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Em 1973, o Ramadã coincidiu em parte com a Guerra de Outubro, um conflito iniciado por um ataque combinado da Síria e do Egito contra Israel. A guerra foi, no começo, um sucesso árabe, uma resposta forte para a debacle dos exércitos árabes de 1968. E então, o Presidente egípcio, Anwar Sadat, tomou um rumo diverso daquele que tinha sido combinado com os sírios, os Estados Unidos se envolveram, e a vitória se transformou em empate…
Aquele Ramadã também coincidiu com minha chegada, aos 6 anos de idade, ao Líbano. Eu e minhas irmãs mais velhas íamos viver e estudar ali. Eu estava tão ocupado contemplando meu novo futuro, conhecendo meus avós, tias, tios e primos, me familiarizando com a nossa aldeia, e logo com a escola onde eu moraria e dormiria durante os dias da semana, que não tomei consciência do fato de que uma guerra estava em curso na região. E não lembro de ficar sabendo que o Ramadã estava acontecendo.
No ano seguinte, 1974, o Ramadã, como acontece por conta do calendário lunar islâmico, chegou dez dias antes, em setembro. Por alguma razão, talvez férias, talvez simplesmente um fim de semana normal, eu estava na casa dos meus avós.
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A casa não ficava muito longe do internato. Nas noites de domingo, levávamos talvez 10 minutos para subir a rua, entrar pelo portão da escola e cruzar a quadra esportiva – nesse momento eu me perguntava, em um estado de pavor não confessado, se alguém teria lembrado de trancar o Pastor Alemão – e passar ao nosso dormitório.
Havia poucos alunos muçulmanos na escola. Além de mim e minhas irmãs, eu sabia de quatro irmãs e talvez mais um menino, ainda mais novo do que eu. E havia poucos muçulmanos habitando a cidade que era um histórico bastião de cristãos ortodoxos. Meu avô servira o exército ali e, uma vez aposentado, permaneceu.
Tudo o que eu queria era tomar parte na experiência. O que eu mais queria era acordar no meio da noite e comer com os demais!
Minha avó, no entanto, ainda que costumasse realizar qualquer desejo meu, e que ria deliciada a cada vez que eu mostrava a contrariedade de ver uma expectativa frustrada, pensava que eu era jovem demais e pequeno demais para sofre o jejum do dia e para ser acordado no meio da noite, não importava o quanto eu insistisse.
Eu decidi jejuar mesmo assim. Certo dia, saí de casa e me dediquei aos assuntos de criança. A certa altura, por razões que não lembro, fui para na casa da vizinha. Ela, que era uma gentil senhora cristã, e muito generosa, insistiu que eu me service de um chocolate. Meu amor pelo açúcar era tanto então que eu sequer lembrei do Ramadã e das minhas firmes decisões… Foi só quando mais tarde contei à minha avó o que tinha feito no dia, que ela me fez notar que eu havia quebrado o jejum. Naquela noite, de novo ela não me acordou, eu nunca mais observei o Ramadã desde então…
É verdade que eu tinha descoberto naquela ocasião os limites da força da minha vontade, mas eu sempre me dei um desconto tendo em mente a minha pouca idade. Eu poderia ter tentado novamente. Mas, como nunca fui um muçulmano que observava as práticas religiosas, e porque sempre pedi consistência, de mim mesmo e dos demais, me parecia algo hipócrita observar algumas regras e ignorar outras.
Eu via no jejum um exercício em empatia e em solidariedade, um convite para pensarmos nos que sentem fome por falta do que comer, mas eu não queria usar, ou até mesmo deturpar, um mandamento religioso com tais propósitos práticos.
Cinquenta anos se passaram…
Em 2023 eu decidi descobrir se seria capaz de sustentar a experiência. Foi um sucesso parcial apenas, mesmo que desta vez não houvesse vizinhas cristãs gentis que pudessem compartilhar comigo a culpa por conta de um excesso de generosidade.
Agora, em 2024, os acontecimentos que decorreram do ataque realizado pela Resistência palestina contra Israel em 7 de outubro de 2023, um ataque que muitos compararam em importância à Guerra de Outubro de 1973, duraram tempo suficiente, mais de seis meses, para alcançarem o Ramadã deste ano.
Neste ano, enquanto tantas crianças têm tão pouco para comer em Gaza, estou tentando novamente, mesmo que funcionasse apenas para não me permitir esquecer delas. O sucesso é apenas parcial, ainda assim.
É verdade, ainda assim, que por vezes sinto vergonha de comer, não apenas porque crianças não tem acesso à comida, mas também porque elas não têm famílias com que jejuar e com quem quebrar o jejum, não têm pais ou avós que os acordem no meio da noite para compartilhar um pedaço de pão com azeitonas…