“O caso Rússia-Talibã envolve um imenso pacote – abrangendo petróleo, gás, minerais e conectividade aos montes”, escreve o jornalista Pepe Escobar
O encontro cordial foi organizado pelo Professor Sultan Barakat, que leciona no Colégio de Políticas Públicas da Universidade de Hamad bin Khalifa – que funciona em um impressionante e imaculado campus nos arredores de Doha, atraindo estudantes de todo o Sul Global. O Prof. Barakat é um dos pouquíssimos – e discretos – atores que sabem tudo o que interessa saber sobre o Oeste Asiático e, no seu caso, também sobre a intersecção da Ásia Central e do Sul.
O Professor Barakat vem trabalhando em um ângulo paralelo. Ele vem dirigindo os trabalhos do Fórum Pensamento Futuro sobre o Afeganistão, cuja nona sessão teve lugar em Oslo, em meados de maio, e contou com a presença de 28 afegãos – homens e mulheres – bem como com um bom número de diplomatas do Irã, Paquistão, Índia, China, Turquia, Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, entre outros.
Para que isso venha a ocorrer, o Conselho de Segurança da ONU tem que anular sua decisão de 2003 que designa diversos membros do Talibã como uma organização criminosa e, simultaneamente, a agenda de discriminação/demonização/sanções praticada por Washington tem que ter fim. No pé em que as coisas andam, essa parece ser uma missão praticamente impossível.
Nesse caso, será essencial o pleno apoio de Rússia e China, membros do Conselho de Segurança da ONU.
Saí da reunião de Catar com a impressão de que, futuramente, passos positivos – em termos da normalização do Afeganistão como um todo – são possíveis. E então, algum tipo de intervenção mágica virou o jogo pelo avesso.
O excepcionalmente competente Zamir Kabulov, Representante Especial de Putin para o Afeganistão, foi direto ao ponto: sem a remoção do Talibã da lista, a Rússia não poderá reconhecer o novo governo de Cabul.
Kabulov observou que, “tradicionalmente, os afegãos se interessam pela continuação da cooperação quanto à compra, na Rússia, de produtos de petróleo e de outros bens de alta demanda. É claro que, futuramente, será possível conversar sobre as capacidade de trânsito afegãs, a fim de expandir o volume de negócios”.
E então, o Chanceler Sergey Lavrov, também nesse mesmo dia, em Tashkent, durante a visita oficial de Putin, praticamente selou o acordo ao dizer que a normalização do Talibã reflete uma realidade objetiva: “Eles são o verdadeiro poder. Não somos indiferentes ao Afeganistão. Tampouco nossos aliados, principalmente os da Ásia Central, são indiferentes a esse país. Esse processo, portanto, reflete uma consciência da realidade”.
O Cazaquistão já manifestou sua “consciência da realidade”: o Talibã foi retirado da lista do terror de Astana no ano passado. Na Rússia, na prática, o Talibã será excluído da lista do terror caso a medida tenha a aprovação da Suprema Corte. Isso talvez venha a acontecer nos próximos dois meses.
Esse caso de amor vem junto com um enorme pacote
A normalização dos laços Rússia-Talibã é inevitável por várias razões. A grande prioridade, certamente, relaciona-se à segurança regional: combater o papel nebuloso, sombrio e desestabilizador do ISIS-K, um subproduto terrorista do ISIS, que, clandestinamente, é ativamente apoiado pela CIA/MI6 como um instrumento do Dividir para Dominar. O diretor do FSB Alexander Bortnikov tem pleno conhecimento de que um Afeganistão estável significa um governo talibã estável.
E esse sentimento é inteiramente compartilhado pela OCX, a Organização de Cooperação de Xangai como um todo. O Afeganistão é observador na OCX. É inevitável que o país venha a se tornar membro pleno nos próximos dois anos, no máximo – consolidando sua normalização.
Então, há a bonança do corredor de conectividade que ocorrerá em breve – que é tão importante para a Rússia quanto para a China. Pequim está construindo uma outra maravilha da engenharia rodoviária cruzando o corredor de Wakhan para conectar Xinjiang com o nordeste do Afeganistão. E, então, o plano consiste em fazer de Cabul parte do Corredor China-Paquistão (CECP): integração geoeconômica veloz como um raio.
Moscou – e também Nova Delhi – estão de olho nos resultados do Corredor de Transporte Internacional Norte-Sul (CTINS), um corredor multimodal ligando a Rússia ao Irã e à Índia. O porto de Chabahar, no Irã, é um nó essencial da Rota da Seda da Índia, para conectar o Afeganistão e mais além aos mercados da Ásia Central.
E há também a ainda inexplorada riqueza mineral afegã, valendo pelo menos um trilhão de dólares. Incluindo o lítio.
Cabul planeja também construir nada menos que um nó russo para exportar energia para o Paquistão – como parte de um futuro acordo estratégico Paquistão-Rússia.
O que Putin disse ao Primeiro-ministro paquistanês Shebhaz Sharif nos bastidores da cúpula da OCX de 2022, realizada em Samarcanda, é imensamente significativo: “O objetivo é entregar gás de gasoduto da Rússia ao Paquistão (…) Parte da infraestrutura já existe na Rússia, no Cazaquistão e no Uzbequistão”. O Afeganistão entra em cena agora.
Em termos de corredores de conectividade, um garoto enorme acaba de se mudar para a vizinhança – de acordo com um Memorando assinado em Tashkent, em novembro de 2023, nos bastidores do Fórum Internacional de Transportes da OCX: o corredor de transportes Belarus-Rússia-Cazaquistão-Uzbequistão-Afeganistão-Paquistão.
A peça que falta nesse fascinante quebra-cabeça é conectar o que já existe – ferrovias cobrindo Belarus-Rússia-Cazaquistão-Uzbequistão – com uma ferrovia Paquistão-Afeganistão nova em folha. Os dois últimos trechos desse projeto Paq-Afeg-Uz começaram a ser construídos há apenas poucos meses.
Foi exatamente esse o projeto tratado na declaração conjunta assinada por Putin e o Presidente uzbeque Shavkat Mirziyoyev, no início desta semana, em Tashkent.
Como relatou a TASS, “Putin e Mirziyoyev avaliaram positivamente a primeira reunião do grupo de trabalho sobre o desenvolvimento do corredor multimodal de transporte Belarus-Rússia-Cazaquistão-Uzbequistão-Afeganistão-Paquistão, que teve lugar na cidade uzbeque de Termez, em 23 de abril de 2024”.
Todo o caso Rússia-Talibã, portanto, envolve um imenso pacote – que abrange petróleo, gás, minerais e conectividade ferroviária aos montes.
Não há dúvida de que devem existir muitos outros detalhes suculentos que irão surgir no próximo fórum de São Petersburgo – já que uma delegação talibã, incluindo seu ministro do trabalho e o diretor da Câmara de Comércio estarão presentes.
E ainda tem mais: o Afeganistão, sob o Talibã 2.0, certamente será convidado para a próxima cúpula BRICS+, que ocorrerá em outubro próximo, em Kazan. Pensem em uma mega convergência estratégica. O Conselho de Segurança da ONU que se apresse em normalizar o Afeganistão para a “comunidade internacional”. Ah, esperem: quem dá a mínima quando Rússia-China, a OCX e os BRICS já o fizeram?
Fonte: Brasl 247