Por Luciana Garcia de Oliveira*.
Após o movimento conhecido internacionalmente como “Primavera Árabe” em 2011, alguns países como o Egito vem então testemunhando uma crescente influência islâmica nas mais diversas esferas políticas e culturais nacionais. Mais ainda, logo após a destituição do então presidente Mohamed Morsi (2013), o Egito tornou-se um cenário fértil para as mais variadas demonstrações e discursos intolerantes e extremistas.
Foi em julho, deste ano que, um dos líderes da rede terrorista Al Qaeda, Al-Zawahiri divulgou uma mensagem de 15 minutos em alguns sites de tendência jihadista, afirmando que, o que ele denomina de “os cruzados” jamais irão permitir que seja então estabelecido plenamente o então almejado “Estado islâmico” no Egito, por isso, convocou os seus “soldados do Alcorão” para que disputem nessa “batalha”. Cabe ressaltar que a Al Qaeda nunca foi aliada do grupo Irmandade Muçulmana, mas foi nessas circunstâncias que a rede sentiu-se unida em uma causa comum.
Para se ter uma ideia do quanto essa perspectiva é assustadora, veja o que pode ser considerado como sendo a “maior herança da Primavera Árabe” para a Al Qaeda: Uma tragédia na Síria sem precedentes e com posições cada vez mais sectárias e violentas.
De acordo com a reportagem “A Al Qaeda não cai” publicado no site The Economist, “a perspectiva de derrubar Bashar Al Assad é uma atração para os jihadistas. Seu regime alauíta é uma abominação herética para os hiperortodoxos salafistas, dos quais a Al Qaeda obtém apoio. A inteligência ocidental pensa que a maior parte das milícias rebeldes da Síria hoje pode ser de jihadistas como milhares de combatentes de outros países muçulmanos e centenas da Europa, especialmente da Grã Bretanha, França e Holanda.
Porém, muito além da terrível situação na Síria e no Egito, são as mulheres uma das maiores vítimas dos grupos fundamentalistas emergentes, nesses casos de profunda instabilidade política e econômica. O caso egípcio, é um dos maiores exemplos de regressão aos direitos das mulheres, devidamente denunciado no polêmico artigo “Why do they hate us?” (Por que eles nos odeiam?), de autoria da jornalista egípcia Mona Eltahawy. A matéria ainda causa discórdia nas esferas mais conservadoras do mundo Árabe e Muçulmano e, inclusive ultrapassou as fronteiras egípcias, isso porque a primeira vista, a foto da matéria de capa chama a atenção: uma mulher nua, com uma pintura corporal que simula uma burqa preta (traje religioso utilizado pelas mulheres salafistas e obrigatório nas esferas públicas na Árabia Saudita).
Ao longo da matéria, no entanto, Eltahawy trás a baila uma série de denúncias de violações aos direitos humanos das mulheres de antes e durante a chamada “Primavera Árabe”, sob um enfoque político-cultural preliminar e, a fim de prevenir leitores, comentaristas e debatedores de não querer discutir à fundo os problemas enfrentados pelas mulheres árabes especificamente, principalmente no Egito, logo no início reafirma categoricamente: “Sim, as mulheres de todo o mundo tem problemas, sim, os Estados Unidos ainda tem que eleger uma mulher presidente, e sim, as mulheres continuam a ser desrespeitadas em muitos países ocidentais (eu vivo em um deles). É aí que a conversa geralmente termina quando você tenta discutir por que as sociedades árabes odeiam as mulheres”, afirma.
Nesse ínterim, Mona Eltahawy não se intimida em apontar as inúmeras violações aos direitos das mulheres árabes e muçulmanas. Para ela, muito embora a figura da mulher tenha sido desmistificada pelos meios de comunicação internacional, a qual passaram finalmente a retratar a mulher ao lado dos homens, nas manifestações de rua, ao contrário da figura absolutamente tolhida e submissa, muito comum nos meios de comunicações ocidentais, a jornalista não poupou em chamar a atenção para o que ela define de violações endêmicas na sociedade egípcia, de modo a evitar a exercer críticas de cunho islamofóbicas. Cabe ressaltar que Mona Eltahawy é uma das personalidades públicas que trabalham incessantemente contra a islamofobia nos Estados Unidos, sobretudo após os atentados em Nova York em 11 de setembro de 2011, foi inclusive pressa em nos Estados Unidos após manifestar-se contra algumas propagandas verdadeiramente racistas.
O artigo, originalmente publicado no renomado site Foreign Policy é datado em junho de 2012, mas continua incrivelmente atual, principalmente no que concerne aos problemas enfrentados pelas mulheres na esfera pública egípcia, saudita, iemenita, marroquina entre outras localidades. Para a articulista, parte expressiva da sociedade oriental limita a expressão da mulher sob justificativa de que determinadas atitudes e comportamentos sejam considerados proibidos em nome da blasfêmia. Muitos ainda se surpreendem ao constatar que um país, conhecido turisticamente pela sua laicidade como o Egito, ainda mantêm costumes pré-islâmicos, como a mutilação genital feminina e os chamados testes de virgindade que, alguns clérigos fazem questão de definir que sejam mantidos em nome da “modéstia”.
A mutilação feminina, a qual o clérigo Yusuf Al Qaradawi chama de circuncisão, de forma a equiparar a circuncisão masculina exercidas nos meninos que nascem em famílias tradicionais muçulmanas. Em um dos livros de Qaradawi, é afirmado claramente: “Eu, pessoalmente, apoio a prática da circuncisão no mundo moderno. Quem pensa que circuncisão é a melhor maneira de proteger suas filhas devem fazê-lo, para reduzir a tentação”.
Muito embora o Egito tenha banido formalmente a prática em 2008, alguns legisladores da Irmandade Muçulmana se opuseram a legislação que proíbe a prática, de forma a manter o costume em muitas casas egípcias, de forma clandestina, levando à muitas meninas à óbito por infecção generalizada, decorrente da falta de higiene desses instrumentos cortantes.
Esses mesmos clérigos por diversas vezes, em nome do que eles definem como sendo a verdadeira religião, são considerados como porta vozes e defendem comportamentos considerados abomináveis, isso porque além da questão da mutilação feminina, autorizam em muitas mesquitas o marido a espancar a mulher, quando houver “boas intenções”, de modo “não severo” em qualquer parte do corpo da mulher, com exceção do rosto.
Tais “guardiões da modéstia”, da mesma forma, dão legitimidade aos casamentos prematuros, também sob a justificativa de que o profeta Mohamed havia se casado com a sua segunda esposa quando ela era ainda uma criança. O resultado disso pode ser constatado em uma série de violações aos direitos das meninas, muitas delas com traumas permanentes e com sequelas físicas incuráveis.
A atual crise e instabilidade econômica em muitos países árabes, sobretudo no Egito, impedem que muitos homens possa se casar, essa situação, segundo Eltahawy fomenta para o descontrole masculino, pois diante do grande número de estupros nos espaços públicos, ruas e praças públicas, pode ser constatado que são os “homens que não se controlam”. O que de fato gera uma pressão social para que, cada vez mais, as mulheres tenham que andarem cobertas, mesmo sem nunca ter tido esse costume. De acordo com o Egypcian Center for Women’s Rigths, cerca de 80 % das mulheres já foram assediadas sexualmente uma vez na vida.
O lugar da mulher ainda esta muito atrás do que deveria ser, desde a ascensão das primeiras manifestações de rua na Tunísia, no final de 2010, os meios de comunicação internacional elegeram de maneira sistemática que o grande mártir da revolução seria Bouazizi, o rapaz que se auto emulou após ter a sua banca de frutas apreendida pela polícia. Esses mesmos veículos de comunicação esqueceram de muitas outras histórias ocorridas antes da chamada “Primavera Árabe”, como a de Amina Filali, uma garota marroquina de 16 anos de idade que ingeriu veneno após ser forçada pela sua família a se casar com o seu estuprador. “Essa é a nossa Bouazizi”, afirma Mona.
Nenhuma revolução árabe será plena quando não houver mudanças drásticas do ponto de vista cultural, e principalmente quando os homens continuarem a desrespeitar demasiadamente aos direitos das mulheres. No mais, todas as trocas governamentais não passarão de medidas burocráticas, sem mudanças consistentes, como já se dizia, serão atingidos sempre “mais dos mesmos”.
*Luciana Garcia de Oliveira integra o Grupo de Trabalho sobre o Oriente Médio e o Mundo Muçulmano do Laboratório de Estudos sobre a Ásia da Universidade de São Paulo (LEA-USP).