23/12/2021, Pepe Escobar, Strategic Culture Foundation
Vindo diretamente do presidente Putin, foi como raio no céu:
“Precisamos de garantias legalmente cogentes, mesmo que saibamos que não se pode confiar nelas, dado que os EUA frequentemente se excluem de tratados que deixem de ser interessantes para eles. Mas é algo mais que garantias verbais.”
E eis como as relações Rússia-EUA chegaram a impasse definitivo – depois de série interminável de alertas vermelhos polidos emitidos de Moscou.
Mais uma vez Putin teve de especificar que a Rússia está à procura de “segurança indivisível, equitativa” – princípio estabelecido desde Helsinki em 1975 – mesmo que os russos já não considerem os EUA como “parceiro” confiável, essa gentileza diplomática que o Império cuidou de extinguir desde o fim da URSS.
A parte de “frequentemente se excluem de tratados que deixem de ser interessantes para eles” começou, pode-se dizer, em 2002, quando Washington, em governo de Bush Jr., excluiu-se do tratado dos Mísseis Antimísseis Balísticos assinado entre EUA e URSS de 1972. Ou pode-se falar também dos EUA em governo Trump, que destruiu o ‘Tratado Nuclear Iraniano, assinado com o Irã e garantido pela ONU. Precedentes não faltam.
Putin estava mais uma vez exercitando a paciência taoísta tão característica do ministro Sergey Lavrov, das Relações Exteriores: explicava o óbvio não só ao público russo, mas a um público global. O Sul Global pode facilmente compreender essa referência: “Quando a lei internacional e a Carta da ONU intervém, eles [os EUA] declaram que tudo isso é obsoleto e desnecessário.”
Antes, o vice-ministro de Relações Exteriores Alexander Grushko havia sido extraordinariamente assertivo – sem deixar espaço para a imaginação:
“Deixamos claro que estamos prontos a conversar sobre mudarmos, de um cenário técnico-militar para um processo político que fortalecerá a segurança de todos os países na área da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), área euroatlântica e Eurásia. Se não funcionar, dissemos a eles [a OTAN] que nós também avançaremos para criar contra-ameaças, mas então já será tarde demais para nos perguntar por que tomamos essas decisões e por que deslocamos esses sistemas.”
Assim sendo, no fim resume-se tudo a os europeus terem de encarar “a realidade de converterem o continente em campo de confronto militar.” Será a consequência inevitável de uma “decisão” da OTAN, só que decidida realmente em… Washington.
Incidentalmente: quaisquer possíveis futuras “contra-ameaças” serão coordenadas entre Rússia e China?
Mr. Zircon a postos, Sir*
Cada um e todos os seres racionais, das costas atlanticistas às estepes da Eurásia já conhece hoje o conteúdo dos projetos de acordos sobre garantias de segurança apresentadas aos norte-americanos, detalhadas pelo vice-ministro de Relações Exteriores, Sergey Ryabkov.
Itens chaves cobrem nenhuma nova expansão da OTAN; nada de agitação provocada pela OTAN na Ucrânia, no Leste Europeu, na Transcaucasia e na Ásia Central; Rússia e OTAN concordam com não instalar sistemas de mísseis de alcance médio e curto em áreas das quais possam alcançar uma o território da outra; estabelecem-se linhas vermelhas; e cria-se um Conselho OTAN-Rússia, ativamente envolvido em resolver disputas.
O Ministério de Relações Exteriores da Rússia reiterou várias vezes que os norte-americanos já receberam “explicações detalhadas da lógica que rege a abordagem russa”. Assim sendo, a bola está com Washington.
Bem, o conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan pareceu ter entendido alguma coisa, quando admitiu, publicamente, que Putin pode não querer “invadir” a Ucrânia.
Então, houve rumores de que os norte-americanos voltariam a Moscou essa semana, com as próprias “propostas concretas de segurança”, depois de ter de fato escrito o roteiro para seus asseclas da OTAN, invariavelmente apresentado do modo mais espetacularmente medíocre pelo secretário-geral Jens Stoltenberg.
A narrativa da Ucrânia não muda nem uma polegada: “medidas severas” – de natureza econômica e financeira – permanecem no gasoduto, caso a Rússia envolva-se em “mais agressão” na Ucrânia.
Não enganam Moscou. Ryabkov teve de especificar, mais uma vez, que as propostas russas foram feitas em bases bilaterais. Tradução: só falamos com quem manda, não falamos com o baixo escalão. O envolvimento de outros países, disse Ryabkov, “retiram [das propostas russas] todo o significado”.
Desde o início, a resposta da OTAN sempre foi previsivelmente óbvia: a Rússia está empenhada numa acumulação militar substancial, não provocada e não justificada” ao longo de sua fronteira com a Ucrânia e está divulgando “falsas notícias de provocações ucranianas e da OTAN”.
Assim se provou mais uma vez que é monumental perda de tempo discutir com chihuahuas do tipo Stoltenberg, para os quais a “expansão da OTAN continuará, a Rússia goste ou não goste.”
De fato, os funcionários de EUA e OTAN gostem ou não, o que está realmente acontecendo no campo da realpolitk é que a Rússia dita os novos termos, de uma posição de poder. Em resumo: você pode aprender, em calma, pacificamente, incluído diálogo civilizado, a jogar o novo jogo que há na cidade. Ou aprenderá pela via mais difícil, em diálogo direto com Mr. Iskandr, Mr. Kalibr, Mr. Khinzal e Mr. Zircon.
O inestimável Andrei Martyanov há anos analisa longamente todos os detalhes da superior capacidade militar dos russos, hoje já dominantes, hipersônicos e outros tipos, por todo o espaço europeu – bem como as terríveis consequências se a gangue EUA-OTAN “decidir que preferem continuar a se fazer de desentendidos.”
Martyanov também observou que a Rússia “compreende a separação entre Rússia e o Ocidente e está pronta a assumir todas as consequência, inclusive o declínio em curso, o encolhimento do comércio e a redução do fornecimento de hidrocarbonetos à União Europeia.”
É onde todo o balé em torno de garantias de segurança entra em intersecção com o ângulo crucialmente decisivo do Oleogasodutostão. Em resumo: sai o [gasoduto] Ramo Norte 2, entra o [gasoduto] Poder da Sibéria 2.
Assim sendo, voltemos um passo, para reexaminar o motivo pelo qual a iminente catástrofe no campo da energia na UE não está tirando o sono de ninguém na Rússia.
Dança na noite siberiana
Um dos principais pontos da videoconferência estratégica Putin-Xi na semana passada foi o futuro imediato do gasoduto Poder da Sibéria 2 – que serpenteará pela Mongólia para entregar à China, anualmente, 50 bilhões de metros cúbicos de gás natural.
Assim sendo, dificilmente teria sido acaso que Putin tenha recebido no Kremlin o presidente Ukhnaagiin Khurelsukh da Mongólia, um dia depois de ter falado com Xi, para discutir o Poder da Sibéria 2. Os parâmetros chaves do gasoduto já foram definidos, há em andamento um estudo de viabilidade que estará completado no início de 2022, e o negócio – exceto detalhes de preço, de último minuto – está praticamente fechado.
O gasoduto Poder da Sibéria 2 segue os 2.200 km de extensão do Poder da Sibéria 1 lançado em 2019 da Siberia Oriental até o norte da China, com foco no negócio de $400 bilhões firmado entre Gazprom e a Corporação Nacional de Petróleo da China (CNPC). O gasoduto Poder da Sibéria 1 alcançará plena capacidade em 2025, quando estará fornecendo anualmente 38 bilhões de metros cúbicos de gás.
Poder da Sibéria 2, operação muito maior, foi planejado há anos, mas foi difícil chegar ao consenso quanto ao traçado final. Gazprom queria que fosse da Sibéria Ocidental até Xinjiang pelas montanhas Altai. Os chineses queriam que fosse pela Mongólia, diretamente para a China central. Afinal, prevaleceram os chineses. O traçado final pela Mongólia só foi decidido há dois meses. A construção deve começar em 2024.
É fator que provocará mudança massiva, totalmente alinhada com a parceria estratégica Rússia-China, cada vez mais sofisticada. Mas também é supremamente importante em termos geopolíticos (Lembrem-se de Xi: a China apoia os “mais importantes interesses da Rússia”).
O gás para Poder da Sibéria 2 virá dos mesmos campos que atualmente abastecem o mercado da União Europeia. Sejam quais forem as ideias dementes alucinadas da Comissão Europeia – e do novo governo alemão – para tentar impedir a operação do Ramo Norte 2, o principal foco da Gazprom será a China.
Não faz diferença para a Gazprom que a China como consumidora, não substituirá integralmente, em futuro próximo, todo o mercado da União Europeia. O que interessa é o fluxo estável de negócios e a ausência de politicagem pueril. Para a China o que interessa é contar com rota terrestre extra e garantida de suprimento, reforçando sua estratégia de “escapar de Malaca”: a possibilidade, em caso de a Guerra Fria 2.0 virar quente, que a Marinha dos EUA venha eventualmente a bloquear o embarque por mar, das fontes de energia, via Sudeste da Ásia, até a China.
Pequim, é claro, está por todos os lugares, no que tenha a ver com comprar gás natural russo. Os chineses têm 30% das ações do projeto Yamal, de 27 bilhões, da Novatek; e 20% do projeto Ártico, de $21 bilhões.
Assim sendo, bem-vindos a 2022 e às novas altas apostas do Grande Jogo da realpolitik.
As elites norte-americanas temiam jogar Rússia contra a China, porque temiam que isso levasse a Alemanha a se aliar a uma ou à outra – deixando de fora o Império do Caos.
E isso nos leva ao “mistério” dentro do enigma de toda a fachada ucraniana: usá-la pra forçar a UE para bem longe dos recursos naturais russos.
A Rússia está virando pelo avesso todo esse show. Como superpotência de energia, em vez de uma União Europeia internamente corroída comandada pela OTAN, a Rússia se concentrará mais em seus consumidores asiáticos.
Paralelamente, a Rússia superpotência militar, já farta das provocações de EUA-OTAN, agora dita os termos de um novo arranjo. Lavrov confirmou que a primeira rodada de conversações Rússia-EUA sobre garantias de segurança será realizada no início de 2022.
São ultimatos? Na verdade, não. Mas parece que Ryabkov, apesar do notável didatismo, terá de explicar mil vezes:
“Não falamos com ninguém a língua dos ultimatos. Temos atitude responsável quando se trata da nossa segurança e da segurança de outros. O ponto não é que tenhamos emitido um ultimato, não, de modo algum. O ponto é que a seriedade de nosso aviso não deve ser subestimada.”*******
* Sobre as novas armas russas, ver “Discurso do Presidente Vladimir Putin à Assembleia Geral da Federação Russa e ao Parlamento Russo”, 1/3/2018, traduzido no Blog do Alok.
Traduzido pelo coletivo Vila Mandinga