da OCX.
Fato é que o processo de internacionalização das economias foi acelerado para os países BRICS. As taxas de abertura, ou de externalização, dessas economias, que se calcula a partir das exportações ou das importações não parou de cair. É número particularmente significativo, quando se sabe que nos BRICS estão dois países que têm alto peso no comércio mundial, a saber, China e Índia.
O sucesso da OCX, tem a ver com o caráter pragmático do grupo. Diferente do G-7, a OCX não finge que haja qualquer razão superior para existir, da qual derivariam regras imperativas sobre as nações. É ponto importante. Pode-se dizer que é um ponto crucial, que diferencia radicalmente a OCX, do G7. Em certo sentido, essa diferença traduz a oposição entre, de um lado, uma lógica que considera a construção de interesses nacionais no quadro político de cada país, e, de outro lado, uma razão que desceria dos céus sobre os países membros.
Gráfico 5: Taxa de abertura dos países BRICS / Fonte : Vide Gráfico 2.
A OCX é organização de cooperação. Não é fundada sobre a pretensão de algum tipo de partilha das soberanias, ideia que repetidas vezes oculta a negação de qualquer soberania, mas, em princípio propõe que a cooperação recíproca como o melhor instrumento para administras as diferenças de interesses.[7] A OCX é portanto dotada, simultaneamente, de instituições de segurança e de instituições de desenvolvimento econômico – por exemplo, um banco de investimentos. As oito nações que compõem a OCX[8] reúnem 41,4% da população mundial e 23% do PIB mundial. Com certeza, portanto, são nações que contam. E o aumento progressivo em potência da OCX comparado à desagregação do G-7 diz muito sobre o que realmente está em andamento hoje. O G-7 esgotou suas possibilidades, perdeu potência. Não corresponde mais, na forma atual, ao novo mundo que se vai formando. Será pois, provavelmente, convocado a pulverizar-se e ou transforma-se radicalmente ou perecerá.
A desglobalização em atos
A desglobalização, já se disse, não fará desaparecer, é claro, as trocas comerciais. Nem resolverá todos os problemas. A interdependência das economias persistirá, assim como persistirão as grandes questões ligadas ao desenvolvimento e à gestão dos recursos naturais. Mas os problemas que daí decorrem deverão ser encaminhados, resolvidos ou pelo menos administrados, sempre em estrito respeito à soberania de uns e de outros.
Implica dizer que os fluxos, sejam comerciais sejam financeiros terão de ser controlados. É indispensável cuidar hoje da questão do controle, dos princípios que regerão esse controle, pondo fim à conversa eternamente sem saída do «Livre Comércio». De fato, os dirigentes que pregam hoje um Livre Comércio completamente descontrolado são os que mais representam os homens e as mulheres do mundo passado.
Angela Merkel e Emmanuel Macron parecem não ter compreendido o significado do que acaba de acontecer nos dias de 8 a 10 de junho. Agarram-se a ideias ultrapassadas. Defendem tratados indefensáveis.
Porque o contexto internacional está inundado de textos que para alguns são obsoletos, para outros são errado e que, não raras vezes, combinam os dois defeitos.
Se se considera seja a Organização Mundial do Comércio seja o G-7, o que mais chama a atenção é a obsolescência dos textos e das instituições. Não esqueçamos que o G-7 nasce do G-5 (informal), depois do G-6 de 1974-1975. Àquela época, uma parte do mundo (os países comunistas) não estava conectada e o grupamento de países representados pelo G-6 (que virou G-7 com a entrada do Canadá), essencialmente preocupado com problemas financeiros,[9] representava na realidade os EUA e seus aliados. A obsolescência dessa instituição é manifesta. O mesmo se pode dizer da OMC, paralisada ao mesmo tempo por bloqueios internos e regularmente atropelada seja por novos tratados seja pelos Estados, como já se viu no caso das sanções contra a Rússia em 2014. Ora, é sempre perigoso insistir em manter vivas instituições obsoletas. Instituições obsoletas mantêm um quadro fictício, quando a realidade já caminhou para fora desse quadro.
Há também tratados e instituições que, sem ser necessariamente obsoletos, são, isso sim, ameaçadores e perigosos. O Tratado Econômico e Comercial Amplo [ing. Comprehensive Economic and Trade Agreement (CETA)] recém negociado entre União Europeia e Canadá é exemplo disso. Sabe-se que as negociações para esse tratado dito «de nova geração» decorrem precisamente dos bloqueios da OMC. Mas – e está amplamente demonstrado depois de dois anos – o CETA é tratado perigoso, seja de um ponto de vista político (põe a democracia sob tutela) seja por suas consequências financeiras e ecológicas. A luta política contra essas instituições, sejam obsoletas ou perigosas, já é hoje prioridade. Não é recomendável esperar que se produza a desglobalização, digamos, «naturalmente» ou por efeito da lógica das evoluções do comércio e das reações políticas que suscitam.
É urgente combater a favor da desglobalização, para impor essa volta do político e da democracia, hoje mais necessária do que nunca.
2. Compreender a desglobalização
A desglobalização nos é frequentemente apresentada como uma modalidade de volta à barbárie. Poder-se-ia até rir dessa manobra, se não fosse tema muito caro a doutos autores e autoridades, personagens, em outros campos, perfeitamente respeitáveis.[10]
A desglobalização é apresentada como a volta ao fechamento absoluto das fronteiras. O erro é claro. Não se trata de construir barragens, mas eclusas. Porque é a dimensão não controlada dos fluxos, seja fluxos de mercadorias, de capitais ou de migrantes, que provoca a desordem e o caos. Voltar à prioridade para a política, para a soberania, implica que todos esses fluxos têm de ser controlados, não, de modo algum, que tenham de ser interrompidos.
O falso debate: Globalização ou autarquia?
Uma das primeiras mensagens que se ouve muito frequentemente é que a desglobalização nos conduziria à autarquia, como se não houvesse escolha que não se limitasse ao livre comércio total e ao total fechamento de todas as fronteiras.
Para começar, é preciso nos entender quanto à terminologia. Períodos de total autarquia, exceto durante os conflitos, foram extremamente raros na história do mundo. O comércio de longa distância já existia ao tempo dos faraós. A Idade Média e o período moderno também conheceram importantes fluxos de trocas sobre distâncias em alguns casos, muito grandes.[11] Assim se vê que a existência de comércio, de trocas de longa distância não basta para definir os períodos de globalização.
Os períodos de globalização definem-se, por um lado, pela circulação de finanças entre os países, que não só facilita as transferências de capitais, mas, também, abre novos espaços às crises, e permite que algumas empresas realizem seus lucros fora dos espaços onde produzem; por sua vez, esse fenômeno está ligado ao primeiro, à separação entre o local onde uma empresa fabrica seus produtos e o local onde os vende. Esse ponto é importante. Ele permite que os dirigentes empresários pressionem a favor de reduzir salários de seus trabalhadores sem comprometer os lucros – o que aconteceria se o lugar da produção fosse o mesmo da venda e consumo dos produtos.
Por isso se pode dizer que o que se conhece como «globalização» ou «mundialização» caracteriza-se, por um lado pela emancipação das empresas transnacionais, que já não têm de se adaptar a regras estatais; e, por outro lado, caracteriza-se também por uma crise latente da democracia em cada um dos Estados, como reação à emancipação das transnacionais.[12] É erro reduzir a «globalização» a um fenômeno econômico (o livre comércio) ou financeiro (a circulação transnacional sem controle dos capitais), ainda que esses fenômenos sejam importantes e tenham feito surgir novos comportamentos.[13]. A «globalização» é fenômeno global cujas dimensões sociais e políticas tornaram-se determinantes na percepção e nos sentimentos de rejeição que atormentam as populações.
O verdadeiro problema criado pela globalização é de natureza política. A globalização engendrou a crise da democracia, justamente por efeito da emancipação das empresas transnacionais, que se livraram de todos os controles pelo Estado, e puseram o político sob tutela delas, por aspectos técnicos que geraram o que se chama, não sem alguma razão, de o «momento populista» que vivemos hoje. É portanto essa dimensão política e social que explica, por reação, o crescimento de diferentes modalidades de protesto e contestação, ações populares.
que muitos veem, não sem alguma razão, como ações «populistas».
Efeitos políticos da globalização
A «globalização», por conta de seus efeitos induzidos, acabou por romper a unidade entre a capacidade para decidir e a responsabilidade dos decisores, unidade que é fundamento da própria existência da democracia. Ora, a democracia exige a presença de um «povo», em outras palavras, de um corpo político soberano definido por fronteiras.[14] A palavra dessa definição que está hoje esvaziada soberano. A soberania define-se por essa liberdade para decidir que caracteriza as comunidades políticas chamadas “povos”, liberdade que os povos exercem mediante o quadro da Nação e do Estado. Esquecer a dimensão necessariamente social e coletiva de nossa liberdade é marca indelével do ponto de vista «liberal», ponto de vista o qual, ele próprio, desde o «triunfo» da globalização, transcende as divisões «esquerda/direita» e ponto de vista o qual – o que não surpreende – se mostra hostil, em algumas de suas correntes, a essa noção de soberania.
Contudo, ainda falta compreender como se faz a sociedade, falta compreender o que constitui um «povo», e falta compreender que, quando falamos de um «povo» não falamos de uma comunidade étnica ou religiosa, mas, sim, dessa comunidade política de indivíduos reunidos que toma o próprio futuro em suas próprias mãos.[15] O «povo» ao qual nos referimos é um povo «para si», que se constitui na ação; não alguma espécie de povo «em si».
Esse corpo político exerce a própria soberania, no quadro de suas fronteiras. Isso explica o vigor, nos diferentes países, dos movimentos para afirmar a soberania. Alguns desses movimentos assumiram características «populistas» porque o quadro político no qual se desenrolas conheceram patologias específicas, formas específicas de colusão no seio das elites políticas, econômicas ou mediáticas e entre elas. Já vimos acontecer esse fenômeno na América Latina, com a emergência de uma esquerda populista não isenta de contradições significativas.[16]
Não cabe portanto surpresa, se algumas respostas populares à globalização ponham em causa, em parte ou integralmente, o quadro da democracia representativa. É normal, dadas as deformações que a própria democracia participativa também padeceu. O apagamento do político nas «democracias» tornou-as completamente sem sentido.[17]
Miséria do «outro-mundismo»
Há quem pense, ou deseje, que se possa mesmo assim reconciliar a «globalização» com a democracia. Em algum sentido é a filosofia que inspira a corrente que se pode designar como «altermundialista», cujo lema ainda é «outro mundo é possível». Mas esse movimento carrega uma contradição fundamental: como restaurar a democracia sem definir com precisão o «povo» e sem respeitar sua identidade política?
A aporia que é o conceito de governo mundial (ou de governo regional dentro de um grupo de nações) sofre (e está condenada a continuar sofrendo) sempre as consequências de que as identidades políticas são fatores indispensáveis à constituição de todos os povos. Ora, essas identidades políticas evoluem muito lentamente, jamais na temporalidade das mudanças políticas, e absolutamente nada indica que assistamos hoje a algum tipo de convergência. Por isso os que se podem denominar e se autodenominam «altermundialistas» [outromundistas] ou se autocondenam à impotência ou serão levados a retomar uma filosofia abertamente antidemocrática: a da «democracia sem demos», vale dizer, a uma democracia sem pés no chão, separada de qualquer responsabilidade ante «seu» povo.
Podem-se classificar nessa filosofia as ideias de «democracia por lei», sistema no qual a definição de democracia reduz-se à mera correspondência ao que seja dito legal ou regular. Sabe-se há muito tempo que esse sistema sempre é, na realidade, governo de um «tyrannus ab exertitio»,[18] vale dizer, sistema tirânico.[19]
Já está fartamente demonstrado que o «governo legal» pode perfeitamente servir de máscara para poderes tirânicos. Os estudos de caso propostos em The Constitution of Law, de David Dyzenhaus põem em evidência, afinal de contas, uma crítica do positivismo. Essa crítica é contribuição fundamental.
A crítica do positivismo permite compreender o modo pelo qual a obsessão pela legalidade formal e a fidelidade ao texto escrito viram-se muito frequentemente a favor das políticas das forças que estejam no poder, sejam quais forem.*** Repetidas vezes o autor evoca suas próprias análises das perversões do sistema do Apartheid, perfeitamente legais,[20] lembrando que essa jurisprudência de aviltamento tinha muito menos a ver com convicções racistas dos juízes sul-africanos e mais, isso sim, com o «positivismo» da formação acadêmica daqueles juízes.[21]
Compreende-se, seja por intuição seja por reflexão elaborada, que a liberdade da comunidade política – da comunidade que se denomina povo – passa pela liberdade do conjunto territorial sobre o qual viva aquele povo. Não se pode pensar em «povo» sem, no mesmo movimento, pensar em «nação». E a liberdade do «povo» no quadro da «nação» é o que se denomina soberania. Por isso a soberania é essencial para que haja democracia. A soberania é una, mas seus usos são múltiplos. Falar de soberania «de esquerda» ou «de direita» nada significa, ou, para os que insistam nessa formulação, só pode haver aí um significado a ser ocultado, não exposto: a evidência de que a soberania está sendo negada, não afirmada. Compreende-se pois o caráter de antinomia que se estabelece entre política, concebida como expressão da democracia; e «globalização» que tende, em todos os lugares e a todo momento a «destronar» essa política.[22]
Ascensão de uma contestação radical
Os movimento que, ao contrário, contestam radicalmente as formas de elementos tirânicos implantadas em nossos sistemas políticos são forçadas a se confrontar diretamente com o que se chama «globalização».[23] E o mesmo se dá com as formas regionais que a globalização assume, como acontece no caso do euro.[24] Esses diferentes movimentos tendem, todos, sob uma forma ou outra, a reafirmar a soberania popular, seja nas formas nas quais a legitimidade carismática prevalece (para os movimentos propriamente populistas) ou nos quadros nos quais se misturam de diferentes modos as formas democráticas, burocráticas e carismáticas da legitimidade. Esses movimentos reporão em discussão os grandes tratados, mas também as instituições que acreditaram que fosse possível estabilizar as formas de despossessão da soberania popular, formas de despossessão as quais apareceram durante a fase de expansão da globalização. Não implica dizer que se recusam a qualquer outra ideia de cooperação internacional. Mas essa cooperação deverá ser regida, no futuro, por nações soberanas. O Direito Internacional decorre pelo contrário do Direito de cada Estado; é um Direito de coordenação.[25] Essa é a lógica que Simone Goyard-Fabre desenvolveu.[26]
Goyard-Fabre lembrou também as condições de exercício da soberania e mostrou que o princípio do exercício dessa soberania não seria posto em questão por obstáculos materiais e técnicos. E escreveu:
«Que o exercício da soberania só possa ser feito por meio de órgãos diferenciados, com competências específicas e trabalhando independentemente uns dos outros, não tem qualquer implicação quanto à natureza da potência soberana do Estado. O pluralismo dos órgãos (…) não divide a essência ou a forma do Estado; a soberania é una e indivisível».[27]
É extremamente fraco, na base, o argumento que busca fundamentar na limitação prática da soberania uma limitação do princípio da soberania. Os Estados não pretenderam poder controlar tudo materialmente, mesmo e inclusive sobre o próprio território de cada Estado. O déspota mais poderoso e mais absoluto é inefetivo diante de uma tempestade ou de uma grande seca. É preciso pois não confundir os limites ligados ao domínio da natureza e a questão dos limites da competência do soberano. Mas, a questão da globalização, instituição humana, escapa completamente às leis da natureza.
A questão da soberania assume pleno significado se se considera o lugar que a soberania ocupa na ordem simbólica das coisas. A soberania não depende somente de quem toma decisões, ou, dito de outro modo, de saber se o processo é interno ou externo à comunidade política envolvida. A soberania, como o conceito é construído na obra de Jean Bodin, está em se levarem em conta interesses coletivos que se materializam na coisa pública.[28] O princípio de soberania está fundado portanto sobre o que é comum numa coletividade, não sobre quem exerce a soberania.
Eis por que a recuperação da soberania nacional (e do exercício da soberania popular) opõe-se tão radicalmente à globalização. Por isso também um dos marcadores mais certeiros da desglobalização está na afirmação da soberania e, com afirmar a soberania, na primazia que passa a ser da política, sobre o técnico.
3. A lamentação dos globalistas
O debate sobre globalização e desglobalização é importante e está na ordem do dia. Nesse sentido interessa examinar a pesquisa feita por OpinionWay, na população francesa, sobre a «globalização». Os resultados são muito claros. Os franceses rejeitam, na grande maioria, essa «globalização» e se declaram até, cerca de 66% dos pesquisados, a favor da volta do protecionismo. Apesar disso, desenvolveu-se um discurso sobre a globalização, discurso que tende a naturalizar esse processo e que, pela via inversa, revela o pensamento e o impensado dos que defendem a globalização.
Globalização e naturalização dos processos
Philippe Moreau Defarges é claramente dos que defenderão até o fim a globalização. O interesse de seu livro[29] advém de ele expor em detalhe as derivas ideológicas dos defensores da globalização.
O livro começa por uma análise das diferenças que há entre o altermundismo e os discursos de desglobalização. Essa é uma distinção nos discursos é importante. Mas a análise não vem acompanhada da necessária diferenciação entre o movimento dos fluxos de mercadores e de capitais, e a ideologia da globalização. Isso tem explicação fácil: é que Philippe Moreau Defarges retoma de modo acrítico esse discurso ideológico.
Voltemos por um instante à distinção entre altermundismo e desglobalização. O altermundismo aceita a globalização não como fato social, mas como se fosse evento da natureza. Inscreve-se, na realidade, numa lógica de naturalização de todos os processos que possam levar o nome de «globalização». Nesse sentido, o altermundismo, como se manifestava no final dos anos 1990s e início dos anos 2000s, abraça claramente a ideologia da globalização. Os altermundistas pretendem pôr de pé novas formas de globalização, mas jamais se perguntam sobre o que representam, socialmente e politicamente, esses processos, porque, para eles, são processos «naturais». Ou, desse ponto de vista, têm muito em comum com os discursos «pró-globalização», os quais insistem em considerar seus processos «naturais». Vê-se isso claramente no discurso de Moreau Defarges, que reserva lugar decisivo às técnicas e às tecnologias, apresentadas literalmente como Deuses ex-Machina completamente imunes às ações humanas.[30] De fato, tudo acontece de modo tal que um dos capítulos do livro gira em torno da ideia de uma «reunificação biológica».
Mas as sociedades humanas, exceto nos delírios dos racistas, jamais são realidades biológicas e sempre, ao contrário, são realidades sociais, políticas e culturais. Conheço pessoalmente Philippe Moreau Defarges e não tenho qualquer intenção de acusá-lo de racismo, porque sei que se posiciona a léguas de distância dessa ideologia nauseabunda que o horroriza. Mas é preciso constatar que a ideologia da globalização e, mais precisamente, a vontade de construir um quadro ideológico que naturaliza os fenômenos que adviriam do que se conhece como «globalização», obriga a mobilizar conceitos e noções que, não há como negar, invocam um desabrido imaginário racista. Fato é que acontece o mesmo em todas as tentativas para «naturalizar» fenômenos que são qualquer coisa, exceto «naturais». Porque essa naturalização lá está, bem ativa, no livro que estamos discutindo. E há também no que escreve Moreau como uma ressurgência dos discursos tecnicistas de naturalização do social como se constituíram no socialismo soviético do final dos anos 1950s e dos anos 1960s.
Uma visão fortemente ideológica
Quando Moreau Defarges fala dos discursos da desglobalização (e esses discursos podem ser muito variados) fala como se fossem discursos ideológicos, vale dizer, como se fossem representações mistificadas do mundo real. Mas identificar a desglobalização como «fechamento» e o «redobramento» é, antes de tudo, uma construção ideológica. Os discursos que criticam o livre comércio e a ideologia da «globalização» recorrem a formas de comandar os movimentos de bens e de capitais, não, de modo nenhum, à interrupção total de todos esses movimentos. Essa confusão ideológica – porque é disso que se trata –, nos leva de volta à confusão entre protecionismo e autarquia. São portanto processos muito diferentes e bem distintos. A confusão entre esses dois processos assinala a natureza ideológica do livro.
Também são muito discutíveis os limites cronológicos em que o livro se autodemarca (séculos 15-16). Já havia trocas internacionais na Roma imperial, isso é, bem antes do século 15. As cidades italianas citadas estiveram á frente tanto do comércio internacional como das práticas bancárias. Há portanto algo de profundamente falso no modo como Moreau Defarges segmenta a História, para conseguir que ela sirva de apoio às suas teses, sem reconhecer que também existem, no mesmo período, elementos que apoiam também o contrário de tudo que ele diz.
Do mesmo modo, é altamente discutível a dita assimilação do nazismo em discursos nacionalistas, e dos discursos nacionalistas nos discursos socialistas.[31] Há longa série de estudos que mostram que o nazismo foi precisamente o contrário de qualquer nacionalismo. Esse ponto é importante porque, além de ser argumento que depende do «ponto Godwin»****, há aí incompreensão profunda na específica radicalidade da Alemanha hitleriana. A característica do comportamento de Hitler e também de outros chefes nazistas é resultado do filtro «racial».[32] O estado nazista regride portanto na direção de um modelo arcaico, semifeudal,[33] em momento em que aspira a gerar economia e sistema militar desenvolvidos.
Desse ponto de vista, é importante observar que embora a Alemanha nazista tenha conseguido fazer crer antes de 1939 que seria sistema «racionalmente organizado» para fazer a guerra,[34] a mesma percepção da realidade já foi desmascarada por grande número de trabalhos e de depoimentos de atores envolvidos. Desse ponto de vista, o trabalho de Berenice Caroll,[35] foi plenamente confirmado por pesquisas historiográficas ao longo das últimas três décadas. O sistema nazista não foi monstruoso só pela finalidade; foi monstruoso também no funcionamento rotineiro diário, profundamente patológico. Aí se está diante de uma regressão rumo a uma forma de estado e de administração «pré-moderna» (no sentido de Max Weber) aplicada a uma sociedade e a uma economia «moderna».
Essa dimensão patológica do sistema nazista (da qual Hitler é uma das fontes, mas que ultrapassa em muito a personalidade do ditador) foi bem analisada por Ian Kershaw, hoje já reconhecido como autor-referência sobre Hitler.[36] A Alemanha nazista não é, de modo algum, uma continuação, radicalizada, da Alemanha de Guilherme II. Em realidade, o nacionalismo alemão colapsou quando capitulou ante a ideologia racial do nacional-socialismo.[37]
O modo como Moreau Defarges trata (e maltrata) a História, e há muitos exemplos, é aqui revelador de seu projeto global: desconsiderar o discurso da desglobalização. Ora, pode-se reclamar, a sério, de seus discursos serem ideológicos, quando o próprio autor estão tão profundamente e tão completamente prisioneiro de uma ideologia, que não administra sequer as implicações mais imediatas do que diz?
Da globalização ao globalismo [ou “Da mundialização ao mundialismo” (NTs)]
Os pressupostos muito negativos relacionados à nação e ao nacionalismo que se identificam no pensamento de Moreau Defarges convocam melhor análise. No caso francês, ele parece ignorar a profundidade do sentimento nacional que se manifesta de Joana d’Arc[38] a Valmy, passando por Henrique IV e a batalha de Fontaine-Française.[39] Conhece mal até mesmo a história da constituição simétrica da nação e do povo.[40] De fato, isso impede Moreau Defarges completamente de compreender o processo revolucionário na França, que opôs, ao sentimento nacional, uma alta nobreza cosmopolita. Sem entender esse passo, ele também fica impedido de compreender o modo como a construção da nação, no caso francês, é tão antiga quanto a construção do povo, compreendido, não como comunidade de raça ou de religião, mas como uma comunidade política e cultural.
No caso desse autor, estamos diante de uma ação de desconstruir a narrativa nacional a favor de um romance nacional completamente impregnado de ideologia globalista.
Compreende-se assim, afinal, que conceitos de soberania, Estado Soberano e soberania popular não encontrem lugar nessa ficção.[41] Mas esses três conceitos são muito antigos.[42] Os três podem ser encontrados na fórmula da República Romana Senatus PopulusQue Romanum.
Os diferentes contrassensos que se encontram no livro de Moreau Desfarges remetem todos a um problema bem mais geral: o autor ignora completamente a importância e a autonomia do político. Essa ignorância é a consequência óbvia de se naturalizarem os processos de globalização cujas derivas já comentamos. E ela conduz Moreau Defarges a emitir juízos que, se pode dizer, brotam de uma extrema superficialidade e, mais provavelmente, como tradução de uma modalidade de desprezo, efeito, por sua vez, de uma visão autocentrada sobre países como o Japão[43] ou a Rússia.[44]
Somos então levados ao seguinte paradoxo: o autor defende a «globalização» mas a partir de pressupostos culturais que nada ficam a dever aos mais duros e mais atrasistas dos nacionalismos. É o preço a pagar por tanto desprezar a política, e também a instância cultural. Porque as duas coisas são intimamente ligadas. Não se pode ter consciência política sem alguma consciência cultural, e a consciência cultural integra, na realidade, a história inconsciente das lutas e dos compromissos políticos passados.
Vê-se bem afinal o que está em jogo. Nos discursos ideológicos do «globalismo», discursos que correspondem à naturalização dos processos reais de globalização, veem-se dois agentes opostos aos quais os globalistas atribuem características muito particulares: a elite financeira e econômica, apátrida e globalizada; e a plebe, ela também globalizada, mas ao preço de perder a própria cultura e a própria identidade políticas. De fato, segundo os pontos de vista, a tônica recairá sobre uma e sobre a outra, sem que os globalistas vejam que a elite financeira apátrida e globalizada é apenas a reformulação da alta nobreza do Antigo Regime; e que a plebe globalizada ao preço da própria cultura política e da própria identidade é uma massa que em alguns casos – pode-se compreender, sem por isso ter de aprovar – inclui elementos que podem ter origem religiosa, como pode ser o caso de alguns islamismos.
Desglobalizar é preciso
Vê-se afinal que a desglobalização é necessidade imperiosa, seja para salvar a democracia seja para salvar o que pode ainda ser salvo de nossas sociedades. O caos que a globalização produziu não é apenas efeito, é também uma modalidade de governança, mas governança necessariamente elitista e violenta. Se queremos recobrar o poder do povo, para o povo e pelo povo, não temos escolha, se não trabalhar para essa desglobalização e promover movimentos que serão, pode-se ter certeza desde já, chamados de populistas. Mas, o processo está bem adiantado. A desglobalização está acontecendo sob nossos olhos. Só depende de nós, do que fizermos, que a desglobalização aconteça mediante um aprofundamento democrático e para o maior bem do maior número de seres humanos.*******
* Epígrafe acrescentada pelos tradutores.
** Epígrafe acrescentada pelos tradutores.
[1] De Jacques Sapir só se encontra traduzido ao português o livro Que economia para o século 21 (Lisboa: Editora Piaget, 2008) https://www.buscape.com.br/que-economia-para-o-seculo-xxi-jacques-sapir-9727718892. Na sinopse da Livraria da Folha (São Paulo, SP), lê-se: “O livro defende que (sic) a liberdade dos agentes económicos é inconcebível sem instituições reguladoras (sic) por isso mostra a luta por uma concepção da economia onde (sic) as instituições (Estado, associações, sindicatos, imprensa, empresas, etc.) seriam os tutores do comportamento da economia regulando a e mantendo a (sic) na via do crescimento [NTs].
[2] SAPIR J., Le Nouveau XXIè Siècle, le Seuil, Paris, 2008 [port. Uma política para o século 21, Lisboa, Piaget]
[3] SAPIR J., «President Trump and free-trade» in Real-World Economic Review, n°79 (t2), 30/3/2017, pp. 64-73. (http://www.paecon.net/PAEReview/issue79/Sapir79.pdf )
[4] Idem, ibidem.
[5] SAPIR J., Le Nouveau XXIè Siècle, le Seuil, Paris, 2008.
[6] SAPIR J., La Demondialization, Le Seuil, Paris, 2011.
[7] «L’OCS est un modèle de coopération internationale, selon un rapport_French.news.cn» (http://french.xinhuanet.com/2018-05/27/c_137210279.htm ), xinhuanet.com (francês).
[8] China, Rússia, Índia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Uzbequistão e Paquistão. E têm status de observadores o Afeganistão, o Irã, a Mongólia e Belarus.
[9] FARNSWORTH, Clyde H. (8 mai 1977). A Secret Society of Finance Ministers, New York Times.
[10] Assim, MOREAU DEFARGES P., La Tentation du repli – Mondialisation et Démondialisation (XVème-XXIème siècles), Paris, Odile Jacob, mars 2018.
[11] Lembremos BROOK T., Le Chapeau de Vermeer, Paris, Payot, coll. Histoire, 2010.
[12] SAPIR J., «Le vrai sens du terme. Le libre-échange ou la mise en concurrence entre les Nations» in, D. COLLE (edit.), D’un protectionnisme l’autre – La fin de la démondialisation ?, Coll. Major, Presses Universitaires de France, Paris, Septembre 2009.
[13] SAPIR J., «La mise en concurrence financière des territoires. La finance mondiale et les États» in, D. Colle (edit.), D’un protectionnisme l’autre – La fin de la mondialisation ?, Coll. Major, Presses Universitaires de France, Paris, Septembre 2009.
[14] SAPIR J., Souveraineté, Démocratie, Laïcité, Paris, éditions Michalon, 2016.
[15] Aqui confesso uma influência de Lukacs G., Histoire et conscience de classe. Essais de dialectique marxiste. Paris, Les Éditions de Minuit, 1960, 383 pages. Collection «Arguments». [História e Consciência de Classe. Estudos Sobre a Dialetica Marxista, São Paulo: Editora Martins Fontes, ed. 2012 (esgotado). Há exemplares usados à venda em Estante Virtual em português (outras edições) e em espanhol].
[16] Ver LACLAU E. La Razón Populista, FCE, Buenos Aires, 2005.
[17] BELLAMY R., (1994). ‘Dethroning Politics’: Liberalism, Constitutionalism and Democracy in the Thought of F. A. Hayek. British Journal of Political Science, 24, pp 419-441.
[18] Ver SAINT AUGUSTIN [Santo Agostinho], Œuvres, sous la direction de Lucien Jerphagnon, vol. II, Paris, Gallimard, «La Pléiade», 1998-2002.
[19] Esse aspecto é analisado em SAPIR J., Souveraineté, Démocratie, Laïcité, op.cit..
*** Negritos dos tradutores brasileiros.
[20] DYZENHAUS D, Hard Cases in Wicked Legal Systems. South African Law in the Perspective of Legal Philosophy, Oxford, Clarendon Press, 1991.
[21] DYZENHAUS D., The Constitution of Law. Legality In a Time of Emergency, Cambridge University Press, Londres-New York, 2006, p. 22.
[22] R. BELLAMY (1994). ‘Dethroning Politics’: Liberalism, Constitutionalism and Democracy in the Thought of F. A. Hayek. British Journal of Political Science, 24, pp 419-441.
[23] SAPIR J., Les économistes contre la démocratie – Les économistes et la politique économique entre pouvoir, mondialisation et démocratie, Albin Michel, Paris, 2002.
[24] SAPIR J., «La zone Euro : du cadre disciplinaire à la ‘Democrannie’», in Coll., L’Euro est-il mort ?, Paris, Editions du Rocher, 2016, pp. 111-124.
[25] DUPUY R.J., Le Droit International, PUF, Paris, 1963.
[26] GOYARD-FABRE S., «Y-a-t-il une crise de la souveraineté?», in Revue Internationale de Philosophie, Vol. 45, n°4/1991, pp. 459-498.
[27] GOYARD-FABRE S., «Y-a-t-il une crise de la souveraineté?», op.cit., p. 480-1.
[28] GOYARD-FABRE S., Jean Bodin et le Droit de la République, Paris, PUF, 1989.
[29] MOREAU DEFARGES P., La Tentation du repli – Mondialisation et Démondialisation (XVème-XXIème siècles), Paris, Odile Jacob, mars 2018.
[30] MOREAU DEFARGES P., La Tentation du repli – Mondialisation et Démondialisation op.cit., p. 37 et 150.
[31] MOREAU DEFARGES P., La Tentation du repli – Mondialisation et Démondialisation op.cit., p. 18.
**** Também chamado «lei de Godwin” «quanto mais se prolonga uma discussão, mais a probabilidade de alguém encontrar comparação que implique nazistas ou Adolf Hitler aproxima-se de 1» [NTs, com informações de Wikipedia].
[32] BURLEIGH M. et W. WIPPERMANN, «The Racial State – Germany 1933-1945», Cambridge University Press, 1991.
[33] KOEHL R., «Feudal Aspects of National-Socialism», in American Political science Review, vol. 54, 1960, n°3, pp. 921-33.
[34] Tese defendida por O. Nathan, «The Nazi Economic System», Duke University Press, Durham, NC., 1944, e por L. Hamburger, «How Nazi Germany has Controlled Business», The Brookings Institution, Washington, D.C., 1943.
[35] CAROLL B.A., «Design for Total War». Arms and Economics in the Third Reich, Mouton, The Hague, 1968.
[36] KERSHAW I., Hitler, a Profile in Power, Londres, 1991 ; Nazi Dictatorship : problems and Perspectives of Interpretation, Londres Oxford UP, 1993 ; «Working towards the Führer», in I. Kershaw et M. Lewin (eds.) Stalinism and Nazism – Dictatorships in Comparison, Cambridge Univ. Press, 1997.
[37] ALLEN, W. Sheridan, «The Collapse of Nationalism in Nazi Germany», in J. Breuilly (ed), The State of Germany, Londres, 1992.
[38] BENSAÏD D., Jeanne de guerre lasse, Paris, Gallimard, «Au vif du sujet», 1991.
[39] BERGER H., Henri IV à la bataille de Fontaine-Française, Dijon, 1958. E pode-se recordar o que diz Henrique IV na carta que envia ao Duc de Biron «enforca-te, valente Biron…»
[40] FLORI J., Philippe Auguste – La naissance de l’État monarchique, éditions Taillandier, Paris, 2002.
[41] MOREAU DEFARGES P., La Tentation du repli – Mondialisation et Démondialisation, op.cit., p. 163 ss.
[42] CARRÉ DE MALBERG R., Contribution à la Théorie Générale de l’État, Éditions du CNRS, Paris, 1962 (1ª ed. Paris, 1920-1922), 2 volumes.
[43] MOREAU DEFARGES P., La Tentation du repli – Mondialisation et Démondialisation, op.cit., p. 60.
[44] MOREAU DEFARGES P., La Tentation du repli – Mondialisation et Démondialisation, op.cit., p. 100.
Traduzido por Vila Vudu