Resposta à materia publicada na Folha de São Paulo de 14.03.2021, sob o título ”Após dez anos, Assad e impunidade são os ‘vitoriosos’ na guerra da Síria”, de autoria de Patrícia Campos Mello – https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/apos-dez-anos-assad-e-impunidade-sao-os-vitoriosos-na-guerra-da-siria.shtml
É no mínimo discutível a abordagem editorial escolhida pela Folha para a matéria que relembra os dez anos da guerra na Síria. Fica nítido que o presente jornal corrobora a visão da mídia mundial sobre o único papel que caberia a Bashar al Assad – o de ditador sanguinário. O veículo apoia também a quebra de soberania síria, ao dar autenticidade discursiva unilateral aos curdos e ao grupo amorfo e multinacional conhecido como “rebeldes moderados”. A jornalista responsável pelo artigo em questão em nenhum momento aventa a possibilidade de a realidade da Guerra NA Síria – um conflito criado dentro da Síria sim, mas que menos interessou a sírios do que a outras potências e seus muitos grupos mercenários contratados – ser nada mais, nada menos do que outra “Revolução Colorida”, devidamente patrocinada pelo Ocidente por meio de sua OTAN, com o apoio das monarquias absolutistas do Golfo e de Israel. Sendo este o caso, nada teria de diferente de outros conflitos como a guerra contra a Líbia e contra o Iraque, Ucrânia e tantas outras, onde o protagonismo estadunidense, direto ou indireto, diz agir em nome da democracia e dos direitos humanos para conquistar posições econômicas e/ou geopolíticas vantajosas. É lamentável que uma jornalista que teve a coragem de denunciar a arbitrariedade de Jair Bolsonaro e os disparos de Whatsapp utilizados por ele para auferir vantagens eleitorais não seja capaz de perceber que as forças que agem na quebra de soberania no Oriente Médio são virtualmente as mesmas que o fazem na América Latina.
A matéria em questão apresenta Bashar al Assad como “Ditador” ignorando que, em 2014, a população que tinha condições de votar – ou seja, onde o governo podia organizar eleições, elegeu Bashar com maioria absoluta dentre ele e outros dois candidatos, em pleito auditado por diversos países – o que no mínimo deveria lançar dúvidas sobre a alegada “falta de lisura” mencionada na matéria. Noam Chomski, em seu livro “Manufacturing Consent” (“A Manipulação do Público”, na versão em português), denuncia largamente a prática de dois pesos e duas medidas por parte da mídia, na descrição de fatos ocorridos durantes conflitos em países inimigos e aliados dos EUA. Segundo o renomado pesquisador, inimigos dos EUA que estivessem promovendo eleições tinham a lisura do pleito questionada, enquanto que aos aliados os jornais estadunidenses ressaltavam o espírito democrático das populações que, mesmo durante guerra, saiam às ruas para exercer seu direito a voto. Enquanto Bashar recebe o rótulo de “Ditador”, líderes ocidentais encontram-se livremente com Mohamed Bin Sultan, o Monarca Absoluto da Arábia Saudita, acusado pessoalmente de ser mandante do assassinato de um jornalista na Turquia e responsável por um banho de sangue no Iêmen, fora seu próprio envio de jihadistas à Síria. Ou então Bibi Netanyahu, o eleito e reeleito líder conservador Israelense, que mantém a política de estado genocida contra as populações palestinas cativas, além de colecionar acusações de corrupção que ameaçavam-no colocá-lo na prisão, caso não tivesse ganho o último pleito. Sobre estes autoritários e corruptos e suas longas fichas corridas, a mídia não tem interesse em falar longamente, ainda que solte nota aqui ou ali para não ser acusada de parcial.
A mídia hegemônica ocidental não concedeu ao seu público o direito de conhecer o contraditório, no que concerne à sua opinião sobre a Síria. Os meios de comunicação ocidentais utilizaram – alguns ainda o fazem – por muitos anos apenas uma fonte de referência para a guerra na Síria: o Observatório Sírio de Direitos Humanos. Este era um escritório obscuro em uma cidadela no Reino Unido, formado por uma única pessoa, que recebia suas informações “do terreno” por celular e internet. Em matéria do The Guardian de 2012, o CEO do OSDH Rami Abdelrahman disse que os mortos de um dado incidente eram contabilizados por ele, pelos vídeos de testemunhas que recebia de seus aliados “rebeldes”. A ONU parou de utilizar esta organização como fonte de informação somente em 2014, três anos após o início da guerra – não mostrou mais o lado “rebelde”, mas também não foi à Síria buscar melhores informações, como poucos jornalistas fizeram, mesmo sendo isto possível.
Buscando se mostrar imparcial, a matéria da Folha menciona a “ampla documentação das atrocidades cometidas por todos os lados do conflito”, mas é o mais perto que chega de entender o que eram os chamados “rebeldes moderados sírios”. Certamente, não eram “manifestantes pacíficos”, como a matéria descreve o princípio dos conflitos, pois ninguém sai de passeatas pacíficas por melhores condições de vida e transformam pás e paus em armamento pesado de última geração – o armamento foi infiltrado na Síria, e há farta documentação sobre material bélico estadunidense nas mãos de todos os grupos que tentaram derrubar o regime na Síria, incluindo ISIS e Al Qaeda, com seus muitos nomes. Deserções do exército não foram suficientes para armar uma guerra daquelas proporções. Em diversas negociações envolvendo a diplomacia russa e a estadunidense, os EUA exigiam garantias de que “rebeldes moderados” deveriam ser poupados de ataques, enquanto que Rússia e Síria alegavam que não havia diferença entre os chamados “moderados” ou jihadistas extremistas da Al Qaeda ou do Estado Islâmico – fanatismo, prisões domiciliares, roubo e revenda de alimentos provenientes de ajuda internacional, execuções sumárias e degolamentos – foram as ações que fizeram a fama dos “rebeldes moderados”, fora o fato que diversos deles não eram sírios, mas sim provenientes das mais variadas partes do planeta: Turquia, Jordânia, Catar, Arábia Saudita, Europa, China. Ou seja, os “rebeldes” não eram sírios, tampouco moderados, mas sim um rebranding para “mercenários” jihadistas, devidamente treinados e armados pelo ocidente. A jornalista não passa nem perto de mencionar esta possibilidade como algo que mereça atenção, e com isso fortalece uma narrativa única.
Um outro ponto que chama a atenção é a insistência na derrota Síria, ainda que o governo tenha sido razoavelmente bem sucedido em manter seu território unificado – a perspectiva que a guerra trouxe para o fracionamento da Síria era muito pior. A jornalista parece desconhecer o fato de que os “25% do território” – uma boa parte de deserto inabitado, vale lembrar – sob domínio curdo foram reconquistados do Estado Islâmico graças principalmente à aliança entre russos e o exército sírio. O território, garantido até há pouco pelos EUA e depois Turquia, representam uma pilhagem no petróleo que pertence aos “60%” da nação que continuam ali, tentando reconstruir sua vida. Além do roubo do óleo, sanções econômicas impostas pelo ocidente afetam a obtenção de medicamentos, insumos agrícolas e industriais e muito mais. As sanções são um crime de guerra legalizado cometido à luz do dia com o consentimento das comunidades internacionais. A guerra econômica é, em muitos aspectos, pior do que a própria guerra das armas. Além disso, os problemas enfrentados pela Síria vem sendo agravados ainda mais pela distorcida visão humanitária da União Europeia, que só aceita apoiar a reconstrução da Síria mediante a troca de regime.
Por último, destaco o aspecto legalista que as novas ofensivas midiáticas vêm tomando em relação a tentar enfraquecer o regime sírio por qualquer flanco. Ao apontar que curdos representam 10% da população com 25% do território, a jornalista segue uma estratégia já tentada pelo Conselho Nacional Sírio no exterior de buscar provar – sem sucesso – que a parte “rebelde” que exige direitos controlam uma porcentagem do país que os tornariam legítimos do ponto de vista da legislação internacional, e que portanto seriam passíveis de maior suporte bélico. Esse legalismo é, no final, uma postura belicista, pois busca meios de fazer a guerra continuar, e não parar, como faz parecer sempre a narrativa liberal da mídia hegemônica.
Como filho de Sírios nascido no Brasil e como pesquisador que estudou como a mídia global reportou a guerra na Síria, é meu dever alertar que a mídia hegemônica se presta, dez anos depois, ao mesmo papel de arauto da guerra e de suas justificativas, levando seu posto de isenção cada vez mais ao descrédito. Os sírios que vivem na Síria têm o direito de viver em paz no seu território soberano. A midia pode e deve questionar qualquer político no mundo, mas deve fazê-lo com responsabilidade, de maneira equânime, fazendo a sua própria pesquisa ou fact checking em fontes primárias, e não importando visões de provedores de notícias sem questionar. A midia hegemônica teve papel fundamental na opinião pública e no suporte desta à guerra na Síria, mas pode buscar um pouco mais as outras versões, enriquecendo sua visão e a de seus leitores, sobre uma região tão sofrida e injustiçada pela história recente.
Babel Hajjar é Mestre em Ciências pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e autor da dissertação “Para ler a guerra na Síria: a construção do consenso na cobertura da mídia global” – https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100134/tde-20122016-213406/pt-br.php.
Só gostaria de lembrar da coincidência ou sincronia com a Globo News, que reprisou uma reportagem de 2015 não imparcial, tendenciosa, e como sempre, superficial sobre a guerra na Síria, no domingo passado, mesmo dia da matéria na Folha.
A Folha deveria abrir o espaço para esta réplica do prof. Hajjar ao artigo da jornalista Patrícia C. Mello.
O ponto essencial a discutir é a “Doutrina Rumsfeld-Cembrowski” (ver Thierry Meissan na Rede Voltaire) de destruição das estruturas estatais do Oriente Médio e de outras regiões propícias ao saque contínuo do imperialismo estadunidense.
Concordo Sérgio, se no Ocidente tivéssemos um jornalismo responsável, este artigo deveria estar na Folha de São Paulo como “Direito de resposta”.
Foi enviado à Folha e ainda não foi publicado.
De toda forma, estamos tentando a divulgação na mídia alternativa.
Está cada dia mais difícil ler os jornais. E o pior, você finaliza uma assinatura devido aos desmentidos apontados(que minaram a credibilidade), na esperança de contratar um de maior credibilidade, mais comprometido, porém, eis que sempre aparece um jornalista para inaugurar àquela fase de desconfiança.