Ignorando os obstáculos ocidentais, os ambiciosos projetos de conectividade eurasiana capitaneados por China e Rússia vêm para o Grande Interior Asiático
Por Pepe Escobar, para o The Craddle
SAMARCANDA – Interconectar o Grande Interior da Eurásia é um exercício de equilíbrio taoísta: juntar as peças uma a uma, pacientemente, até formar um gigantesco quebra-cabeça. O que exige tempo, habilidade, visão e, é claro, grandes avanços.
Uma peça-chave foi recentemente acrescentada ao quebra-cabeça, no Uzbequistão, fortalecendo os vínculos entre a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) e o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul de Transporte (CITNS).
O governo Mirzoyoyev, em Tashkent, está extremamente interessado em turbinar ao máximo um outro corredor de transporte centro-asiático: a ferrovia China-Quirguistão-Uzbequistão-Afeganistão.
Esse foi o assunto central tratado em uma reunião entre o presidente do conselho da Temir Yullari – a rede ferroviária nacional uzbeque – e seus colegas do Quirguistão e do Afeganistão, e também de gestores da empresa de logística do Corredor Chinês de Wakhan.
Em termos da complexa intersecção de Xinjiang com a Ásia Central e do Sul, nada poderia ser mais inovador, como parte do que eu chamo de a Guerra dos Corredores Econômicos.
Os uzbeques, pragmaticamente, já veem o novo corredor como essencial para o transporte de carga a baixas tarifas – mas a questão vai muito além de meros cálculos comerciais.
Imaginem, na prática, containers de carga vindo de trem de Kashgar, em Xinjiang, até Osh, no Quirguistão e então seguindo para Hairatan, no Afeganistão. Planeja-se que o volume anual chegue a 60.000 containers só no primeiro ano.
Isso seria de importância crucial para o desenvolvimento do comércio produtivo do Afeganistão – diferente da “obsessão por ajuda” da ocupação dos Estados Unidos. Produtos afegãos, finalmente, poderão ser facilmente exportados para seus vizinhos da Ásia Central e também para a China, chegando a, por exemplo, o efervescente mercado de Kashgar.
E esse fator estabilizador contribuiria para os cofres do Talibã, agora que os governantes de Cabul estão se mostrando muito interessados na compra de petróleo, gás e trigo russos com descontos altamente atraentes.
Como trazer o Afeganistão de volta para o jogo
Há também a possibilidade de derivar dessa ferrovia um outro projeto viário que atravessaria o ultra estratégico corredor de Wakhan – algo que Pequim já vem contemplando há alguns anos.
O Wakhan é compartilhado pelo Norte do Afeganistão e pela Região Autônoma de Gorno-Badakhshan do Tajiquistão: uma longa, desértica e espetacular faixa geológica que avança até Xinjiang.A estas alturas já ficou claro, não apenas para Cabul, mas também para os membros da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) que os humilhados americanos não irão restituir os bilhões de dólares confiscados das reservas do Banco Central Afegão – soma que ao menos mitigaria a terrível crise econômica e a fome que ameaça o país.
Então, o Plano B é fortalecer as cadeias de fornecimento e comércio do Afeganistão, atualmente devastadas. A Rússia será encarregada da segurança de todas as encruzilhadas Centro-Sul-Asiáticas. A China entrará com o grosso dos financiamentos. E é aí que se encaixa a ferrovia China-Quirguistão-Uzbequistão.
A China vê uma estrada atravessando o Wakhan – uma proposta extremamente complicada – como mais um corredor da ICR, ligando a rodovia Pamir, recentemente repavimentada pela China, no Tajiquistão, às estradas do Quirguistão reconstruídas também pela China.
O Exército Popular de Libertação (EPL) já construiu 80 km de estradas de acesso ligando o trecho chinês da Rodovia Karakoram – antes de ela chegar à fronteira paquistanesa – a um passo de montanha no Wakhan, atualmente só acessível a carros e jipes.
A próxima providência chinesa será avançar mais 450 quilômetros ao longo daquela estrada, chegando a Fayzabad, a capital da província afegã de Badakhshan. Esse seria o corredor paralelo de reserva à ferrovia China-Ásia Central-Afeganistão.
O ponto principal é que os chineses, tanto quanto os uzbeques, entendem perfeitamente a localização extremamente estratégica do Afeganistão: não apenas por o país estar situado uma encruzilhada entre a Ásia Central e do Sul, conectando os principais portos oceânicos do Paquistão e o Irã (Karachi, Gwadar, Chabahar) e o Mar Cáspio via Turcomenistão, mas também ajudando o Uzbequistão, que não tem acesso ao mar, a se conectar com os mercados da Ásia do Sul.
Tudo isso é parte do labirinto de corredores da ICR e, ao mesmo tempo, se interliga com o CITNS devido ao importante papel do Irã (por seu lado cada vez mais ligado à Rússia).
Teerã já está engajada na construção de uma ferrovia levando a Herat, ao oeste do Afeganistão (a estrada já foi reconstruída). Teremos então o Afeganistão conectado tanto à ICR (como parte do Corredor Econômico China-Paquistão (CECP) e ao CITNS, dando impulso a mais um projeto: uma ferrovia Turcomenistão-Afeganistão-Tajiquistão (TAT), a se conectar com o Irã e, portanto, com o CITNS.
Do Karakoram ao Pakafuz
A rodovia Karakoram – cujo trecho norte foi reconstruído pelos chineses – poderá, mais cedo ou mais tarde, ganhar uma ferrovia irmã. Os chineses vêm pensando nisso desde 2014.
Até 2016, uma ferrovia indo da fronteira China-Paquistão a Gilgit, nas regiões mais ao norte, e em seguida descendo para Peshawar, foi incluída no projeto do Corredor Econômico China–Paquistão (CECP). Mas então nada aconteceu: a ferrovia não está incluída no Plano de Longo Prazo 2017-2030 do CECP.
Isso talvez venha a ocorrer na próxima década: a engenharia e a logística são um imenso desafio, como aconteceu com a construção da rodovia Karakoram.
E então há o ângulo do “siga o dinheiro”. Os dois maiores bancos chineses que participam do financiamento dos projetos da ICR – e portanto também do CECP – são o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco Importações/Exportações. Mesmo antes da pandemia de covid eles já vinham reduzindo seus empréstimos. E com a pandemia, eles agora têm que equilibrar projetos estrangeiros com empréstimos à economia chinesa.
A conectividade prioritária passou a ser a ferrovia Paquistão-Afeganistão-Uzbequistão (Pakafuz).
O principal trecho da Pakafuz liga Peshawar (a capital das áreas tribais) a Cabul. Quando ela for concluída, veremos a Pakafuz interagindo diretamente com a futura ferrovia China-Ásia Central-Afeganistão: uma nova rede da ICR diretamente conectada com o CITNS.
Todos os desdobramentos descritos acima revelam sua verdadeira complexidade quando vemos que eles se inserem simultaneamente na interação da ICR com o CITNS e na harmonização entre a ICR e a União Econômica Eurasiana (UEEA).
Essencialmente, em termos geopolíticos e geoeconômicos, a relação entre os projetos da ICR e da UEEA permite que a Rússia e a China cooperem através da Eurásia e ao mesmo tempo evitem uma corrida pela conquista da posição dominante no Grande Interior Eurasiático.
Por exemplo, tanto Pequim quanto Moscou concordam quanto à suprema necessidade de estabilizar o Afeganistão e ajudar aquele país a manter uma economia sustentável.
Paralelamente, alguns membros importantes da ICR – como o Uzbequistão – não são membros da UEEA, o que é compensado por sua participação na OCX. Ao mesmo tempo, a entente BRI-UEEA facilita a cooperação econômica entre membros da UEEA, como o Quirguistão e a China.
Pequim conseguiu a plena aprovação de Moscou para seus investimentos em Belarus, Cazaquistão, Quirguistão e Armênia, todos membros da UEEA. Uma futura moeda ou cesta de moedas visando a tornar desnecessário o dólar americano vem sendo discutida pela UEEA – chefiada por Sergei Glazyev – e pela China.
A China foca a Ásia Central e Ocidental
Não há dúvida de que a guerra por procuração na Ucrânia entre os Estados Unidos e a Rússia vem criando graves problemas para a expansão da ICR. Afinal, a guerra dos Estados Unidos contra a Rússia é uma guerra contra a ICR.
Os três principais corredores da ICR de Xinjiang à Europa são a Nova Ponte Terrestre Eurasiana, o Corredor Econômico China-Ásia Central-Ásia Ocidental e o Corredor Econômico China-Rússia-Mongólia.
A Nova Ponte Terrestre Eurasiana usa a Transiberiana e uma segunda ligação passando por Xinjiang-Cazaquistão (via o porto de terra seca de Khorgos), seguindo então para a Rússia. O corredor via Mongólia é, na verdade, dois corredores: um indo de Pequim-Tianjin-Hebei à Mongólia Interior e seguindo para a Rússia, e o outro indo de Dalian e Shenyang seguindo para Chita na Rússia, próximo à fronteira chinesa.
Na atual situação, os chineses não vêm usando a Ponte Terrestre nem o corredor da Mongólia tanto quanto antes, devido, principalmente, às sanções ocidentais contra a Rússia. A atual ênfase na ICR é o caminho que passa pela Ásia Central e o Oeste Asiático, com um dos ramais então se bifurcando em direção ao Golfo Pérsico e ao Mediterrâneo.
E é aqui que vemos um outro – e altamente complexo – nível de intersecção que vem se desenvolvendo rapidamente: como a crescente importância da Ásia Central e do Oeste Asiático para a China vem se mesclando com a crescente importância do CITNS tanto para a Rússia quanto para o Irã em seu comércio com a Índia.
Pode-se chamar a isso de o vetor amigável da Guerra dos Corredores de Transporte.
O vetor barra-pesada – a guerra de fato – já vem sendo usado pelos suspeitos de costume. Eles, previsivelmente, pretendem desestabilizar e/ou esmagar qualquer nó da integração eurasiana ICR/CITNS /UEEA/OCX, por quaisquer meios que forem necessários: seja na Ucrânia, no Afeganistão, no Baloquistão, nos “istãos” da Ásia Central ou em Xinjiang.
No que se refere aos principais atores eurasianos, isso, fatalmente, será um trem anglo-americano seguindo para lugar nenhum.
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Fonte 247