Por que a Europa corteja a Revolução? 

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Does Angela Merkel deserve a musical like Alexander Hamilton? - The National

2/11/2020, Alistair Crooke, Strategic Culture Foundation
https://www.strategic-culture.org/news/2020/11/02/why-is-europe-courting-revolution/

Todos os olhos permanecem fixos na eleição nos EUA, e a imaginação voa e fantasia sobre as consequências. Mas à sombra de “A Eleição”, há outras ‘partes móveis’: a Alemanha acaba de oferecer a Washington ‘um acordo de compadres’ pelo qual a Europa – sob liderança alemã – aceitaria alavancar a estratégia de pleno espectro dos EUA, para isolar e enfraquecer Rússia e China. Em troca, pede que os EUA aceitem que a Alemanha lidere uma entidade europeia de ‘poder político’, elevada ao mesmo nível dos EUA. Dito claramente, é a Alemanha posicionando-se como ‘superpotência’ no comando de uma União Europeia ‘imperial’, para a nova era. Putin já antevira a possibilidade de a Alemanha aspirar ao status de superpotência, há  poucos dias, em recente pronunciamento no Clube Valdai.

Mas as outras ‘partes móveis’ dessa aposta estão também em forte movimento: Primeiro, a trama alemã depende de Biden vencer, o que pode acontecer, ou não. E também o presidente Macron aspira, para ele mesmo e para a França, à liderança europeia – a qual, por sua vez – pelo menos em parte – depende de acontecer um ‘Brexit não’ no final do ano, o que enfraqueceria ainda mais uma Merkel desanimada e em processo de apagamento. A França, por sua vez, confabula para inventar o ‘Grande Reset’ da Europa: um ‘espaço’ regulatório e valores ‘reforçados’, apoiado em regime comum, fiscal e relacionado à dívida, que reconstruiria a infraestrutura econômica da França.

Tudo isso levanta muitas questões: no caso de vitória de Trump, deve-se esperar que se esvazie qualquer ambição alemã (ou francesa), que drenaria parte do poder dos EUA, por mais que a primeira-ministra alemã ‘disfarce’ esse risco, como se não implicasse os EUA perderem poder, mas ganharem “um parceiro poderoso, em pés de igualdade”. Ah, sim, sim.

A ideia de que a Europa possa alavancar essa parceria com ‘conversa mole’ sobre o compromisso da Alemanha “com o sistema ocidental de valores”, cuja “inteireza” estaria ameaçada, e o qual só permaneceria forte com Alemanha e EUA unidos – parece-me delírio. Mesmo que a coisa venha com cobertura adocicada de defesa “contra a implacável sede russa de poder e as ambições chinesas de supremacia global”. Primeiro, que ainda há Trump; segundo, que China e Rússia veem claramente o jogo todo. Mesmo assim, líderes europeus parecem esperar que Trump lá ficará, como se nada estivesse acontecendo.

Annegret Kramp-Karrenbauer (ministra da Defesa e presidente da União Democrata Cristã, partido de Merkel) parece pensar assim. Em matéria de conter “o capitalismo de Estado agressivamente controlado da China”, ela sugere criar uma esfera comercial europeia aberta só aos que desejam reforçar e apoiar a ordem liberal baseada em regras – e à qual outros estados teriam de se ‘submeter’ (palavras de Macron).
Essa é a estrutura do que Bruxelas propõe para alcançar ‘autonomia estratégica’ (expressão de Charles Michel, atual presidente do Conselho Europeu).

Aqui, adiante, alguns excertos do ‘acordo’, proposto por Annegret Kramp-Karrenbauer, em pronunciamento dia 23 de outubro:


“… Sobretudo, a América deu-nos o que chamamos “Westbindung” [“Orientação para o Ocidente”] (…) Westbindung, para mim, é e continua a ser clara rejeição à tentação histórica da equidistância. Westbindung ancora-nos firmemente à OTAN e à UE e liga-nos estreitamente a Washington, Bruxelas, Paris e Londres.

Posiciona-nos clara e corretamente contra uma fixação romântica à Rússia – e contra um Estado corporativo não liberal que rejeita partidos e parlamentos [isto é, a China] … Westbindung é a resposta à famosa “Questão Alemã”, a questão de saber o que a Alemanha representa.

Só a América e a Europa juntas podem manter o Ocidente forte, defendendo-o contra a implacável sede russa de poder e as ambições chinesas de supremacia global… Ser o doador [num processo de ‘dar e receber com os EUA] exige assumamos firme posição política de poder. Que joguemos de forma ambiciosa o jogo geopolítico.

Mas mesmo vendo tudo isto, ainda há norte-americanos que não estão convencidos de que precisam da OTAN. Compreendo isso. Porque ainda falta uma coisa: que os europeus tomem eles próprios medidas poderosas, quando se trata de forçar a marcha adiante. Para que os Estados Unidos possam ver a Europa como parceira forte em condições de igualdade, e não como donzela em apuros. Assim se pode ver: o dilema alemão é também um dilema europeu.

Continuamos dependentes [dos Estados Unidos], mas ao mesmo tempo, temos de ser nós mesmos. Ao reforçar a Europa dessa forma, a Alemanha deve desempenhar um papel fundamental … permitindo-lhe operar de forma mais independente e ao mesmo tempo mais próxima dos Estados Unidos.”

Aqui se cruzam três grandes questões geopolíticas. Primeiro, que a Alemanha propõe uma autometamorfose política, de modo preocupantemente semelhante à transição pela qual passou no cenário europeu pré-1ª Guerra Mundial. Em resumo, a ‘Questão Alemã’, sim, está voltando à tona (mas não à moda Annegret Kramp-Karrenbauer).

Quando o Muro de Berlim caiu, a Rússia apoiou a reunificação da Alemanha e investiu suas esperanças na Alemanha, vista como parceira para um projeto mais amplo de unificação: a construção de uma ‘Grande Europa’.

Logo as esperanças russas provaram-se quiméricas: a Alemanha, longe de apoiar a inclusão da Rússia, favoreceu a expansão da Europa e da OTAN para cada vez mais perto das fronteiras da Rússia. A União Europeia – pressionada pelos EUA – estava formando uma ‘Grande Europa’ que eventualmente incluiria todos os estados da Europa, exceto a Rússia.

Mas ao fazê-lo, a Europa Ocidental absorveu na União Europeia o tumor da neuralgia anti-Rússia da Europa Oriental. Berlin, enquanto isso, jogava com a visceral hostilidade dos EUA contra a Rússia – mais como ferramenta para fazer avançar seu espaço europeu para cada vez mais perto da fronteira russa. A Alemanha portanto priorizou reforçar as antigas antipatias do leste europeu, acima de qualquer real tentativa de construir um relacionamento com a Rússia.

Agora a Alemanha quer ‘tocar outra vez’ a velha partitura. Em entrevista em julho, Annegret Kramp-Karrenbauer disse que a liderança russa deve ser “confrontada com posição bem clara: estamos bem fortificados, e em caso de dúvida, prontos para nos defender. Vemos o que a Rússia está fazendo, e não deixaremos que a liderança russa se safe.”

Porém… ‘Me engane uma vez, ok. Mas… duas vezes?!’ O evento Navalny foi a gota d’água. Foi descarada mentira. Merkel e Macron sempre souberam que é mentira. E sabiam que Moscou também sabia da mentira. Mesmo assim, a dupla optou por jogar aos russófobos, mais esse ‘osso’. Moscou cansou-se deles.

O verdadeiro enigma a decifrar é por que Moscou deixou a cena durar tanto tempo. A resposta talvez esteja na águia russa de duas cabeças, que olham em direções opostas: uma olha para a Europa; a outra, para a Ásia. A encenação que Merkel tenta é óbvia, e está distendendo demais e testando além da conta a confiança social na Rússia. As elites russas até podem tender na direção da Europa, mas as bases olham para o Oriente. Navalny foi a humilhante gota d’água que fez transbordar a taça.

Agora Macron – ainda energizado, mas pessoalmente enfraquecido, em termos políticos – espera conseguir drenar ainda mais a força de Merkel (em termos mercantilistas), mediante alguma engenharia de alguma via ‘não Brexit’, que abale o vasto superávit da Alemanha na relação com a Grã-Bretanha, e bem na hora em que a Alemanha está perdendo mercados na Rússia (e agora, possivelmente, também na China); e quando os EUA, se Trump for reeleito, provavelmente embarcarão numa guerra comercial contra a Europa.

O objetivo é enfraquecer a mão de Merkel, – vale dizer – ao se opor a um instrumento europeu de dívida conjunta, somado a políticas fiscais comuns, de tal modo que a França consiga utilizar os recursos fiscais alemães postos num ‘pote comum’, para empregá-los numa renovação da economia francesa.

O plano de Bruxelas para um ‘Grande Reset’ – transformar a economia europeia e a esfera social mediante automação e tecnologia – é delirante, como Tom Luongo observou: “Para mim são bem claramente delirantes as ideias europeias de que poderiam subjugar o mundo sob sua rubrica, impondo-se ao resto de nós, à força, inclusive à China, permitindo que os EUA ajam como seus procuradores [ao mesmo tempo em que a Europa] tenta manter a própria posição ‘política e de poder’.”

Por quê?

‘Delirantes’ porque, apesar de a China talvez ser “capitalismo de estado agressivamente controlado”, no jargão europeu, é também grande ‘estado civilizacional’, com seus próprios distintos valores. Bruxelas pode declarar ‘aberto’ o seu espaço regulatório, mas é espaço claramente de exclusão, não é multilateral. A ação dessa política só faz empurrar o mundo para duas distintas esferas de regulação – e para recessão sempre mais profunda.

No plano prático, se a primeira onda da pandemia Covid-19 de modo geral reforçou a posição dos atuais governos europeus, a segunda onda em curso hoje está reduzindo a frangalhos o apoio aos governos hoje no poder. Protestos e tumultos crescem por toda a Europa. Episódios de violência vistos com horror pelas autoridades, que suspeitam que o crime organizado e grupos radicais estejam em ação para provocar incêndios políticos. E com alto potencial de sucesso.

Ao desemprego estrutural já observado durante a primeira onda, agora se somam novas possibilidades de desemprego possivelmente irreversível, (outra vez) no setor de serviços. Para os pequenos negócios e os trabalhadores ‘autônomos’, o pesadelo já começou. Não surpreendentemente, o medo cresce conforme os que perdem até as mais mínimas condições de sobrevivência veem que os funcionários do governo e a classe média em geral estão atravessando o momento atual praticamente sem arranhões.

Os governos europeus foram apanhados no contrapé. Reina a mais absoluta confusão, com governos tentando manter viva a economia e manter os doentes longe dos hospitais superlotados – e evidentemente sem conseguir nem uma coisa, nem outra. Eis o custo da ‘abertura de verão’, para salvar a temporada. Ninguém mais permanece em casa à noite, batendo panelas, em solidariedade comunitária. Hoje, os batedores de panela foram substituídos por massas que protestam e tumultuam as cidades.

Nessa fúria rampante instalou-se a suspeita. Para alguns, a pandemia seria pura conspiração; para outros, não. Seja como for, nada há de ‘conspiratório’ em crer que governos europeus podem ter usado a pandemia para reforçar as ferramentas de controle social (apesar de o “distanciamento” ser estratégia genuína para conter o contágio).

Mas teria sido acertado, assim, já se antecipando às mudanças implícitas no ‘Grande Reset’? Não sabemos. Mas, sim, desde o primeiro dia os governos ocidentais trataram suas medidas sanitárias como ‘guerra’ – e, em guerra, exigiram-se medidas econômicas coordenadas pelo estado; e povo forçado, também pelo estado, a obedecer.

Certa ou errada, já vivemos sob uma cultura da guerra. A ira já tinge as ruas dos EUA. Mais uma vez, crescem sombrias suspeitas de que a vida cultural esteja sendo fechada, para preparar os europeus para o naufrágio da própria identidade cultural, tudo já se misturando num grande cadinho aquecido por Bruxelas. Esses medos podem ser exagerados, ou fora de lugar, mas ‘estão aí’. E são virais.

O que está em jogo é o próprio tecido político e a própria coesão societal da Europa –, e os líderes não estão apenas confusos: estão com medo.

Será, sim, delírio, arrogância e húbris, portanto, se os líderes europeus insistirem no ‘Grande Reset’, tudo automatizado, que fará aumentar ainda mais o desemprego estrutural, que já ameaça explodir sob o próprio peso, em protestos de massa. Como assim? Querem uma revolução?

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