O passado assombra o presente do cristianismo maronita no Líbano

Share Button

Welcome Trips | Conheça Beirute e as belezas do LíbanoPor Tufy Kairuz

Pobre nação que é cheia de crenças e vazia de religião.

Pobre nação que veste uma roupa que não teceu, que come um pão que não colheu.

Pobre nação que celebra o fanfarrão como herói e que considera magnânimo o conquistador de armadura resplandecente.

Pobre nação que despreza uma paixão em seus sonhos e que ao acordar se curva.

Pobre nação que só ergue sua voz quando caminha em um enterro, que só se vangloria em meio às ruínas e que só se rebela quando seu pescoço é colocado entre a espada e a pedra.

Pobre nação cujo líder é uma raposa, cujo filósofo é um trapaceiro e cuja arte é a arte dos remendos e da imitação.

Pobre nação que acolhe seu novo governante com trombetas e se despede dele com vaias, apenas para novamente acolher outro com trombetas.

Pobre nação cujos sábios se tornam ignorantes com o passar do tempo e cujos fortes ainda estão no berço.

Pobre nação dividida em fragmentos, em que cada fragmento se julga uma nação. 

(Khalil Gibran, nativo de Bsharri) O Jardim do Profeta.

Do barbarismo à civilização leva-se um século, mas da civilização ao barbarismo basta um dia. 

Will Durant

Ehden é uma pequena cidade cerca de 1500 metros acima do nível do mar nas montanhas em torno do Vale do Qadisha no sopé dos picos mais altos do Líbano. A cidade é ligada umbilicalmente a Zgharta, distante 30 quilômetros e bem próxima a Trípoli. Tradicionalmente Ehden é o “playground” nas montanhas dos habitantes de Zgharta. Porém, mais importante e mais trágico, Ehden dista míseros 2 quilômetros de Bsharri, outra pequena cidade encravada nas montanhas dramaticamente “pendurada” à beira de um cânion. Se alguém imaginar que exista um “coração” das terras cristãs maronitas no Líbano este seria localizado no eixo Bsharri-Ehden-Zgharta. Lá, historicamente, se localiza o epicentro da igreja maronita e lá é a base das linhagens e clãs mais tradicionais do mundo maronita, para o pior e para o melhor. Lá também, para os mais atentos, que porventura tenham a curiosidade de se informar por leituras ou in loco, se desfaz o mito de uma cristandade maronita libanesa monolítica e harmoniosa. Naquelas montanhas, vales, grotões, florestas de cedro milenares e vilarejos se aprende que não apenas o Líbano é uma “casa de muitos cômodos”, com afirmou o genial Kamal Salibi, mas, de forma análoga, cada seita libanesa, sobretudo a maronita, também é uma “casa de muito cômodos” onde os inquilinos da mesma religião podem se matar mutuamente.    

Há 45 anos, na madrugada de 13 de junho de 1978, um esquadrão da Falange Libanesa vindo de Bsharri atacou a mansão da família Frangieh, em Ehden. Ato contínuo assassinam Tony Frangieh, sua esposa, Vera, sua filha de três anos, Jihane, e outros trinta milicianos da Marada. Tony Frangieh tinha 36 anos e era o filho mais velho do ex-presidente libanês Suleiman Frangieh, cujo clã é um dos mais tradicionais naquelas regiões. Segundo os relatos, os ocupantes da mansão do Frangieh se recusaram a se render e na batalha que se seguiu. Um dos líderes do ataque, o atual chefe das Forças Libanesas, Samir Geagea, conhecido por seus correligionários como “Hakim”, nativo de Bsharri, foi gravemente ferido. Os membros da família Frangieh foram executados com requintes de crueldade e até mesmo o cachorro da família não foi poupado. O filho de Tony Frangieh, Suleiman Frangieh Jr. escapou do massacre por não estar com sua família na residência.

O sistema político multiconfessional libanês, mais uma vez, sofre para eleger um presidente cristão maronita como reza a constituição libanesa. Até o momento o Parlamento libanês se reuniu uma dúzia de vezes, sem sucesso, para eleger um presidente maronita. De um lado está Suleiman Frangieh Jr., líder do Movimento Marada e sobrevivente acidental do massacre de Ehden” e do outro Jihad Azour, um homem de várias habilidades e interesses, inclusive, à serviço do Banco Mundial. O primeiro conta com apoio de alguns grupos cristãos, dos sírios, e mais importante, dos partidos Amal e Hezbollah, que representam a atual maioria no Líbano. E o último é certamente o candidato dos sonhos dos hipócritas no Ocidente, da organização criminosa que ocupa a Palestina e fechando esta “aliança” capaz de embrulhar os estômagos mais fortes, é apoiado por alguns partidos cristãos, entre eles, os mesmos que, em 1978, perpetraram o ataque sanguinário em Ehden.

O sistema político libanês é resultado do conluio dos franceses com a elite maronita para criar, em uma região majoritariamente muçulmana, um estado cristão. Na impossibilidade física e demográfica de ser exclusivamente cristão que então viesse a ser dominado pelas elites cristãs. Isto na hierarquia sócio-sectária libanesa intra-cristã, equivalia dizer que o estado seria dominado por uma elite essencialmente maronita. Assim nasce o “castelo de cartas” libanês tendo no topo os maronitas e os coadjuvantes necessários, incluindo aí as outras seitas cristãs, os muçulmanos sunitas, xiitas, drusos e caterva. A arquitetura multiconfessional frágil, como era de se esperar, estava sujeita às turbulências internas e, principalmente, às externas dentro do quadro alargado de um Oriente Médio conturbado. Nações então surgiriam da carcaça corroída do Império Otomano, mas não antes da carniça ser devorada por franceses e ingleses por meio dos nefastos “Mandatos” graciosamente concedidos pela então Liga das Nações.

A primeira turbulência foi o Nasserismo, fenômeno político de proporções sísmicas que abalou o Oriente Médio e além, na década de 1950, e que por pouco, em 1958, não desencadeou uma guerra civil no Líbano que inevitavelmente viria menos de vinte anos mais tarde. Outras turbulências viriam em consequência da invasão e ocupação da Palestina pelas hordas sionistas que resultaram em uma massa de centenas de milhares de refugiados palestinos que se instalaram no Líbano, muitos em condições sub-humanas.

Finalmente, acontece a tragédia anunciada desde da independência do Líbano, em 1970, se inicia uma guerra civil que viria abalar a República até suas fundações. Obviamente, o país, ou o que sobrou dele, na década de 1990, era uma fantasma do que era o Líbano até a década de 1970. Não que fosse a “Suíça” do Oriente ou algo parecido como apregoam as “viúvas” do Líbano pré-guerra civil, pois com exceção dos bancos e das montanhas nevadas, pouco havia em comum entre a “Suíça do Oriente” e a Suíça original.

Afinal o Líbano dos cassinos, bancos, cabarés, dos bulevares e do dolce far niente era para poucos e fora das grandes cidades, nos grotões libaneses, imperava o mundo medieval das três ordens feudais, a dos oratores (que rezavam), a dos bellatores (que mandavam) e dos laboratores (que serviam). Além disso, o Líbano, ao contrário da Suíça, tinha a pior vizinhança do planeta, principalmente na sua fronteira meridional com a colônia de refugiados-bandoleiros que se instalou na Palestina.

“A História não se repete, mas, geralmente ela rima com o passado” (Mark Twain)

No entanto, em uma terra em que a dinâmica é esculpida na pedra é preciso recuar muito no tempo para entender como o Líbano se tornou uma casa (pequena) de muitos cômodos. Os maronitas, protagonistas deste texto, são afiliados a um ramo do cristianismo oriental levantino originalmente ligado à igreja de Antioquia que se tornam seguidores dos ensinamentos de Marun, um santo siríaco do século 4, venerado em várias tradições cristãs orientais.

Curiosamente e tragicamente, a violência entre seitas cristãs, no passado remoto e no presente, era e é a norma. Em 517, por exemplo, cristãos bizantinos massacraram mais de 300 monges maronitas. Os sobreviventes retornando aos seus mosteiros entenderam a mensagem: o destino de minorias, como os maronitas, dependia dos poderosos que governavam impérios, das igrejas e ordens dominantes e quem sabe da vontade divina.

Um século depois vieram os árabes muçulmanos, que em poucas décadas, combatiam do sul da França aos confins da Ásia Central. Os maronitas notaram que os comandantes muçulmanos aceitavam juramentos de lealdade, renunciavam às coroas locais e oravam em locais sagrados compartilhados com um espírito ecumênico inexistente na relação com os aos bizantinos. Mu’awiya ibn Abī Sufyān, governador muçulmano em Damasco e depois Califa, reuniu membros das tribos cristãs, orou na igreja do Santo Sepulcro e se ajoelhou diante do túmulo da Virgem Maria. Em 659, Mu’awiya ordenou que monges maronitas e jacobitas (ortodoxos sírios) debaterem a doutrina em sua presença. (Os maronitas “venceram” o debate, claro, de acordo com as fontes maronitas.)

Outrossim, certas escolhas feitas no passado, seja por indivíduos, seja coletivamente ou simplesmente fruto de um contexto, podem selar o destino de uma comunidade e é o justamente acontece no ano fatídico de 1282. Neste ano os cruzados ainda ocupavam algumas regiões do Levante, não obstante, o “furacão” mameluco dos turcomanos causou devastação no que restava dos enclaves dos invasores europeus naquelas regiões. De quebra, pouco mais de duas décadas antes, em 1260, os mamelucos haviam esmagado os até então invencíveis mongóis nas colinas da Galileia palestina em Ain Jalut.

A igreja maronita, cuja atitude às vezes de colaboração, às vezes ambígua, havia marcado o relacionamento com os cruzados, sofria com a retribuição dos mamelucos.  Neste contexto, os maronitas são pegos no meio de um acerto de contas final entre o mundo islâmico e os cruzados. E sejamos justos, os exércitos mamelucos quando chegaram ao Levante foram “democráticos” na distribuição de cotas de vingança e repressão, pois estavam determinados a “limpar” o Levante, de uma vez por todas, da praga dos cruzados e das seitas “hereges”, cristãs ou muçulmanas. Assim, os mamelucos sunitas reprimiram duramente os xiitas, os drusos (que combatiam contra os cruzados) e maronitas, sendo que estes últimos sofreram pelo menos 10 invasões em seus redutos, entre 1260 e 1310.

Em meio ao estado “hobbesiano”, de todos contra todos que se instalou naquelas regiões, os maronitas elegem um novo Patriarca. Os dois candidatos tinham posições antagônicas. Lucas Al-Banharani defendia uma posição independente de Roma e criticava a submissão dos maronitas aos cruzados. Jeremias Al-Damalsawi, o outro candidato, defendia a lealdade a Roma e a aliança com os cruzados. Como resultado da disputa, dois Patriarcas são eleitos dividindo a igreja maronita em campos opostos. A eleição de Lucas Al-Banharani indicava que os maronitas iriam seguir o caminho de outras denominações cristãs para fazer as pazes com a História da região. Mas não. O Patriarca Al-Banharani desapareceu misteriosamente em meio a “neblina da guerra” e a rede de intrigas que dominava aquelas regiões e assim nasceu uma dinâmica que lamentavelmente perdura até hoje na qual os maronitas se percebem uma comunidade nativa, mas sempre pronta a se aliar, como sócio minoritário, em qualquer empreitada que vise hostilizar as comunidades no seu entorno.

Nesta altura se percebe, que após séculos habitando as planícies e montanhas do Líbano, como tantas outras comunidades do mosaico levantino que se tornaram minoritárias no mundo que se tornou arabizado e islâmico, a relação com os novos donos do poder alternou acomodação e conflito. Naturalmente, as minorias tendem a inventar suas próprias narrativas de “resistência” que na maioria das vezes está longe de ser realidade. Pior, certas narrativas que circulam no presente são inventadas no presente com um objeto político no presente e, portanto, pouco ou nada se relacionam ao passado. Os maronitas, entre tantas outras minorias étnicas, religiosas, inclusive as seitas minoritárias muçulmanas, vivendo em um mundo de maioria islâmica sunita, se tornaram particularmente criativos na arte de inventar ou exagerar um passado imaginário para justificar sua política no presente.

Portanto, não são as narrativas que deram origem ao excepcionalismo e a auto-segregação maronita, as narrativas é que foram inventadas distorcendo o passado para justificar suas escolhas no presente. Segundo Kamal Salibi, a comunidade maronita vivendo nas cidades costeiras do atual Líbano apoiaram os cruzados, mas os maronitas das montanhas, inclusive, quem sabe, os “antepassados” daqueles que atacaram Ehden, eram inimigos dos cruzados. O que mudou? Certamente o mundo mudou muitas vezes em quase um milênio. O que infelizmente não mudou foi determinação fanática, que se consolidou, desde então, em se comportar como uma eterna “quinta coluna” ou abraçar como mantra a ideia de ser uma “rosa entre os espinhos”, como em 1510, de maneira oportunista, o papa Leão X definiu os maronitas. O pior é que eles acreditaram.

Com a chegada dos turcos otomanos, que substituíram os turcos mamelucos, dois momentos definem o Líbano contemporâneo e obviamente o destino dos maronitas. O primeiro a “aventura” de um certo Fakhreddin na virada dos séculos 16 para o 17. Fakhreddin, filho de um clã de notáveis das montanhas do Chouf, pertencia a uma seita heterodoxa que desfrutava de um status islâmico altamente controverso em um mundo islâmico dominado pelos otomanos sunitas-hanafi-ash’ari-sufi. Para efeito de cobrança de impostos, às vezes, os drusos eram considerados “muçulmanos”, mas legalmente eram considerados “hereges” incorrigíveis, além da disposição atávica para se rebelar contra o poder central.

Fakhreddin, porém, era um druso rodeado por maronitas e nos seus planos de grandeza promoveu uma relação de interdependência entre as comunidades drusas e maronitas com consequências trágicas no futuro. No entanto, Fakhreddin, nos seus projetos pessoais de poder e modernizadores, cometeu, mais uma vez, o erro que pragueja as terras libanesas e compactuou com os inimigos do mundo islâmico cujas prioridades, além de lucrar com o comércio, era iniciar uma nova Cruzada por meio de proxies locais. Fakhreddin, talvez, embriagado pelas vitórias militares efêmeras, se aproveita das outras prioridades militares dos otomanos alhures, mas na realidade ele era apenas um preposto do poder imperial, um coletor de impostos que se tornou o “Senhor do Levante” até sua carruagem virar abóbora, pois ele foi caçado, preso e executado pelo Império. Porém, Fakhreddin deixou marcas, além de memórias e mitos que empolgaram os nacionalistas a partir do século 19 e que moldaram a vida de muitos libaneses por quatro séculos. Ele, por certo, não inventou os maronitas, mas os ajudou a encontrar um propósito na agricultura, no comércio e mesmo em uma fraternidade, ocasionalmente amarga, com outros povos da montanha.

Pouco mais de 200 anos depois das peripécias de Fakhreddin, o Império Otomano não era mais o mesmo. Por volta de 1840, os otomanos tentavam desesperadamente conter o processo de declínio com medidas modernizadoras como o Tanzimat (reforma, reorganização, modernização). Entre 1831 e 1840, os egípcios, sob o governo de Muhammad Ali, um otomano origem albanesa rebelado contra o poder central em Istambul, invadem e ocupam a Grande Síria. A ocupação egípcia alterou severamente a ordem frágil do Monte Líbano, principalmente, após a retirada das tropas de Muhammad Ali sob pressão dos otomanos e ingleses.

Uma das consequências da ocupação foi a desorganização da ordem comunal tradicional no Monte Líbano simbolizado pela destruição do poder do clã dos Chehab, que representava o poder imperial desde o século 17, após o ocaso do clã druso Ma’n. Além disso, os Chehab, não por acaso, eram a metáfora das idiossincrasias da montanha libanesa: uma família de aristocratas muçulmanos sunitas cujo um ramo importante se tornou maronita por interesses políticos e econômicos. Infelizmente, para os Chehab e seus parceiros maronitas, mais uma vez, eles estavam do lado “errado” se aliando a Muhammad Ali.  Ainda pior, os maronitas foram usados para reprimir os drusos leais aos otomanos.  Assim, quando Muhammad Ali bate em retirada em 1840 diante dos otomanos e ingleses, Bashir II, o Chehab “da vez”, se viu abandonado em meio ao caos que se instalou no vácuo de poder deixado pelos egípcios. Naquelas paragens pior que um governo opressivo era governo nenhum. Assim, drusos e maronitas colocados sob o controle rígido dos Chehab agora estavam, momentaneamente, perigosamente livres para um acerto de contas inevitável.

Intiqaam (vingança em árabe) no Líbano é como o ato de respirar: respiramos quando nascemos, respiramos por toda a vida e paramos de respirar quando morremos. Portanto, é algo natural que ninguém reflete ou questiona, principalmente na montanha libanesa.  Os acontecimentos em 1840, combinados em uma espécie de teoria aplicada do caos no Monte Líbano, resultaram na tragédia de 1860. Os elementos, na ocasião, combinaram a erosão de ordem feudal na montanha druso-maronita, revoltas camponesas em terras maronitas e a crescente intervenção das potências europeias, com a França apoiando os maronitas e o Império Britânico apoiando os drusos.

Apesar do habitual “divide et impera”, a modernização pretendida pelos otomanos com as reformas do Tanzimat ironicamente concedia mais autonomia às comunidades etno-religiosas, tentava dividi-las geograficamente em linhas sectárias e promovia a igualdade entre os cidadãos, independente da religião. No entanto, as reformas no papel não levaram em conta a situação caótica no Monte Líbano e surtiram o efeito contrário. Por fim, em virtude de mais uma traição, assim entendida pelos otomanos, os drusos foram usados para “enquadrar” os rebeldes maronitas.

A tragédia, que resultou em dezenas de milhares de mortos, na maioria cristãos maronitas, não pode ser atribuída a nenhum dos atores e fatos isoladamente. No limite, ela poderia ser atribuída, de forma paradoxal, a fraqueza e a decadência dos otomanos. Porém, todos os envolvidos tiveram sua parcela de responsabilidade. Ussama Makdisi, historiador americano de origem palestino-libanesa (sobrinho de Edward Said), sugere que a cultura do sectarismo religioso do Líbano contemporâneo, cujos efeitos todos conhecem, foi um fenômeno que surgiu no cenário do século 19 no Monte Líbano. A erosão de uma hierarquia tradicional sob os golpes da modernização, curiosamente, fortaleceu o discurso religioso e etno-nacionalista, principalmente, pelas ações da igreja maronita. O sectarismo, em suma, teve o efeito similar a se tentar apagar um incêndio jogando gasolina em um mosaico sectário. Afinal lembrando o nacionalista veneziano personagem na novela, Dead Lagoon, de Michael Dibdin: “Não há verdadeiros amigos sem verdadeiros inimigos. Se não odiarmos o que não somos, não podemos amar o que somos.”

As crises de 1840 e 1860 foram o prenúncio de tantas outras que culminaram com a Guerra Civil Libanesa (1975-1990). Obviamente, outros atores, ao longo do tempo, se juntam à tragicomédia libanesa. Os palestinos, após 1948 e 1967, vítimas de uma invasão, ocupação e de uma limpeza étnica idealizada na Europa, patrocinada por uma potência europeia e executada por europeus travestidos de descendentes de levantinos desembarcam no “caos organizado” libanês, pois a “água sempre corre para o lugar mais baixo.”

Maronitas: ser o sal da terra ou ser irrelevante, eis a questão 

Frangieh em árabe significa “franco”, “ocidental” ou mesmo “cruzado”, mas ao contrário do que indica o sobrenome Suleiman Frangieh, um dos candidatos à presidência libanesa, pertence a um clã maronita montanhês que comunga da ideia que os maronitas são o “sal da terra” do Levante integrados ao tecido social e cultural da região. O outro candidato, Jihad Azour (mais uma vez o nome prega peças) representa os maronitas que se imaginam com uma cabeça-de-ponte do “Ocidente” (a tal rosa entre os espinhos frase que o “bispo” de Roma plagiou do historiador romano Ammianus Marcellinus) no “Oriente” eternamente “cercados” e eternamente encarregados de levar a cabo uma “missão” quixotesca de enfrentar a “maré” islâmica.

O contexto histórico, como afirmou Mark Twain, não se repete, mas certamente rima com o passado. Um Líbano dividido em facções e seitas, invariavelmente, dependentes de patronos externos não é novidade como também não é novidade a inesgotável capacidade dos maronitas de fazer escolhas erradas e alianças do “pescoço com o fio da espada” ou do “martelo com a bigorna”. Quem eles foram e continuam sendo em tais metáforas é uma pergunta retórica. A lista de aliados “indecentes” dos maronitas começa com os cruzados, passa pelos imperialistas franceses e culmina com os sionistas confirmando a máxima que aquilo que é ruim sempre pode se tornar pior.

Sobre a relação dos maronitas com os sionistas, o “Massacre de Ehden” parece levar a assinatura indelével, como coautor, da entidade estatal terrorista que fez de assassinatos sua política de estado.  Richard Labévière, jornalista francês especializado em Oriente Médio, em seu livro “La Tuerie d’Ehden ou la malédiction des Arabes chrétiens” (O Massacre de Ehden: a maldição dos cristãos árabes) afirma, baseado em pesquisa fundamentada em farta documentação, que Tony Frangieh, em 1978, teria se recusado a participar de uma “aliança” proposta pelas famílias Gemayel e Chamoun com os sionistas. Por isso, ele, sua família e colaboradores pagaram um tributo de sangue ao serem massacrados por uma esquadrão da morte maronita formada por aqueles que decidiram viver como estrangeiros em sua própria terra.

De acordo com Labévière, Tony Frangieh não apenas rejeitou o papel israelense no Líbano, mas foi além e criticou publicamente o acordo de paz entre o Egito e “Israel”, que segundo Frangieh, terminaria sendo implementado, à custa do Líbano. Certamente, o posicionamento de Tony Frangieh o colocou na lista de alvos preferenciais do “escritório do crime sionista”. No livro “Mossad, 50 ans de guerre secrète” (Mossad, 50 anos de uma guerra secreta) o jornalista israelense Uri Dan afirma que o Mossad colaborou nos preparativos do Massacre de Ehden esperando no futuro fazer, como foi feito com egípcios e jordanianos, um acordo de paz em Líbano dominada pela Falange (“Kateab”) de Bashir Gemayel.

Tony Frangieh, em 1978, argumentava que os sírios entraram no Líbano durante a guerra civil para apoiar os cristãos e impedir a formação de um outro estado “fora-da-lei” na região como cabeça-de-ponte de interesses hostis aos povos do Bilad- al Sham e além. Ademais, Frangieh era contra a cantonização do Líbano desejada pela Falange e seus cumplices sionistas e promoveu a aproximação com seu rival Rachid Karami, líder muçulmano sunita de Trípoli, o que por certo enfureceu falangistas e sionistas.

Enquanto isso, Bashir Gemayel, ícone dos “pés-de-barro” dos radicais maronitas e “guerreiro” de Bikfaya disposto a lutar até a última gota de sangue dos maronitas das terras altas libanesas, se inspirava, segundo Alain Menargues, jornalista francês, em seu livro “Les Secrets de La Guerre du Liban” (Os Segredos da Guerra do Líbano) em um modelo, “à imagem e semelhança”, das gangues de terroristas sionistas, Haganah, Irgun e Stern Lehi que promoveram a limpeza étnica na Palestina durante a Nakba. A submissão de Bashir Gemayel aos sionistas chegou ao ponto de incomodar, por incrível que possa parecer, até os americanos. Em uma longa entrevista concedida, em 2000, pelo ex-embaixador dos EUA no Líbano, entre 1978 e 1981, John Gunther Dean, ele declarou que, reiteradamente, advertiu Gemayel sobre o influxo de armas, dinheiro e conselheiros que vinham dos sionistas:

Se você continuar com isso estará colocando em perigo o futuro da comunidade cristã libanesa. Vocês, cristãos do Líbano, são parte integrante do Oriente Médio. Os maronitas são apenas uma das denominações cristãs que habitam a região ao lado de sírios ortodoxos, assírios, siríacos, grego ortodoxos, armênios e até alguns protestantes (Kennedy, 2000).

John Gunther Dean era alemão de origem judaica asquenaze e refugiado da Alemanha nazista. Ele era um crítico da política sionista e no seu depoimento afirmava que se esforçou para afastar Gemayel da maléfica influencia sionista tentando convencê-lo a adotar uma posição de estadista menos sectária. Porém, quando Gemayel aparentemente percebeu, já havia enveredado por um caminho sem volta e geralmente não há segunda chance em pactos com o diabo. Gunther Dean, por sua vez, em razão de seu posicionamento contrário aos interesses sionistas, foi vítima, em 1980, de um atentado no Líbano e declarou: “Na condição de diplomata americano fui vítima de um atentado perpetrado pelos israelenses com armas financiadas e dadas pelo governo dos EUA.”  O Embaixador Gunther Dean, após sua denúncia, foi aposentado por “insanidade” pelo Departamento de Estado, após 30 anos de carreira. Mais tarde, foi reabilitado, condecorado e ficou provado que o diagnóstico, que quase destruiu sua carreira imaculada, foi forjado pelo chefe do serviço médico do Departamento de Estado americano (Bergman, 2018).

O “Massacre de Ehden”, portanto, para Labévière, foi uma tentativa desesperada de Gemayel, sob o manto de uma suposta “unidade do rifle” (tawhîd al-bunduqiyyah), de adotar as táticas de assassinato do Mossad contra seus inimigos manipulando criminosamente vendetas, tristemente tradicionais, entre os maronitas das montanhas no entorno do Vale do Qadisha. Todavia, o objetivo de Gemayel e seus comparsas não foi alcançado, pois ele morreu afogado no mar de sangue que ajudou a criar, pouco mais de 4 anos após Tony Frangieh. Quanto aos seus mentores sionistas, lhes restou sangrar vagarosamente e continuamente até serem escorraçados do sul do Líbano em 2000.

Agora, 45 depois do Massacre de Ehden, alguns atores são os mesmo e Suleiman Frangieh, o filho, está, mais uma vez, na mira do terraplanismo maronita que atingiu um status patológico. Por isso, esta eleição presidencial no Líbano é decisiva para os libaneses e para a imensa Diáspora libanesa em escala planetária.  Suleiman Frangieh, no aniversário do massacre de Ehden, declarou que existe uma tentativa de intimidar os cristãos com o objetivo de torná-los combustível a ser queimado para alimentar os projetos de divisão e isolamento que só levam a mais autodestruição. Segundo ele, independência não é sinônimo de subordinação ao Ocidente é antes uma garantia e proteção para os cristãos, e acima de tudo, é a salvaguarda do papel fundamental do cristianismo no Líbano, no Levante e no Oriente Médio. E eu acrescento, a opção dos maronitas que se imaginam os “gauleses” do Levante nos levaria a uma nova guerra civil com a repetição das tragédias em Zahle, em Sidon, em Sabra e Chatila, em Trípoli e na Guerra da Montanha.

Este é, obviamente, um assunto caro e sensível a milhões de descendentes de libaneses, no Brasil e no mundo, mas para mim, pessoalmente, não há conflito entre as causas que defendo e o ofício de historiador, mesmo carregando um sobrenome de um clã de Bsharri, a cidade da qual partiram os perpetuadores do “Massacre de Ehden”.

Segundo as crônicas de historiadores maronitas, minha família, como outras da mesma região, migraram de Ain Halyah, nas montanhas de Al-Zabadani, no caminho entre Beirute e Damasco e seguiam, na origem, o rito sírio ortodoxo e tinham um ancestral comum chamado Malek El-Qaissi “Abu Nar” (o “pai do fogo”).  Minha família teria sido a primeira a se assentar, em 1438, nas montanhas de Bsharri adotando um sobrenome aramaico e o cristianismo do rito maronita. Desde então participamos de todos os eventos da história do antigo Monte Líbano e do Líbano contemporâneo, na paz e na guerra, com mamelucos, otomanos, drusos, franceses, palestinos e outros maronitas. Sempre do lado errado da História.

Felizmente, na Diáspora, pela agência pessoal de meu pai, Omar, tudo mudou. Graças a ele, que “cruzou um Rubicão” quase impossível, foi interrompida uma corrente ininterrupta de 6 séculos de tradições, muitas das quais inventadas, com intuito de nos separar do todo.  Assim nasci e cresci embebido na arabidade irredutível cujo pilar central se assenta na Causa Palestina e na fé livre de ódios sectários. Compreendi então que a história da minha família de outros maronitas não pode se basear em supremacismo, excepcionalismo, essencialismo e alianças com aqueles que vieram de longe e se tornaram, por escolha própria, nossos inimigos, mas antes implica em responsabilidades pesadas em relação a nossa comunidade e as outras no seu entorno.

Não pertenço por fé ao universo maronita, mas me orgulho da minha linhagem. Emocionei-me e chorei na estrada sinuosa nas montanhas de onde a distância se avista Bsharri quando lá estive. Fui recebido de maneira fraternal e inesquecível por todos como um “filho pródigo” que retornava após gerações. Nunca, nem mesmo no país em que nasci, me senti tão em “casa” como naquelas montanhas com as quais eu sonhava acordado embalado pelas memórias dos que vieram antes de mim. Porém, também me emocionei em Zgharta-Ehden, no Bekaa, em Trípoli, em Beirute e no sul negligenciado, por gerações, e convertido em cemitério de nossos inimigos. Senti a presença do divino no adhan das mesquitas sunitas e xiitas, assim como no sino das igrejas do cristianismo maronita, ortodoxo, melquita, os primordiais, os únicos e os legítimos. Rezei no túmulo da Sayyda Khawla, em Baalbek, com meus irmãos xiitas, rezei na Grande Mesquita Mansouri, em Trípoli, com meus irmãos sunitas, meditei com meus irmãos maronitas no Mosteiro de Mar Lisha, no “Vale Santo” do Qadisha, compartilhei o sal com meus irmãos drusos no Chouf lamentando o sangue derramado entre nós, estupidamente, na Guerra da Montanha. Abracei os “chebab” do exército libanês, de todos os credos e os da Resistência, rimos juntos e os agradeci por defender o solo libanês na nossa ausência por gerações.

Velhas vendetas não me interessam e milicianos, mesmo aqueles com títulos falsos, não me representam. Um aviso aos maronitas que insistem em se autoimolar em um altar imaginário, não confundam irrelevância com invencibilidade nem a insignificância de seus feudos montanhosos com inexpugnabilidade. O Líbano não é paraíso nem inferno e não pode se tornar um país em que a existência de um é baseada no extermínio do outro. Parem de se imaginar a um passo do êxodo ou da aniquilação, ergam suas cruzes, toquem seus sinos, mas baixem suas lanças, sejam o “Patriarca Lucas Al-Banharani”, sejam “Khalil Gibran” e se assumam como o sal da terra de um Bilad al-Sham árabe.

Por fim, lembrem-se, somos a cruz e o crescente, somos o Ocidente e o Oriente e somos todos libaneses, no Líbano e na Diáspora, pois os aventureiros e invasores passam como o vento, como sabemos há milhares de anos, e nós permanecemos como leões para Eternidade.


Bergman, Ronen. Rise and Kill First: The Secret History of Israel’s Targeted Assassinations. Random House, 2018.

Boykin, John. Cursed is the Peacemaker: The American Diplomat Versus the Israeli General, Beirut 1982. Applegate Press, 2002.

Dan, Uri. Mossad, 50 ans de guerre secrète. Presses De La Cite, 1995.

Labévière, Richard.  La Tuerie d’Ehden ou la malédiction des Arabes chrétiens.  Fayard, 2009

Makdisi, Ussama. The Culture of Sectarianism: Community, History, and Violence in Nineteenth-Century Ottoman Lebanon. University of California Press, 2000

Menargues, Alain. Les Secrets de La Guerre Du Liban. Albin Michel, 2004.

Naaman, Paul Abbot. The Maronites: The Origins of an Antiochene Church. Liturgical Press, 2011.

Rabah, Makram. Conflict on Rabah, Makram. Mount Lebanon: The Druze, the Maronites and Collective Memory. Edinburgh University Press, 2020

Salibi, Kamal. A House of Many Mansions: The History of Lebanon Reconsidered. University of California Press, 1988.

 

Association for Diplomatic Studies and Training

Foreign Affairs Oral History Project

AMBASSADOR JOHN GUNTHER DEAN

Interviewed by: Charles Stuart Kennedy

Initial interview date: September 6, 2000

 

 

 

 

Share Button

Deixar um comentário

  

  

  

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.