Pepe Escobar: Era uma vez… No dia do Ano Novo Lunar 

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Image result for Ano do Boi Ano Novo Lunar13/2/2021, Pepe Escobar, Asia Times

Tenham todos um auspicioso Ano do Boi. E para celebrar com estilo e aliviar o peso que levamos às costas nesses tempos de dificuldades, mergulhemos por um instante num sonho dentro de um sonho, de volta para o futuro até um momento na história chinesa que mudou tudo.

Dia do Ano Novo Chinês, 1272. Naquele ano, dia 18 de janeiro. Kublai Cã, tendo emitido o édito imperial, deu por oficialmente iniciada a dinastia Yuan na China.

Deve ter sido evento ao estilo chinês em toda a complexidade e com toda a solenidade, estabelecida a nova dinastia conforme rituais milenares e por estrutura clássica. Mas o povo que comandava o show eram sem dúvida os filhos da estepe: os mongóis.

Kublai Cã estava em intensa movimentação. Em 1256 começara a construir uma capital de verão ao norte da Grande Muralha da China, Kaiping – renomeada Xangtu em 1263. É a Xanadu do sublime poema de Coleridge[i] – adiante decifrado pelo gênio de Jorge Luis Borges, aquele Buda em terno cinza, que viu ali contido “un arquetipo no revelado”, “un objeto eterno” cuja “primera manifestación fué el palacio; la segunda el poema.”[ii]

Em 1258, depois de ter enfrentado com sucesso uma conspiração palaciana, o irmão de Kublai, Mongke – então o Grande Cã – entregou-lhe o comando estratégico de uma das quatro divisões do exército mongol, numa nova ofensiva contra a dinastia Song na China.

Mas Mongke morreu – de febre – nos arredores de Chungking (a Chongqing de hoje), em 1259. A sucessão foi épica. Ariq, irmão mais jovem de Cã – e que ficara em Karakorum, capital mongol, para proteger a pátria – já ia virando medieval, para capturar para si o trono.

Hulagu, outro irmão de Kublai, conquistador (e destruidor) de Bagdá – na verdade, conquistador de quase toda a Ásia Ocidental – parou a própria campanha militar na Síria e correu de volta para casa para apoiar Kublai.

Kublai chegou a Kaiping. E fez-se então um khuriltai – imponente conselho cerimonial de chefes tribais mongóis. E em junho de 1260, Kublai foi proclamado Grande Cã.

Efeito imediato foi guerra civil – até que Ariq finalmente cedeu.

Seis anos depois de se tornar Grande Cã, Kublai começou a construir uma nova capital de inverno, Ta-tu (“grande capital”), a nordeste da antiga cidade de Chungtu (onde se localiza a moderna Pequim).

Em turco, a cidade recebeu o nome de Khanbalik (“capital da realeza”). É a Cambalac que se encontra nas viagens de Marco Polo.

A guerra de Kublai contra a dinastia Song foi assunto imensamente longo. A vitória final só veio quatro anos depois de ele ter-se tornado Grande Cã – quando a imperatriz Song, viúva, entregou a Kublai o selo imperial.

A dinastia Yuan de fato, historicamente, mudou o jogo – porque os mongóis, filhos nômades da estepe, jamais confiaram nos chineses urbanizados, refinados e sedentários.

Mas Kublai era mestre estrategista. Manteve muitos importantes conselheiros chineses. Adiante, seus sucessores preferiram governar com mongóis, muçulmanos sortidos da Ásia Central e tibetanos.

O Grande Canato sob Kublai incluiu Mongólia e Tibete – o qual, claro, não era chinês. Mas o ponto mais extraordinário é que a China Yuan foi de fato integrada e/ou absorvida no império mongol. A China tornou-se parte do Canato.

Siga a escrita

A dinastia Yuan também selou momento que definiu a história mongol. Os mongóis sempre foram abertos a influência de todas as religiões. Mas, tudo contado, permaneceram fundamentalmente pagãos. Só seus xamãs, esses sim, mereciam toda a atenção – e a devoção – dos mongóis.

Ainda assim, alguns mongóis haviam-se convertido ao Cristianismo Nestoriano (“Igreja do Oriente”). Chabi, esposa de Kublai, era budista fervorosa. Mas então a geração de Kublai, em massa, passou a se orientar para o Budismo Mahayana. Os tutores não eram só tibetanos, mas também uigures.

E isso nos leva a uma conjuntura chave. Kublai decidiu que precisava de uma escrita mongol unificada para congregar a Babel de idiomas falados em todo o Canato.

A tarefa formidável foi atribuída a Fagspa – Preceptor Nacional de Kublai, Vice-rei do Tibete e, depois preceptor imperial, vale dizer, a autoridade suprema sobre todos os budistas em todo o império mongol.

Fagspa produziu uma escrita, não surpreendentemente baseada no alfabeto tibetano. Sim, escreve-se na vertical, como a escrita chinesa, a escrita uigur e a escrita mongol.

Em 1269, três anos depois do início oficial da dinastia Yuan, esse tornou-se o sistema de escrita oficial. Por que isso é tão importante? Porque é o primeiro sistema, em todo o mundo, de transcrição plurilinguística.

E há então, absolutamente importante, a questão da comida. Porque Kublai era gourmet. Os cozinheiros tinham papel especial, de alto prestígio, no universo mongol. Eram do círculo mais próximo do Cã, que confiava neles para manter seu alimento absolutamente sem venenos. Os cozinheiros eram membros também do kechig – a guarda pretoriana do Cã. Significa que eram também guerreiros altamente treinados.

Na tradição imperial chinesa, o Filho do Céu devia seguir dieta perfeitamente balanceada; só assim ficava assegurada a estabilidade de todo o mundo. As refeições do imperador chinês – elo vivo entre o Céu e a Terra – marcavam a passagem do tempo, e a alternância de yin e yang.

Kublai, fino estudioso da tradição chinesa, com certeza aprendeu, de seus conselheiros de corte, uma famosa passagem do clássico chinês The Master Zhuang. Com o adequado subtítulo de Essentials for Nourishing Life (“Aspectos essenciais para nutrir a vida”) mostra um diálogo entre o Duque Wenhui de Wei e seu cozinheiro, Ding, que naquele momento está cortando… um boi.

O mais extraordinário desse conto – que mais ou menos prefigura os escritos de Borges – é como Ding, o cozinheiro, descreve para o mestre, a própria arte: como dissecar um boi, metendo sua lâmina pelos espaços abertos entre as juntas.

Trata-se sempre de se concentrar no Tao. Isso é, seguir o fluxo – e respeitar a anatomia natural. Assim se aprende a navegar pela complexa carcaça da vida – sem ter de enfrentar resistência e sem exaurir a energia vital.

Aí está: cozinheiro filósofo taoísta. Borges teria amado!

A mensagem: se queremos viver a vida no fio de um cutelo que não tenha lâmina rombuda, temos de cortar entre as juntas.

Soa como lição de vida a que todos devemos nos manter atentos, para termos Ano do Boi adequadamente auspicioso.*******

[i] S. T. COLERIDGE, “Kubla Khan”. Ing. aqui. E aqui se encontram duas traduções desse poema ao português do Brasil frequentemente citadas, além de um ensaio interessante sobre outras tentativas (NTs).

[ii] “Quizá la serie de los sueños no tenga fin, quizá la clave esté en el último. Ya escrito lo anterior, entreveo o creo entrever otra explicación. Acaso un arquetipo no revelado aún a los hombres, un objeto eterno (para usar la nomenclatura de Whitehead), esté ingresando paulatinamente en el mundo; su primera manifestación fue el palacio; la segunda el poema. Quien los hubiera comparado habría visto que eran esencialmente iguales.” J. L. BORGES, Otras inquisiciones (1952), “El sueño de Coleridge”, Obras completas, Buenos Aires, Emecé, p. 645.

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

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