23/12/2017, Pepe Escobar, Rússia Insider
A nova Estratégia de Segurança Nacional (ing.), ESN, “América em primeiro lugar”, 55 páginas, redigida ao longo de 2017, define Rússia e China como potências “revisionistas”, “rivais” e, para todas as finalidades práticas, concorrentes estratégicos dos EUA.
A ESN fica a um passo de definir Rússia e China como inimigas, deixando espaço para “tentativa de construir uma grande parceria com esses e outros países.” Mas Pequim é qualificada como “temerária” e “irracional”. Quanto ao Kremlin, anota-se seu “caráter imperialista” e “desinteresse por mundo multipolar”. O Irã, como era de esperar, é descrito na ESN como “o mais significativo estado patrocinador de terrorismo do mundo”.
Rússia, China e Irã, não por acaso, são os três motores e agitadores chaves do processo geopolítico e geoeconômico de integração da Eurásia, hoje em curso.
A ESN pode sem dúvida ser vista como resposta ao que aconteceu na B cúpula dos países BRICS [atualmente “países RICS”, agora que a CIA promoveu e mantém no Brasil o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff e deu posse ao vice-presidente Temer, usurpador (NTs)] em Xiamen em setembro passado. Ali, o presidente Vladimir Putin insistiu nas “preocupações dos países (B)RIC ante a injustiça da arquitetura financeira e econômica global, que não leva na devida conta o crescente peso relativo das economias emergentes,” e reforçou a importância de “superar a dominação excessiva por número limitado de moedas de reserva.”
Foi clara referência ao EUA-dólar, que responde por quase 2/3 do total das moedas de reserva em todo o mundo e ainda é o marco que determina o preço da energia e de matérias primas estratégicas.
E isso nos leva ao segredo ocultado no coração da ESN-EUA: a “ameaça” que Rússia-China fazem ao EUA-dólar.
CIPS e SWIFT cara a cara
O website do Sistema de Câmbio e Comércio Externo da China [ing. China Foreign Exchange Trade System (CFETS) anunciou recentemente o estabelecimento de um sistema de pagamento yuan-rublo, sinalizando que sistemas semelhantes para outras moedas que participam das Novas Rotas da Seda, também chamadas Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE [ing. Belt and Road Initiative (BRI)], estarão em funcionamento em futuro próximo.
Crucialmente importante, não se trata de reduzir o risco-moeda. Afinal, Rússia e China comerciam crescentemente em termos bilaterais nas respectivas moedas, já desde as sanções que EUA impuseram à Rússia em 2014. Trata-se, sim, de implementar uma vasta, crescente nova zona de moeda de reserva alternativa, que deixe de lado o EUA-dólar.
A decisão vem na sequência do estabelecimento por Pequim, em outubro de 2015, do Sistema Internacional de Pagamentos da China [ing. China International Payments System (CIPS)]. O sistema CIPS mantém acordo de cooperação com o sistema privado internacional de compensações interbancárias com sede na Bélgica, SWIFT, pelo qual têm de passar virtualmente todas as transações globais.
O que interessa nesse caso é que Pequim – assim como Moscou – claramente leram e decifraram a mensagem quando, em 2012, Washington pressionou o sistema SWIFT; bloqueou todas as compensações de todos os bancos iranianos; e congelou $100 bilhões de ativos do Irã no exterior, além do potencial de Teerã para exportar petróleo. No caso de Washington decidir aplicar sanções à China, a compensação bancária através do sistema CIPS funciona como mecanismo de fato para furar as sanções.
Em março passado, o banco central da Rússia inaugurou seu primeiro escritório em Pequim. Moscou está lançando sua primeira venda de títulos do Estado, $1 bilhão de títulos denominados em yuan. Moscou já deixou bem claro que está comprometida com uma estratégia de longo prazo para deixar de usar o EUA-dólar como principal moeda no comércio global, encaminhando-se, ao lado de Pequim, rumo ao que bem se pode chamar de sistema de câmbio pós-Bretton Woods.
O ouro é essencial nessa estratégia. Rússia, China, Índia, Brasil & África do Sul são todos grandes produtores ou consumidores, ou ambos, de ouro. Acompanhando o que foi extensamente discutido nas reuniões de cúpula do grupo desde o início da década dos 2010s, os países (B)RICS passam a focar o comércio de ouro físico.
Mercados como o COMEX atualmente comerciam derivativos em ouro sobre base de quantidade insignificante de ouro físico. Os grandes produtores (B)RICS de ouro – especialmente a parceria Rússia-China – planejam vir a ter peso extra na definição dos preços globais do ouro.
O dossiê de explosiva carga política
Questões inabordáveis referentes ao EUA-dólar como principal moeda de reserva vêm sendo discutidas nos mais altos escalões do banco JP Morgan há, pelo menos, cinco anos. Não há dossiê de carga política mais explosiva. A nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA passa atentamente bem longe dele.
O jogo ainda se trava em torno no sistema do petrodólar; desde o ano passado, o que antes fora acordo chave informal e secreto entre os EUA e a Casa de Saud, entrou firmemente no domínio público.
Não há combatente no Hindu Kush que não conheça o modo como virtualmente todas as mercadorias têm de ser negociadas em EUA-dólares, e como esses petrodólares são reciclados e convertidos em papéis do Tesouro dos EUA. Por esse mecanismo, Washington acumula dívida de estonteantes $20 trilhões – que não para de crescer.
Vastas populações em toda a região do Oriente Médio e Norte da África [ing. Middle East-Northern Africa, MENA) também viram o que aconteceu quando Saddam Hussein do Iraque resolveu vender petróleo em euros; ou quando Muammar Gaddafi planejou lançar um dinar-ouro pan-africano.
Mas agora quem está entrando na dança é a China, seguindo estritamente planos construídos há cinco anos, em 2012. E o nome do jogo é vender petróleo-futuros denominados em yuan, com o yuan integralmente conversível em ouro nos mercados de câmbio de Xangai e Hong Kong.
A Bolsa de Futuros de Xangai, e sua subsidiária Bolsa de Câmbio Internacional de Energia [ing. Shanghai International Energy Exchange, INE] já fizeram quatro testes em ambiente de produção para petro-futuros. O início das operação está previsto para o final de 2017, mas mesmo que comecem no início de 2018 os fundamentos são bem claros: esse ganha-ganha-ganha (petróleo/yuan/ouro) ultrapassa e descarta completamente o EUA-dólar. A era do petroyuan está aí, ao alcance da mão.
Claro, há questões a resolver, de como Pequim administrará tecnicamente para estabelecer uma marca rival do Brent e West Texas Intermediate (WTI),[1] ou se será influenciada pelo controle chinês sobre o capital. Pequim tem sido muito discreta sobre o ganha-ganha-ganha; o petroyuan não foi mencionado sequer nos documentos da Comissão de Desenvolvimento Nacional e Reforma depois do 19º Congresso do PCC, em outubro passado.
Certo é que os países (B)RICS apoiaram o movimento do petroyuan na reunião de cúpula em Xiamen, como diplomatas confirmaram a Asia Times. Venezuela também já embarcou. É crucial ter em mente que a R Rússia é número dois, e a Venezuela é número sete dentre os dez maiores produtores de petróleo no mundo. Considerando o impulso da economia chinesa, poderão em breve ver chegar outros produtores.
Yao Wei, chinês e economista chefe na Societé Generale em Paris, vai diretamente ao ponto, observando como “esse contrato tem potencial para ajudar muito o movimento da China com vistas a internacionalizar o yuan.”
Riquezas ocultas do “cinturão” e “estrada”
Extensa matéria publicada em DBS em Singapura toca praticamente todas as notas certas, ao aproximar a internacionalização do yuan e a expansão da Iniciativa Cinturão e Estrada.
Em 2018, seis grandes projetos da ICE estarão em pleno funcionamento: a ferrovia de alta velocidade Jakarta-Bandung; a ferrovia China-Laos; a ferrovia Addis Ababa-Djibouti; a ferrovia Hungria-Sérvia; o projeto da Entrada de Melaka [ing. Melaka Gateway] na Malásia; e a ampliação do porto de Gwadar no Paquistão.
O HSBC estima que ICE como um todo gerará um adicional gigante de comércio novo, com potencial para mudar o jogo, de $2,5 trilhões ao ano.
É importante ter em mente que a parte “cinturão” na ICE deve ser vista como uma série de corredores que conectam a China Oriental com regiões ricas em petróleo/gás na Ásia Central, e o Oriente Médio; e as “estradas” logo serão desdobradas por ferrovias de alta velocidade que atravessarão regiões riquíssimas em – e o que poderia ser? – ouro ainda não extraído.
Um determinante chave para o futuro do petroyuan é o que fará a Casa de Saud. Se o príncipe coroado – e inevitável futuro rei – MBS optar por seguir a orientação dos russos, e chamar a coisa de “mudança de paradigma”, será a subavaliação do século.
Contratos de ouro denominados em yuan serão negociados não só em Xangai e Hong Kong mas também em Dubai. A Arábia Saudita considera também emitir os chamados Panda bonds, seguindo o Emirado de Sharjah posicionado para assumir a liderança no Oriente Médio para os papéis chineses interbancos.
Claro que o prelúdio do Dia D será quando a Casa de Saud anunciar oficialmente que aceitará yuan como pagamento de, pelo menos, parte de suas exportações para a China.
Seguidor da escola austríaca de economia avalia corretamente que, para nações produtoras de petróleo, preços mais altos em dólares para o petróleo não são tão importantes quanto a fatia de mercado: “Cada vez mais são capazes de escolher em que moeda desejam negociar.”
O que é claro é que a Casa de Saud simplesmente não pode descartar a China, um de seus principais compradores; Pequim portanto ditará os termos futuros. Pode significar pressão extra a favor da participação chinesa na venda pública de ações da Aramco. Paralelamente, Riad abraçar o petroyuan seria, para Washington, a linha vermelha mãe das linhas vermelhas.
Relatório europeu independente aponta para a carta que pode ser o principal trunfo dos chineses: “autorização pela Arábia Saudita para emissão de papéis do Tesouro em yuan”, criação de um fundo de investimentos saudita e a compra de 5% das ações da Aramco.
Nações objeto de sanções pelos EUA, como Rússia, Irã e Venezuela, estarão entre as primeiras a abraçar o petroyuan. Pequenos produtores como Angola e Nigéria já vendem petróleo/gás para a China, em yuan.
E se você não exporta petróleo, mas é parte da ICE, como o Paquistão, o mínimo que pode fazer é substituir o EUA-dólar no comércio bilateral, como efetivamente já está avaliando o ministro do Interior Ahsan Iqbal.
Fator chave do coração geoeconômico do mundo que se afasta do ocidente e toma o rumo da Ásia é que, no início da próxima década, o petroyuan e o comércio que deixará à margem o EUA-dólar serão fatos em campo em toda a Eurásia.
A nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA, por seu lado, promete preservar “a paz mediante o poder”. Dado que Washington atualmente mantém nada menos que 291 mil soldados em 183 países, e enviou agentes de Operações Especiais para nada menos que 149 nações só no ano de 2017, difícil convencer alguém de que os EUA estejam “em paz” – sobretudo quando a ESN insiste em canalizar quantidade ainda maior de recursos para o complexo militar-industrial.
Rússia e China “revisionistas” cometeram pecado imperdoável: concluíram que inflar o orçamento militar dos EUA mediante compra ininterrupta de papéis dos EUA, o que permite que o Tesouro financie um déficit multi-trilionário sem subir a taxa de juros, é proposta insustentável para o Sul Global. A “ameaça” – no quadro dos (B)RICS e também da Organização de Cooperação de Xangai, que inclui Irã e Turquia como membros aspirantes – está em cada vez mais aumentarem o comércio bilateral e multilateral, com vistas a excluir completamente o EUA-dólar.
Nada estará concluído antes que a dama gorda (dourada) cante. Quando o começo do fim do sistema do petrodólar – que Kissinger, mancomunado com a Casa de Saud, estabeleceu em 1974 – converter-se em fato em campo, todos os olhos estarão focados no contragolpe que virá da ESN.
Traduzido por Vila Vudu