Pepe Escobar- Geopolítica do século 21: Chocada e Apavorada 

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Derek Zheng, supchina

23/3/2021, Pepe Escobar (recebido por e-mail, tradução autorizada pelo autor)


Foram necessários 18 anos, depois de lançada contra o Iraque a operação
Choque e Pavor, para que o hegemon fosse afinal impiedosamente chocado e apavorado, ele também, por operação diplomática simultânea, dois em um, de Rússia e China.

Impossível exagerar o muito que esse movimento é radical novidade; nunca mais a geopolítica do século 21 voltará a ser o que foi.

Mas quem primeiro cruzou o Rubicão diplomático foi o hegemon[1]. Os que fazem funcionar o holograma Joe (“Farei tudo que me ordenares, Nance”) Biden sopraram-lhe no ponto de orelha que dissesse, durante entrevista de bate-bola frouxo, que o presidente Vladimir Putin da Rússia seria “assassino” desalmado.

Nem no auge da Guerra Fria as superpotências recorreram a ataques ad hominem. Resultado dessa espantosa estupidez foi arregimentar praticamente toda a população russa em torno de seu presidente Putin – porque foi tomada como ataque contra o estado russo.

Então apareceu a resposta de Putin, cool, calmo, controlado – e bem diplomático, – que se deve considerar cuidadosamente. As palavras de Putin, afiadas como punhal são, provavelmente, os mais devastadoramente poderosos cinco minutos da história das relações internacionais pós-verdade [ver interessante, aqui, sobre a fala de Putin, em português (NTs)].

Em “Leviatã passa frio no Alaska…” [ing.  For Leviathan, it’s so cold in Alaska], previmos o que aconteceria na reunião de cúpula “US-China 2+2” num hotel de segunda classe em Anchorage, com copinhos de macarrão instantâneo jogados como brindes.

Protocolos milenares da diplomacia chinesa estabelecem que as discussões comecem em torno do que já esteja definido como concordâncias – as quais, assim sendo, ficam definidas como mais importantes que as discordâncias entre as partes que negociem. É o que existe no âmago do conceito de “sem humilhação”. Só depois as partes discutem o que as separe.

Mas era facilmente previsível que um bando de amadores norte-americanos sem tato e sem noção atropelariam aquelas regras diplomáticas básicas pensando em mostrar “força” ao público norte-americano, repetindo a proverbial cantilena de Taiwan, Hong Kong, Mar do Sul da China, “genocídio” de uigures.

[Suspiro]. Não encontraram um, que fosse, um, funcionário do Departamento de Estado que tivesse algum mínimo conhecimento da Ásia Oriental, para ensinar àqueles amadores que ninguém se mete a besta, impunemente, com o impressionante presidente da Comissão de Assuntos Exteriores do Comitê Central do Partido Comunista da China, Yang Jiechi.

Visivelmente surpreendido, mas com a exasperação absolutamente sob controle, Yang Jiechi contra-atacou. E a fuzilaria retórica ecoou por todo o Sul Global.

Tiveram de incluir uma lição básica de como falar em público: “Se querem negociar adequadamente conosco, por favor, mantenhamos respeito mútuo e façamos as coisas do modo certo”. Mas o que mais se destacou foi um conciso, ardido diagnóstico em que se combinavam história e política:


“Os EUA não têm qualificação para falar à China em tom de condescendência. O povo chinês não aceitará. Devem basear-se em respeito mútuo para negociar com a China. E a história provará que os que aspiram a estrangular a China, sofrerão no final.”

E tudo isso traduzido ao vivo pela jovem, atraente e superqualificada Zhang Jing – que inevitavelmente se tornou superestrela, da noite para o dia, na China, com espantosíssimas mais de 400 milhões de visitas em Weibo.

A incompetência do braço “diplomático” do governo Biden-Harris é inacreditável. Servindo-se de uma manobra básica de Sun Tzu, Yang Jiechi virou a mesa e deu voz ao sentimento predominante da grande maioria do planeta. Esqueçam a tal “ordem baseada em regras” unilaterais, de vocês. Nós, nações do mundo, preferimos a Carta da ONU e o primado da lei internacional.

Assim, eis o que Rússia-China, dois em um, conseguiram quase instantaneamente: doravante, o hegemon deve ser tratado, em todo o Sul Global, no melhor dos casos, com desdém.

Inevitável processo histórico

Na fase pré-Alaska, os norte-americanos tentaram uma ofensiva de sedução no Japão e na Coreia do Sul, de “consultas”. Não tem importância alguma. O que interessa é o pós-Alaska, e o encontro crucialmente importante Sergey Lavrov-Wang Yi de Ministros de Relações Exteriores em Guilin.

Lavrov, sempre imperturbável, esclareceu, em entrevista à mídia chinesa, como a parceria estratégica Rússia-China vê a catástrofe em curso que é a atual diplomacia dos EUA:


Fato é que em grande medida eles esqueceram as capacidades de uma diplomacia clássica. Diplomacia tem a ver com relações entre povos, a capacidade de um ouvir o outro, escutar o que o outro diz e encontrar um equilíbrio entre interesses que divergem. Esses são exatamente os valores que Rússia e China estão promovendo na diplomacia.

Consequência inevitável é que Rússia-China devem “consolidar nossa independência”: “Os EUA declararam que sua meta é limitar o avanço da tecnologia na Rússia e na China. Assim sendo, devemos reduzir nossa exposição a sanções, mediante o fortalecimento de nossa independência tecnológica e fazendo a compensação de nossas compras e vendas em outras moedas nacionais e internacionais que não sejam o dólar. Temos de nos afastar dos sistemas de pagamentos controlados pelo Ocidente.”

Rússia-China identificaram claramente, como Lavrov destacou, o modo como os “parceiros ocidentais” estão “promovendo sua agenda movida por ideologia, que visa a preservar a própria dominação mediante ações para impedir o progresso de outros países. Aquelas políticas correm na direção oposta dos desenvolvimentos internacionais objetivos. Como diziam num dado momento, estão ‘do lado errado da história’. O processo histórico avançará, não importa o que aconteça.”

Como apresentação clara de um inevitável “processo histórico”, nada mais cristalinamente claro. Como seria de prever, não demorou para os “parceiros ocidentais” recorrerem, em recaída, ao mesmo velho saco de velhas sanções e truques.

E lá nos vamos outra vez: aliança de EUA, Reino Unido, União Europeia e Canadá impõe sanções a funcionários chineses selecionados, porque, nas palavras de Blinken, “a República Popular da China continua a cometer genocídio e crimes contra a humanidade em Xinjiang.”

União Europeia, Reino Unido e Canadá não tiveram coragem de sancionar um ator chave: o presidente do Partido em Xinjiang, Chen Quanguo, membro do Politburo. A resposta dos chineses teria sido – economicamente – devastadora.

Mesmo assim, Pequim contra-atacou com suas próprias sanções – dirigidas contra os doidos da extrema direita alemã evangélica fazendo pose de “intelectuais”, e que produziram a dita ‘prova’, já completamente desmentida de que haveria um milhão de uigures mantidos em campos de concentração.

Mais uma vez, os “parceiros ocidentais” são impermeáveis à lógica. Para agravar o já terrível estado das relações União Europeia-Rússia, Bruxelas escolhe também antagonizar a China, baseando-se num único dossiê forjado, fazendo o jogo da agenda, nada secreta, do hegemon, de Dividir para Governar.

Missão (quase) cumprida: diplomatas em Bruxelas me dizem que o Parlamento Europeu está praticamente decidido a não ratificar o acordo China-União Europeia trabalhosamente negociado por Merkel e Macron. Consequências serão imensas.

Blinken pois terá motivos para estar alegre, quando se reunir essa semana com grupo variado de eurocratas e burocratas da OTAN, antes da cúpula da OTAN.

O atrevimento dos “parceiros ocidentais” é digno de nota. Lá se vão 18 anos desde a operação “Choque e Pavor” – o começo do bombardeio contra o Iraque e da invasão e destruição do país. Dez anos desde o início da total destruição da Líbia pela OTAN e seus asseclas do Conselho de Cooperação do Golfo, com Obama-Biden “liderando pela retaguarda”. Dez anos desde o início da selvagem destruição ‘por procuração’ da Síria – de EUA ajudado por jihadis fantasiados de “rebeldes moderados”.

E agora, vejam só, os “parceiros ocidentais”, aí, horrorizados com sofrimentos de muçulmanos na China Ocidental…

Pelo menos já se veem rachaduras dentro do próprio circo de ilusionistas que é a União Europeia. Semana passada, o Cercle de Reflexion Interarmées, CRI (Círculo de Reflexão das Forças Armadas Francesas) – de fato, think-tank independente, que reúne altos ex-oficiais militares franceses[2] – escreveu carta aberta surpreendente, pela linguagem direta, ao secretário-geral Stoltenberg da OTAN, outro holograma-no-comando do ‘ocidente’, acusando-o, de facto, de agir como poodle dos EUA, na implementação do plano da OTAN para 2030 [aqui, fr., em tradução]. Os militares franceses extraem dos fatos a conclusão correta: o combo EUA/OTAN é a principal causa da preocupante situação das relações com a Rússia.

Esses idos de março

Entrementes, avança a histeria das sanções, feito trem descarrilhado. Biden-Harris já ameaçaram impor sanções extra contra importações chinesas, de petróleo iraniano. E mais há no cano: também contra manufaturas, tecnologia, 5G, cadeias de suprimento, semicondutores.

Ninguém está tremendo de medo. Alinhado a Rússia-China, o Irã elevou as apostas, com o Aiatolá Khamenei fixando as linhas gerais para o retorno de Teerã ao “Acordo Nuclear” (ing. JCPOA).

1. O regime dos EUA não está em posição de fazer quaisquer novas exigências ou modificações relacionadas ao acordo nuclear.

2. EUA são hoje mais fracos do que quando assinaram o “Acordo Nuclear”.

3. Irã está hoje em posição mais forte. Se alguém tem condições para impor novas exigência é o Irã, não os EUA.

E com isso temos fera tripla, Rússia-China-Irã, batendo na cara do hegemon.

Na segunda parte de nossa mais recente conversa/entrevista [a primeira parte pode ser lida, em português, aqui], a ser lançada em breve em vídeo-e-transcrição, Michael Hudson – pode-se dizer, o mais destacado economista do mundo – foi direto ao coração do assunto:

A luta contra a China, o medo que a China inspira, é que ninguém pode fazer à China, o que foi feito à Rússia. Os EUA adorariam meter na China alguém como um Yeltsin, para dizer ‘ok, vamos entregar as ferrovias que vocês construíram, a ferrovia de alta velocidade, vamos entregar a saúde, todas as fábricas, tudo a indivíduos… e os indivíduos que comandem tudo, depois emprestaremos a eles o dinheiro… Ou compramos tudo deles, e poderemos controlar financeiramente o país. Mas a China não deixa nem deixará que aconteça, e a Rússia conseguiu impedir que acontecesse. A fúria no ocidente tem a ver com a evidência de que, seja como for, o sistema financeiro dos EUA não consegue tomar conta dos recursos desses países, da agricultura desses países. EUA acabaram reduzidos a meios militares, para prosseguir no assalto, como estamos vendo no acontecer no Oriente Próximo. É o que você também está vendo na Ucrânia, nesse momento.

A coisa não terminou. No pé em que estamos, temos de garantir que os Idos de Março – versão 2021 – já tenham configurado um outro tabuleiro de xadrez geopolítico, novo em folha. A Dupla Hélice Rússia-China voando sobre trilhos de alta velocidade já deixou a estação – e não há como fazê-la retornar.*******

[1] Adotamos aqui a grafia em inglês hegemon (cf. Cambridge Dictionary). O dicionário Houaiss inclui um verbete “hegêmona” (‘inventado’ a partir do substantivo em grego, ‘Iegémona’, que contudo tem significado diferente (dá nome a Deusas protetoras de plantas). O VOLP, que faz lei no Brasil, em termos de ortografia, não acolhe, corretamente, essa grafia, para o que se entende, no texto acima traduzido, por hegemon. Dado que o que menos falta ao Brasil é ‘modinhas’ terminológicas, ficamos com a grafia em inglês, do texto original, adequadamente marcada por itálicos. Todas as correções e comentários são bem-vindos [NTs].

[2] “O Cercle de Réflexion Interarmées (CRI), é organismo independente de instâncias governamentais e da hierarquia militar francesa. Reúne oficiais generais e superiores das três armas que já deixaram o serviço ativo e alguns civis; tem o objetivo de mobilizar energias para se fazer entender com clareza pelos encarregados das decisões políticas, pela opinião pública e visa a reposicionar o Exército no coração da Nação francesa da qual ele é a emanação” (das notas acrescidas ao texto da carta citada acima, na publicação integral, (fr.) em Asie21) [NTs].

Traduzido pelo coletivo Vila Mandinga

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