Pepe Escobar: O Império ainda não desistiu de torturar o Afeganistão

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Apesar de sua retumbante derrota, a OTAN ainda não parou de infligir sofrimento à terra dos afegãos

www.brasil247.com - Exército dos EUA no Afeganistão

Exército dos EUA no Afeganistão (Foto: Reuters / Marines dos Estados Unidos)

Por Pepe Escobar, no The Craddle

Era uma vez, em uma galáxia não tão distante, uma tal de “Guerra ao Terror” lançada pelo Império do Caos contra um empobrecido cemitério de impérios situado na encruzilhada entre a Ásia Central e do Sul.

Em nome da segurança nacional, a terra dos afegãos foi bombardeada até o Pentágono esgotar todos os alvos, como se queixou àquela época seu chefe Donald Rumsfeld, viciado em “desconhecidos conhecidos”.

Operação ‘Suportar o Cativeiro’  

Alvos civis, também conhecidos como “danos colaterais”, foram a norma durante anos. Multidões tiveram que fugir para países vizinhos em busca de abrigo, enquanto dezenas de milhares foram aprisionadas por razões desconhecidas, alguns até mesmo despachados para um gulag imperial ilegal situado em uma ilha tropical do Caribe.

Crimes de guerra foram devidamente perpetrados – alguns deles denunciados por uma organização liderada por um jornalista brilhante que, subsequentemente, foi submetido a anos de tortura psicológica por aquele mesmo Império, obcecado em extraditá-lo para sua  própria distopia carcerária.

Durante todo esse tempo, a presunçosa e civilizada “comunidade internacional” – notação taquigráfica para o coletivo ocidental – manteve-se praticamente surda, muda e cega. O Afeganistão foi ocupado por mais de 40 países – e repetidamente bombardeado e dronado pelo Império, que não sofreu qualquer condenação por essa agressão; nenhuma sanção após pacotes e mais pacotes de sanções; nenhum confisco das centenas de bilhões de dólares; absolutamente nenhuma punição.

A primeira baixa da guerra 

No auge do momento unipolar,  o Império podia se permitir qualquer tipo de experimento no Afeganistão porque a impunidade era a norma. Dois exemplos vêm à mente: Kandahar, distrito de Panjwayi, março de 2012: um soldado do império mata 16 civis e incinera seus corpos. E ainda Kunduz, abril de 2018: uma cerimônia de formatura recebe de presente um míssil Hellfire, matando mais de 30 civis.

O ato final da “não-agressão” imperial contra o Afeganistão foi um ataque de drone em Cabul que, em vez de atingir “diversos homens-bomba” eviscerou uma família de 10, incluindo várias crianças. A “ameaça iminente” em questão, identificada pela inteligência dos Estados Unidos como “um facilitador  do ISIS”, era, na verdade, um assistente social que voltava para reencontrar sua família. A “comunidade. internacional”, como era  de se esperar, cuspiu propaganda imperial por dias a fio, até que sérias perguntas começaram a ser colocadas.

Perguntas continuam surgindo quanto às condições do treinamento de pilotos afegãos pelo Pentágono para voar os A-29 Super Tucanos de fabricação brasileira entre 2016 e 2020, que realizaram mais de 2.000 missões de apoio aos ataques imperiais. Durante o treinamento na base aérea de Moody, situada nos Estados Unidos, mais da metade dos pilotos afegãos desertaram (ou foram declarados AWOL, ou ausentes sem licença, na terminologia militar americana), e mais tarde, a maioria deles se mostrou muito perturbada com o montante dos “danos colaterais” civis. É claro que  Pentágono não guarda registros das vítimas afegãs.

Ao contrário, o que a Força Aérea Americana fez foi se gabar de que os Super Tucanos despejaram bombas de laser nos “alvos inimigos”: combatentes talibãs que “gostam de se esconder nas cidades e lugares” onde moram civis. Foi dito que, milagrosamente, os disparos  “de precisão” nunca chegaram a atingir a população local”.

Não é bem isso que conta um refugiado afegão no Reino Unido, mandado embora por sua família quando tinha apenas 13 anos de idade, que revelou há mais de um mês, ao falar de sua aldeia no Tagab: “Sempre houve combates ali. A aldeia pertence ao Talibã (…) Minha família ainda está lá, não sei se viva ou morta. Não tenho nenhum contato com eles”.

Diplomacia dos drones

Uma das primeiras decisões de política externa do governo Obama em inícios de 2009 foi turbinar ao máximo uma guerra de drones sobre o Afeganistão e as áreas tribais do Paquistão. Anos mais tarde, alguns analistas de inteligência de outros países da OTAN começaram a desabafar em off, sobre a impunidade da CIA: ataques com drones recebiam sinal verde mesmo que a matança de dezenas de civis fossem praticamente certa – como aconteceu não apenas no ‘Af-Paq’ mas também em outras zonas de guerra do Oeste Asiático e do Norte da África.

No entanto, a lógica imperial é blindadíssima. Os Talibãs eram, por definição, “terra-rists” – no típico sotaque texano de Bush. Por conseguinte, as aldeias nos desertos e montanhas afegãos estavam ajudando e dando guarida a “terra-rists” e, portanto, eventuais vítimas de drones jamais levantariam a  questão de “direitos humanos”.

Quando afegãos – ou palestinos – se convertem em danos colaterais, isso é irrelevante. Quando eles se transformam em refugiados de guerra, eles passam a ser uma ameaça. Mas as mortes de civis ucranianos são meticulosamente contabilizadas e quando eles se tornam refugiados são tratados como heróis.

Um maciça ‘derrota baseada em dados’ 

Como observou o ex-diplomata britânico Alastair Crooke, o Afeganistão foi o supremo showcase para o gerencialismo técnico, a plataforma de teste para “cada inovação em gerenciamento tecnocrático de projetos”, incluindo Big Data, Inteligência Artificial e sociologia militar incorporadas a “Equipes de Terreno Humano” – experimento esse que contribuiu para a formulação da “ordem internacional baseada em regras” do Império.
Mas então, o regime-fantoche apoiado pelos Estados Unidos em Cabul caiu não com um estrondo, mas com um gemido: uma espetacular “derrota baseada em dados”.

A inferno não tem a fúria de um Império humilhado. Como se todos os bombardeios, os ataques com drones, os anos de ocupação e os danos colaterais em série não fossem desgraça bastante, um Washington ressentido coroou sua façanha ao efetivamente roubar sete bilhões de dólares do Banco Central afegão: ou seja, dinheiro que pertence aos cerca de 40 milhões de sofridos cidadãos afegãos.

Agora, afegãos exilados estão se unindo para tentar evitar que os familiares das vítimas do 11 de setembro nos Estados Unidos se apoderem de 3,5 bilhões de dólares desse montante para quitar dívidas supostamente de responsabilidade do Talibã – que não tem absolutamente nada a ver com o 11 de  setembro.

‘Ilegal’ é muito pouco para qualificar esse confisco de ativos, lesando um país empobrecido, assolado por uma moeda em queda livre, inflação descontrolada e  uma crise humanitária aterradora, cujo único ‘crime’ foi derrotar de forma limpa, em campo de batalha, a ocupação imperial. Qualquer que seja o critério adotado, caso a situação se perpetue a qualificação de crime de guerra internacional seria aplicável. E os danos colaterais, neste caso, significarão o fim de qualquer “credibilidade”  ainda associada à “nação indispensável”.

A soma total das reservas externas deve, sem sombra de dúvida, ser devolvida ao Banco Central Afegão. Mas todos sabem que isso não vai acontecer. Na melhor das hipóteses, será liberada uma reduzida parcela mensal, insuficiente para estabilizar os preços e permitir que o afegão médio consiga comprar bens de primeira necessidade, como pão, óleo de cozinha, açúcar e combustíveis.

A ‘Rota da Seda’ ocidental morreu no caminho 

Ninguém hoje se lembra de que o Departamento de Estado dos Estados Unidos lançou sua própria versão da Nova Rota da Seda em julho de 2011, formalmente anunciada pela então  Secretária de Estado Hillary Clinton em um discurso na Índia. O objetivo de Washington, pelo menos em tese,  era reconectar o Afeganistão com a Ásia Central e do Sul, embora privilegiando a segurança sobre a economia.

A narrativa era a de “converter inimigos em amigos, e ajuda em comércio”. Na realidade, entretanto, a intenção era a de evitar que Cabul caísse na esfera de influência da Rússia/China – representada pela Organização de Cooperação de Xangai (OCX) – após o ensaio de retirada das tropas americanas em 2014 (o Império só acabou sendo formalmente expulso em 2021).

A Rota da Seda americana acabaria por dar sinal verde a projetos tais como o duto de gás natural TAPI, a linha de transmissão de eletricidade CASA-1000, a usina de energia térmica  Sheberghan e uma rede nacional de fibra ótica no setor de telecomunicações.

Muito se falou sobre o “desenvolvimento de recursos humanos”, a construção de infraestrutura – ferrovias, estradas, represas, zonas econômicas, corredores de recursos, promoção de boa governança, construção de capacidade dos “investidores locais”.

Um império zumbi 

No final das contas, os americanos fizeram menos que nada. Os chineses, jogando o jogo de longo prazo, estarão na liderança do ressurgimento do Afeganistão, depois de esperarem pacientemente pela expulsão do império.

O Afeganistão, por seu lado, será bem-vindo às verdadeiras Novas Rotas da Seda: a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), contando com os financiamentos do Banco da Rota da Seda e do Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura (BAII), e interligada ao Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), ao Corredor Centro-Asiático da ICR e, futuramente,  à União Econômica Eurasiana (UEEA) liderada pela Rússia e ao Corredor de Transporte Norte-Sul (CTNS) com liderança  iraniana-indiana-russa.

Compare-se e contraste-se tudo isso à OTAN dos minions imperiais, cujo “novo” conceito estratégico se limita à expansão do belicismo contra o Sul Global e mais além – incluindo as galáxias periféricas. Agora, pelo menos, sabemos que se algum dia a OTAN se sentir tentada a voltar ao Afeganistão, um outro ritual de humilhação excruciante estará à sua espera.

Tradução de Patricia Zimbres para o 247

Fonte: 247

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