Por Luciana Garcia de Oliveira.
“A partir da prisão da ignorância para os espaços abertos do conhecimento e dos laços da aceitação cega de crença autoritária (taqlid), para a liberdade da união mística com Deus”.
Muhammad ‘Abduh
É absolutamente impossível começar qualquer análise sobre o sufismo, sem ao menos mencionarmos a importância do filme “Baba Aziz – O príncipe que contemplava a sua alma”, do diretor tunisiano Nacer Khemir e a sua grande contribuição à essa abordagem pouco debatida dentro do islã e das demais esferas religiosas e filosóficas. O filme Baba Aziz, de autoria do cineasta, escritor e artista plástico Nacer Khemir, foi idealizado com o propósito de apresentar uma face do islã mais bela, humanista, plural e tolerante, em contraposição aos estereótipos propagados, sobretudo após os ataques ao World Trade Center em Nova York em 2001.
O filme, em si, pode ser considerado um verdadeiro poema visual, conta a história de um dervixe, chamado Baba Aziz, acompanhado de sua neta espiritual Ishtar, que percorrem o deserto (cenário pertencente a Tunísia e ao Irã) à caminho de uma grande reunião de dervixes que ocorre a cada 30 anos. E, para ajudar a suportar a longa viagem, Baba Aziz, passa a contar uma história de um príncipe que contemplava sua alma ao lado de uma pequena poça d’água. Simbologia esta, bastante conhecida dentro dos preceitos sufis e que será detalhado à seguir.
O sufismo pode ser considerado uma linha mais liberal dentro do islã, visa por sua vez, um encontro entre seus semelhantes, o amor, a tolerância e o respeito, de modo à restauração completa do ser humano em sua totalidade. Historicamente, algumas lideranças sufis vêm criticando alguns líderes muçulmanos de tendências mais extremistas, como os muhadins, salafistas e algumas lideranças de dentro do grupo Irmandade Muçulmana, suas críticas geralmente são voltadas à ostentação pela qual tais líderes comumente se apresentam frente à sua comunidade, além do tratamento demasiadamente rígido com relação à seus seguidores dentro das mesquitas.
Nesse mesmo sentido, a linha sufista pode ser considerada uma opção importante, diante do apogeu do conhecido extremismo islâmico em algumas localidades como o Egito, Paquistão, Afeganistão, Iêmen, Arábia Saudita e Índia. De acordo com o artigo Sufism in the context of modern politics, Marietta Stepanyants assevera acerca do envolvimento político de modo individual e coletivo contra determinados regimes políticos e, da mesma forma, contra casos de injustiça e opressão. Muito recentemente, nos últimos levantes no Egito, após a destituição do então presidente Mohamed Morsi, a Irmandade Muçulmana compeliu para que a mesquita Universidade Al-Azhar se pronunciasse publicamente contra as ações dos militares e assumisse uma postura contrária a atual transição, e diante da recusa da instituição (considerada a mais antiga Universidade Islâmica da história e uma espécie de retiro espiritual para todas as tendências muçulmanas), a Irmandade Muçulmana acusou a Al-Azhar de estar ao lado dos militares e contra os muçulmanos (de uma maneira geral). Estima-se, no entanto que, essa postura havia sido adotada muito além da recusa de posicionar-se em prol das ações da Irmandade, mas pelo fato de abrigar em seu interior alguns sheiks de tendência sufi, de forma a incomodar algumas lideranças mais extremistas do grupo Irmandade Muçulmana e principalmente ao grupo salafista egípcio, por intermédio do partido Al-Nour.
Para Stepanyants, “Existe um clima geral intelectual e espiritual no mundo contemporâneo, marcado por uma crise da racionalidade e um certo grau de desilusão com uma religião institucionalizada, que implica na atração de alguns estratos da sociedade (intelectuais, jovens, etc) à tendências místicas de uma maneira geral, e ao sufismo de modo particular”. Essa crise da racionalidade dentro do islã, implica ao fato de que os preceitos teológicos do islã vão muito além das regras de vestimenta e alimentação. Assim, para o sufismo é priorizado o caráter humano, a honestidade, a solidariedade, compaixão, o respeito, a tolerância e o amor, não importa se a mulher usa ou não o hyijab e abaya, o mais importante é o modo como ela se exprime em sociedade.
Nesse aspecto, o sufismo é posto como uma alternativa ao fundamentalismo, sobretudo nas localidades nas quais os conflitos entre fundamentalistas e sufis ainda são bastante prevalecentes. Em muitas regiões da Ásia e da África muitos grupos sufis ainda são perseguidos, submetidos à inúmeros tipos de violência e martirizados em público, isso ocorre frequentemente devido ao fato dos sufis serem céticos a questão da obrigatoriedade externa e ao seguimento à um determinado líder.
Cabe ressaltar, por sua vez que, mesmo dentro da doutrina sufi, a observância das leis da sharia é obrigatória, pelo menos em um estágio inicial, no entanto a “Sharia para eles é a lei do mundo fenomênico, do visível, enquanto que o sufismo prevalece a entrada em um “mundo oculto”, muito mais complexo”. Desse modo, os sufis interpretam os preceitos do Alcorão de uma forma muito mais flexível, quando comparado às demais doutrinas islâmicas.
Os pilares mais importantes para o sufismo é o ensino místico para o convívio em um Estado secular, acima de tudo, além do conceito de unidade, em contrapartida à superioridade de tratamento entre a vasta comunidade muçulmana espalhada pelo globo. Nesse modo, o sufismo é conhecido pela implementação da tolerância religiosa interna e inclusive com relação às demais religiões existentes como o cristianismo, budismo e judaísmo.
Ainda, de acordo com o mesmo artigo, foi na Índia que “Por séculos o sufismo foi observado e utilizado como uma tendência à espiritualidade muçulmana capaz de impedir a divisão dos povos por motivos religiosos, e evitando, assim, a hostilidade entre eles. No decurso da história indiana, o sufismo foi por diversas vezes exercido como um papel conciliador em um meio arbitrário, foi inclusive muito bem sucedido em construir “pontes” entre hindus e muçulmanos”.
Diante do sectarismo contemporâneo, muito presente no Oriente Médio e no Norte da África atualmente, o sufismo surge como uma alternativa conciliatória e pacifista. Porém, ainda muito distante em convencer e ser plenamente aceito em sociedades sob a vigência de regimes de caráter ditatoriais e ou totalitários como a Arábia Saudita, a qual ainda considera as práticas e as ideias do sufismo como uma heresia tão grave, passível de ser completamente banida do sistema educacional das chamadas madrassas (locais de aprendizagem no islã). O que fica, portanto, são os ensinamentos e o exemplo pelo qual o islã deve ser seguido, inspirado e exaltado, assim como a alma do príncipe no filme Baba Aziz.