28/3/2021, Pepe Escobar, Asia Times. Trad. autorizada pelo autor
Comecemos pela parte cômica, de alívio: o “líder do mundo livre” prometeu impedir que a China torne-se nação “líder” no planeta. E que executará missão assim tão excepcional, “espera” concorrer à presidência em 2024. Não mais como holograma. E contra o mesmo adversário.
Agora, então, quando o “mundo livre” outra vez respira aliviado, voltemos às questões sérias – cujos contornos se veem em “Geopolítica do século 21: Chocada e Apavorada” (trad. ao português; e ing.).
O que aconteceu nos últimos poucos dias entre Anchorage e Guilin continua a reverberar. Ao anotar que Bruxelas “destruiu” o relacionamento entre Rússia e a União Europeia, UE, o ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov destacou o modo como a parceria estratégica abrangente Rússia-China vai-se tornando cada vez mais forte.
Essa sincronicidade revelou que, enquanto Lavrov era adequadamente recebido pelo ministro Wang Yi das Relações Exteriores da China – incluído almoço deslumbrante, com o rio Li incluído –, o secretário de Estado dos EUA Tony Blinken visitava o quartel-general da OTAN, que tem ares de cenário de filme de James-Bond, nos arredores de Bruxelas.
Lavrov deixou perfeitamente claro que o mais importante do conjunto Rússia-China gira em torno de estabelecer um eixo econômico e financeiro para contra-atacar o arranjo de Bretton Woods. Isso implica fazer de tudo para: proteger Moscou e Pequim contra “ameaças de sanções por outros estados”; cuidar da progressiva desdolarização; e gerar avanços na direção da criptomoeda.
Essa “tripla ameaça” é que está provocando a fúria desatinada do hegemon.
Num espectro mais amplo, a estratégia de Rússia-China também implica que a integração progressiva entre a Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE; ing. BRI) e a União Econômica Eurasiana (UEE; ing. EAEU) continuará a avançar pela Ásia Central, sudeste da Ásia, partes do Sul da Ásia e Sudoeste da Ásia – passos necessários rumo a um mercado euroasiático afinal unificado sob algum tipo de gestão estratégica sino-russa.
No Alaska, a equipe Blinken-Sullivan aprendeu, graças aos mesmos Blinken-Sullivan, que ninguém se faz de besta impunemente, contra um Yoda do calibre de Yang Jiechi. No momento, a dupla prepara-se para aprender o que significa fazer-se de besta com Nikolai Patrushev, presidente do Conselho de Segurança da Rússia.
Patrushev, Yoda da estatura de Yang Jiechi e mestre das declarações sem palavras vãs, divulgou mensagem, afinal, nem tão ‘cifrada’: se os EUA criarem “dias difíceis” para a Rússia, tipo “se estão planejando, podem tentar pôr em execução”, Washington “será responsabilizada pelos passos que venha a tomar”.
O que a OTAN está realmente pensando
Enquanto isso, em Bruxelas, Blinken tentava encenação de Golpe Perfeito com a espetacularmente ineficiente presidenta da Comissão Europeia, CE, Ursula von der Leyen. O roteiro foi alguma coisa como “[O gasoduto] Nord Stream 2 é de fato péssimo para você. Acordo comercial/de investimentos com a China é de fato péssimo para você. Ok. Pode voltar para sua cadeira. Boa garota.”
Então veio a OTAN, que apresentou show ‘daqueles’, completado com pose de super ministro dos ministros de Relações Exteriores diante do quartel-general. Foi parte de reunião já agendada – na qual, como se esperava, não houve “comemoração” pelos dez anos da destruição da Líbia pela OTAN, nem pelo pé no traseiro da OTAN, no Afeganistão desgraçado pela duradoura liberdade’[1] (que ninguém viu).
Em junho de 2020, o secretário-geral da OTAN, figura recortada em papelão Jens Stoltenberg – na verdade, foram os militares norte-americanos que mandam nele – expuseram o que agora se conhece como estratégia NATO 2030, que se resume a uma ‘autorização’ para ação político-militar de um Robocop Global. Não avisaram ao Sul Global.
No Afeganistão, segundo um Stoltenberg impenetrável por qualquer de ironia, a OTAN apoia que se injete “energia nova no processo de paz”. Na reunião de cúpula, ministros também discutiram Oriente Médio e Norte da África e – na cara dura – analisaram “o que mais a OTAN pode fazer para construir estabilidade na região”. Sírios, iraquianos, libaneses, líbios, malianos teriam adorado aprender algo sobre esse tema.
Depois da reunião, Stoltenberg compareceu àquela proverbialmente sonífera conferência com a imprensa, na qual o foco principal foi – e o que seria?! – a Rússia e seu “padrão de comportamento repressivo em casa, e agressivo no exterior”.
Toda a retórica sobre a OTAN “construir estabilidade” desaparece quando se examina o que realmente está por trás de NATO 2030, via um gordo relatório de “recomendação” redigido por um bando de “especialistas”.
Ali aprendemos três pontos essenciais:
1. “A Aliança deve responder às ameaças e ações hostis dos russos (…) antes que qualquer volta a ‘negócios de sempre’ impeça alterações no comportamento agressivo da Rússia e antes que os russos voltem a agir de acordo com a lei internacional.”
2. China é apresentada como tsunami de “desafios de segurança”: “A Aliança deve infiltrar o desafio chinês em todas as estruturas existentes e deve considerar o estabelecimento de um corpo consultivo para discutir todos os aspectos dos interesses de segurança dos Aliados vis-à-vis a China”. A ênfase é “defender contra quaisquer atividade chinesas que possam vir a impactar a defesa coletiva, a prontidão militar ou a resiliência na Área de Responsabilidade do Supremo Comando Aliado da Europa (ing. Supreme Allied Commander Europe, SACEUR).”
3. “A OTAN deve traçar um pré-projeto global (orig. a global blueprint, itálicos de Pepe Escobar) para melhor utilizar a parceria para fazer avançar interesses estratégicos da OTAN. Deve mudar, da atual abordagem orientada para demandas, para uma abordagem orientada por interesses (itálicos de Pepe Escobar) e considerar a criação de fluxos mais estáveis e previsíveis de recursos para as atividades da parceria. A Política de Porta Aberta da OTAN (ing. NATO’s Open Door Policy) deve ser promovida e revigorada. A OTAN de expandir e reforçar parcerias com a Ucrânia e a Geórgia.”
Até aí, a Tripla Ameaça. Mas o Top of the Pops – tipo aqueles velhos, gordos contratos para o complexo industrial-militar – aparecem realmente, aqui:
A mais profunda ameaça geopolítica quem a traz é a Rússia. Embora, por parâmetros econômicos e sociais a Rússia seja potência em declínio, já se demonstrou capaz de agressão territorial, e deve-se esperar que permaneça como principal ameaça para a OTAN, ao longo da próxima década.
É possível que a OTAN cuide da redação, mas o diretor de roteiro que opera por trás de tudo é o Deep State [“Estado Permanente”,[2]] – ‘mais’ Rússia “buscando a hegemonia”; expansão da Guerra Híbrida (o conceito foi, na verdade, inventado pelo Deep State); e Rússia “que manipula” assassinatos ‘ciber’, ordenados pelo Estado, e envenenamentos – com armas químicas, coerção política e outros métodos para violar a soberania dos aliados.”
Pequim, por sua vez, usa “força contra os vizinhos, além de coerção econômica e diplomacia de intimidação para bem além da região do Indo-Pacífico. Na década vindoura, a China provavelmente também desafiará a capacidade da OTAN para construir resiliência coletiva.”
O Sul Global que fique bem avisado de que a OTAN promete salvar o “mundo livre”, desses demônios autocráticos.
O “Sul”, pela interpretação da OTAN, inclui Norte da África e Oriente Médio. De fato, inclui tudo, da África Subsaariana até o Afeganistão. Qualquer semelhança com o conceito que se presumia morto de “Oriente Médio Expandido”, coisa da era Dábliu, não é mera coincidência.
A OTAN insiste em que toda essa vasta área é caracterizada por “fragilidade, instabilidade e inseguridade” – e, claro, recusa-se a revelar o papel que a própria “Aliança” teve, como perpetradora serial de ações de instabilização na Líbia, Iraque, partes da Síria e Afeganistão.
Porque ultimamente… tudo é culpa da Rússia: “Para o Sul, o desafio inclui a presença da Rússia e em menor extensão, da China, explorando fragilidades regionais. A Rússia se autorreinseriu no Oriente Médio e no Mediterrâneo Oriental. Em 2015, intervieram na Guerra Civil Síria (sic) e lá permanecem. A política da Rússia para o Oriente Médio tem tudo para exacerbar tensões e lutas políticas na região, conforme ampliam as doações de ativos políticos, financeiros, operacionais e logísticos para seus parceiros. A influência da China em todo o Oriente Médio também é crescente. China assinou uma parceria estratégica com o Irã; é o maior importador de óleo cru do Iraque; intrometeu-se no processo de paz no Afeganistão; e é o maior investidor estrangeiro na região.”
Aqui, em resumo, e não exatamente codificado, está o mapa do caminho da OTAN daqui até 2030, para tumultuar e tentar desmantelar cada mínimo canto e recanto da integração da Eurásia, especialmente os que são diretamente conectados a projetos de infraestrutura/conectividade das Novas Rotas da Seda (investimentos no Irã, reconstrução da Síria, reconstrução do Iraque, reconstrução do Afeganistão).
Fala-se de uma “abordagem de segurança de 360 graus”, que “se tornará imperativa”. Tradução: a OTAN parte em busca de grandes fatias do Sul Global, tempo integral, sob o pretexto de que estaria “cuidando tanto das ameaças tradicionais daquela região, como terrorismo e novos riscos, incluindo a crescente presença da Rússia e, em menor extensão, da China.”
Guerra Híbrida em dois fronts?
E pensar que num passado não muito distante, ainda se viam flashes de lucidez que emanavam do establishment norte-americano…
Poucos recordarão que, em 1993, James Baker, ex-secretário de Estado do governo de Bush Pai, apresentou a ideia de expandir a OTAN até a Rússia, a qual, naquele momento, sob Yeltsin e uma gangue de livre-mercadistas Milton Friedmanescos, estava devastada, mas lá vigia a “democracia”. Bill Clinton ainda estava no poder, e a ideia foi devidamente descartada.
Seis anos mais tarde, ninguém menos que George Kennan – que inventou a “contenção da URSS” – determinava que a anexação pela OTAN de satélites da já então extinta URSS era “o início de uma nova Guerra Fria” e “erro trágico”.
É imensamente iluminador destacar e re-estudar toda a década que vai da dissolução da URSS até a eleição de Putin à presidência, como se faz no livro do venerável Yevgeny Primakov, Russian Crossroads: Toward the New Millenium, publicado nos EUA pela Yale University Press.
Primakov, insider muitíssimo bem informado da Inteligência, que começou a trabalhar como correspondente do Pravda no Oriente Médio, ex-ministro de Relações Exteriores e também primeiro-ministro, examinou de perto a alma de Putin, repetidas vezes, e gostou do que viu: um homem íntegro e profissional consumado. Primakov foi instigador conceitual multilateralista pioneiro, avant la lettre, de um grupo RIC (Rússia-Índia-China) que na década seguinte evoluiu para BRICS.
Foram os dias – exatamente há 22 anos –, quando Primakov estava num avião para Washington, quando recebeu um telefonema do então vice-presidente Al Gore: os EUA iam começar a bombardear a Iugoslávia, aliado eslavo-ortodoxo da Rússia, e não havia o que a ex-superpotência pudesse fazer. Primakov ordenou que o piloto voltasse a Moscou.
Agora, a Rússia é poderosa o suficiente para expor e promover seu próprio conceito de Eurásia Expandida, o qual adiante, deve equilibrar – e complementar – as Novas Rotas da Seda, da China. Aí está a potência dessa Dupla Hélice – que inevitavelmente atrairá setores chaves da Europa Ocidental – que está enlouquecendo e confundindo a classe governante hegemônica.
Glenn Diesen, autor of Russian Conservatism: Managing Change Under Permanent Revolution, que analisei em “Rússia enlouquece o Ocidente” [ing. Asia Times e traduzido aqui] e um dos melhores analistas globais da integração da Eurásia, resumiu tudo: “Os EUA têm tido grandes dificuldades em termos de converter a dependência dos aliados para questões de segurança em lealdade geoeconômica, como se vê com europeus que ainda compram tecnologias chinesas e energia russa.”
Daí o eterno Dividir para Governar, que deixa ver um dos alvos chaves dos EUA: engambelar, forçar, subornar e todas as anteriores para conseguir que o Parlamento não aprove o acordo de comércio/investimentos China-UE.
Wang Yiwei, diretor do Centro para Estudos Europeus na Universidade Renmin e autor do melhor livro feito na China sobre as Novas Rotas da Seda, vê com clareza através do embuste “EUA voltaram!”: “A China não está isolada pelos EUA, pelo Ocidente nem por toda a comunidade internacional. Quanto maior a hostilidade que demonstram, maior a ansiedade que sentem. Quando os EUA mais viajam pelo mundo, frequentemente para pedir apoio, unidade e ajuda dos seus aliados, o que se vê claramente é que a hegemonia dos EUA está enfraquecendo.”
Wang até prevê o que pode acontecer se o atual “líder do mundo livre” é impedido de cumprir sua missão excepcional: “Não se deixem enganar pelas sanções entre China e a UE, que não atinge os laços comerciais e econômicos, e os líderes da União Europeia não cometerão a estupidez de abandonar o Acordo Amplo China-UE para Investimentos, porque sabem que jamais conseguirão acordo tão bom, quando Trump ou o Trumpismo voltar à Casa Branca.”
A Geopolítica do século 21: Chocada e Apavorada, como configurada nessas duas mais recentes cruciais semanas, deixa ver claramente que o Momento Unipolar está sete palmos enterrado. O hegemon jamais o admitirá; daí o contragolpe da OTAN, que estava planejado. Em resumo, o hegemon decidiu não partir para uma acomodação diplomática, mas fazer guerra híbrida em dois fronts contra parceria estratégica incansavelmente demonizada de seus concorrentes.
Sinal dos tristes tempos que vivemos, não há James Baker ou George Kennan que aconselhe a não embarcar nessa loucura.*******
[1] Ing. Operation Enduring Freedom (OEF), “Operação Liberdade Duradoura” foi o nome oficial da invasão do Afeganistão, iniciada por Bush, dia 7/10/2001, que foi continuada por Obama e oficialmente encerrada por Obama, 13 anos depois, dia 28/12/2014. Mas as operações militares dos EUA no Afeganistão continuaram e continuam, sejam de combate e de outros tipos, até hoje. Hoje levam o título de “Operação Sentinela da Liberdade” [NTs, com informações de The Washington Post, 20/10/2017, in Wikipedia].
[2] Orig. Deep State (lit. “Estado Profundo”). Já há algum tempo temos optado por traduzir a expressão por “Estado Permanente”. Depois de muito discutir, chegamos a um consenso: “Afinal de contas, o tal Deep State (i) não é ruim por ser profundo: é ruim por ser eterno, permanente, imutável, inalcançável pelas instituições e forças da democracia; e além disso, (ii) nem ‘profundo’ o tal Deep State é: ele vive à tona, tem logotipos, marcas e nomes na superfície, é visível, portanto; mesmo assim, se autodeclara “profundo”. Não. Ele que se autodeclare o que queira. Nós o declaramos “Estado Permanente” (e anotamos nossos motivos, aqui, em nota dos tradutores. Correções e comentários são bem-vindos (NTs).
Traduzida pelo Coletivo Vila Mandinga