30/6/2021, Pepe Escobar, Strategic Culture Foundation
O centenário do Partido Comunista Chinês (PCC) acontece essa semana no coração de uma incandescente equação geopolítica.
A China, superpotência emergente, está de volta à proeminência global que teve ao longo de séculos de história conhecida, bem quando o hegemon em declínio está paralisado pelo “desafio existencial” imposto à sua efêmera dominação unilateral.
Um pensamento de confrontação de pleno espectro já esboçado na Revisão da Segurança Nacional dos EUA de 2017 vai rapidamente deslizando para o medo, para ofensas e incansável cinofobia.
Acrescente-se a isso a parceria estratégica abrangente Rússia-China a expor graficamente o pior dos pesadelos mackinderianos das elites anglo-norte-americanas cansadas de “governar o mundo” – por no máximo dois séculos.
O Pequeno Timoneiro Deng Xiaoping talvez tenha cunhado a fórmula definitiva do que muitos no Ocidente definiram como o milagre chinês:
“Buscar a verdade nos fatos, não em dogmas, sejam dogmas orientais ou ocidentais”.
Implica que jamais se tratou de intervenção divina. Sempre se tratou de planejamento, muito trabalho, e de aprender por tentativa e erro.
A recente sessão do Congresso Nacional do Povo aí está, como exemplo claro. Não aprovou só o novo Plano Quinquenal, mas, de fato, todo um mapa completo do caminho para o desenvolvimento da China até 2035: três planos em um.
O que todo o mundo viu, na prática, foi a eficiência manifesta do sistema de governo da China, capaz de projetar e implementar estratégias geoeconômicas extremamente complexas, depois debate local e regional amplo, de vasta gama de iniciativas políticas.
Comparem o que fazem os chineses, e as discussões e impasses sem fim das democracias liberais ocidentais – que são incapazes de planejar sequer para o trimestre seguinte, imaginem se saberiam planejar para 15 anos!
Os melhores e mais brilhantes na China realmente conhecem Deng. Não poderiam dar menor importância à politização dos sistemas de governança. O que interessa é o que definem como sistema muito efetivo para construir planos de desenvolvimento específicos, mensuráveis, exequíveis, relevantes e com prazos determinados (ing. SMART, specific, measurable, achievable, relevant and time-bound), e executá-los.
85% de voto popular
No início de 2021, antes de ter início o Ano do Boi de Metal, o presidente Xi Jinping enfatizou que “condições sociais favoráveis” devem estar vigentes para as celebrações do centenário do PCC.
Sem tomar conhecimento de ondas de demonização vindas do Ocidente, o que conta para a opinião pública chinesa é se o PCC fez o que disse que faria. E, sim, fez (a aprovação popular está acima de 85%). A China controlou a epidemia de Covid-19 em tempo recorde; o crescimento econômico voltou; há menos pobreza; e o estado-civilização é hoje “sociedade moderadamente próspera” – bem na hora certa, para as celebrações do centenário do PCC.
Desde 1949, a economia chinesa cresceu impressionantes 189 vezes. Ao longo das últimas duas décadas, o PIB da China cresceu 11 vezes. Desde 2010, mais que dobrou, de $6 trilhões para $15 trilhões. Agora corresponde a 17% da econômica global.
Não surpreende que a choradeira ocidental seja irrelevante. Eric Li, diretor de investimentos em Xangai, descreve sucintamente a diferença crucial entre dois mundos: nos EUA, o governo muda, mas as políticas não mudam; na China, o governo não muda, mas as políticas, sim.
Esse é o contexto para o estágio seguinte de desenvolvimento – no qual o PCC de fato trabalhará na direção de seu modelo híbrido, único, de “socialismo com características chinesas”.
O ponto chave é que a liderança chinesa, mediante ajustes políticos constantes (tentativa e erro, sempre) evoluiu para um modelo de “crescimento pacífico” – terminologia chinesa –, que respeita essencialmente a imensa experiência histórica e cultural chinesa.
Nesse caso, o excepcionalismo chinês significa respeitar o Confucionismo – que privilegia a harmonia e abomina o conflito – e o Taoísmo – que privilegia o equilíbrio –, como superiores ao modelo ocidental hegemônico, agitado e belicoso.
Essa ideia reflete-se em profundos ajustes nas políticas chinesas, como o novo movimento de “dupla circulação”, que dá maior ênfase ao mercado doméstico, em relação à China vista como “fábrica do mundo”.
Na China, passado e futuro são totalmente entretecidos; o que foi feito em dinastias antigas ecoa no futuro. O melhor exemplo contemporâneo é a Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), ou Novas Rotas da Seda – o conceito de política exterior chinesa, para todo o futuro planejável, e que tudo abarca.
Como o professor Wang Yiwei da Renmin University detalhou, a ICE trata de remodelar a geopolítica, “trazendo a Eurásia de volta ao lugar histórico que lhe cabe, no centro da civilização humana”. Wang mostrou como “as duas grandes civilizações do Oriente e do Ocidente foram unidas, até que a ascensão do Império Otomano interrompeu a Antiga Rota da Seda”.
O movimento da Europa para o mar levou à “globalização por colonização”; ao declínio da Rota da Seda; à mudança do centro do mundo, para o Oriente; à ascensão dos EUA; e ao declínio da Europa. Agora, Wang argumenta, “a Europa está diante de uma oportunidade histórica para retornar ao centro do mundo, com o renascimento da Eurásia.”
E isso, precisamente, é o que o hegemon fará de tudo para impedir que aconteça.
Zhu e Xi
É justo argumentar que o contraparte histórico de Xi é o imperador Zhu (nascido Hongwu), fundador da dinastia Ming (1368-1644). O imperador queria apresentar sua dinastia como uma renovação chinesa, depois da dominação mongol via a dinastia Yuan.
No caso de Xi, ele fala de “rejuvenescimento chinês”: “A China foi potência econômica mundial. Mas perdeu a vez, no início da Revolução Industrial e das dramáticas mudanças consequentes, e foi assim deixada para trás e humilhada sob invasão estrangeira (…). Não podemos deixar que se repita essa história trágica.”
A diferença é que a China do século 21, governada por Xi, não se retirará para dentro dela mesma, como fez no governo Ming. O paralelo, para o futuro próximo estaria mais próximo da dinastia Tang (618-907), que privilegiou o comércio e a interação com todo o mundo.
É perda de tempo comentar a avalanche de interpretações erradas que circulam, sobre a China. Para os chineses, para a grande maioria da Ásia, e para o Sul Global, muito mais relevante é registrar o modo como a narrativa imperial dos EUA – “somos os libertadores do Pacífico Asiático” – já está hoje completamente desmontada.
De fato, o presidente Mao pode bem ter direito de rir por último. Como escreveu em 1957, “se os imperialistas insistirem, apesar de tudo, em desencadear uma terceira guerra mundial, é certo que outras centenas de milhões de homens passarão para o lado do socialismo; restará assim pouco terreno para os imperialistas, e a ruína total do sistema imperialista será igualmente possível.”[1]
Martin Jacques, um dos raros ocidentais que realmente estudaram a China em profundidade, apontou corretamente como “China teve cinco períodos separados durante os quais gozou posição de proeminência partilhada – no mundo: parte do período Han; o Tang; provavelmente, o Song; o início do período Ming; e o início do Qing.”
Assim sendo, a China, historicamente representa, sim, renovação continuada e “rejuvenescimento” (Xi). Estamos bem no meio de outra dessas fases – agora conduzida pela dinastia PCC a qual, é fato, não acredita em milagres, só acredita em planejamento bem feito. Os excepcionalistas ocidentais podem continuar com os chiliques 24 horas/dia, todos os dias da semana, sem parar: não mudarão o curso da história.*******
[1] De “Sobre o tratamento correto das contradições no seio do povo”, Mao Tse Tung, Conferência, 27/2/1957, texto transcrito, revisto por Mao para publicação e publicado dia 17/6/1956, no People’s Daily, item X: “Pode uma coisa má transformar-se em uma coisa boa?” em marxists.org., port. (Citado também em Daily Report, CIA, Foreign Radio Broadcasts, Issues 86-90) [NTs.]).
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga