O genocídio em Gaza e os judeus divididos em um mundo de dor

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Foto: ONU/Divulgação

por RED EN PT ES

02/03/2024

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

Nós usualmente falamos sobre traumas individuais. Mas também há trauma coletivo, o qual opera tal qual o trauma individual. Quando memórias traumáticas vêm à tona com muita intensidade, a parte racional do cérebro é como que ‘desligada’ e a pessoa entra em um estado de medo e agressividade. Traumas originados há muito tempo atrás ressurgem como se eles estivessem emergindo no momento atual, de forma que o presente se torna o passado e o passado torna-se o presente. Ora, quando observamos a cultura judaica, com todas as suas características belas e admiráveis, é impossível não perceber que há algo de único na mesma: ela respira e transpira insegurança e medo. A maioria das datas comemorativas judaicas que são associadas a uma narrativa histórica emergem de relatos de superação frente a grupos étnicos e sociais que buscam nos aniquilar. Essas são as histórias que contamos para nossos filhos à mesa. É bem verdade que, de forma geral, nós alcançamos triunfar sobre o mal. Mas o aviso está lá: há séculos que tentam nos destruir. E tentarão fazê-lo novamente.

Gabor Maté, Diálogo com meus filhos

“Deus não muda o destino de um povo até que o povo mude o que tem na alma”

Maomé, Al Corão, Sura 13, 11

Introdução

Dedico este trabalho aos meus amigos judeus. Há algum tempo que venho tentando entender a dificuldade de tantas pessoas que eu amo e admiro em reconhecer a violência sistemática perpetrada ao povo palestino pelo Estado de Israel. Essa dificuldade mostra-se particularmente enigmática e paradoxal quando observamos o atual conflito em Gaza, que vem sendo filmado, fotografado, relatado e divulgado pela internet em toda a sua iniquidade. Não obstante, ainda hoje quando converso com amigos judeus ouço argumentos como: “o termo genocídio é tecnicamente inadequado”; “o lobby árabe-palestino protege o Hamas e esconde suas atrocidades”; “o Exército Israelense está fazendo todo o possível para evitar vítimas colaterais, mas os palestinos usam as crianças como escudos humanos” ou, até mesmo, “quando tu questionas nosso ponto de vista tu revelas teu antissemitismo e te tornas conivente com as barbáries cometidas pelo Hamas”.

Venho evitando me contrapor a estes “argumentos”. Pelo simples fato de que eles não são compatíveis com o nível intelectual e moral de meus amigos. Trata-se de evidente racionalização. Não cabe perguntar quantas pessoas “deveriam” ser mortas para que Lula seja autorizado a usar o termo “genocídio”. Qualquer pessoa lúcida e de boa índole sabe qual o significado da destruição sistemática do sistema hospitalar de Gaza; do bombardeio e aniquilação de Universidades e escolas; da destruição de cemitérios e lugares santos; do corte de água e luz; do cerceamento do ingresso de alimentos; do fuzilamento (por snipers) de pescadores que ousam se afastar da praia para obter peixes para alimentar sua família. O nome disso é genocídio.

A questão é: porque tantos se recusam a ver o óbvio e se ofendem quando se dá o nome pertinente à tragédia em curso? Porque tantas pessoas de boa índole, de coração enorme, de formação intelectual impecável, portadores de princípio políticos e morais rigorosos, defensores da justiça e da equidade, insistem em negar a realidade que se impõe a qualquer um que tenha coragem de assistir aos vídeos que abundam na internet ou ler os relatos dos médicos sem fronteira e de funcionários da ONU que trabalham em Gaza?

Chayut viu o seu verdadeiro rosto nos olhos de uma criança

Noam Chayut é um judeu-israelense cofundador da ONG em defesa dos palestinos Rompendo o Silêncio. Ele também é o autor do emocionante livro A menina que roubou meu Holocausto. Neste livro, ele narra sua história de vida, desde seus anos de escola, passando pela visita a Auschwitz (quando tomou a decisão de se transformar em um militante da causa sionista-israelense), pelo período de serviço militar (que cumpriu na Cisjordânia ocupada), até os dias atuais. O título da obra autobiográfica diz respeito a um evento ocorrido durante o serviço militar que transformou radicalmente sua percepção do conflito entre judeus e palestinos. Chayut relata que, após um dia e uma noite de operações em uma aldeia palestina (marcada por bombardeios, invasões e revistas de casas e moradores), ele tentou confraternizar com um grupo de meninos e meninas que brincavam na rua. Voltou-se para eles e, com seu melhor sorriso, ofereceu gomas de mascar para o grupo. Todas as crianças saíram correndo em pânico. Menos uma menina, cujo choque a deixou paralisada, olhando para ele e chorando. Chayut colocou-se no lugar daquela menina e viu o que ela via: um assassino de pessoas, sonhos e esperanças. A menina o olhava como qualquer criança judia olharia um soldado nazista durante a II Guerra Mundial: ele era o agente do Holocausto.

Minha própria epifania

Eu sempre fui – e continuo sendo – um apaixonado pela cultura judaica. Nem poderia ser diferente. Nasci, me criei e continuo morando no Bom Fim, o bairro judeu de Porto Alegre. Pelo menos metade dos meus amigos de infância eram judeus. Iniciei e concluí o ensino fundamental no Colégio Anne Frank, juntamente com minhas duas irmãs. Ambas, na sequência, foram para o Colégio Israelita Brasileiro. Eu fui para o Colégio de Aplicação da UFRGS, onde me apaixonei por uma judia, filha única de um casal absolutamente admirável pela cultura e afetuosidade e que me tratavam como se eu fosse um filho adotivo.

Ainda no colégio, antes de ingressar na Faculdade de Ciências Econômicas, tive meu primeiro contato com os escritos de Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Leon Trotski e Sigmund Freud. E me apaixonei pelo que li: o mundo começava a fazer sentido para mim. E quem me guiava no caminho da descoberta eram autores judeus. Já na Faculdade, descobri David Ricardo e Michal Kalecki. Ambos judeus. Não fosse eu um “livre-pensador crônico e agudo”, incapaz de me deparar com qualquer assertiva sem coloca-la em dúvida, correria o sério risco de me converter ao judaísmo. …. Acabei virando hegeliano. O que não deixa de ser uma forma de judaísmo. Ainda que na versão panteísta (e blasfema, segundo o rabinato) de Baruch Spinoza.

Apesar de viver intensamente as lutas políticas durante a crise da ditadura na universidade, no sindicato dos bancários e no PT, e apesar do conflito na Palestina ser objeto frequente de debates entre meus companheiros de militância, nunca alcancei ter uma posição clara e determinada sobre esse tema. Coloquei-o “entre parênteses”. Até que fui visitar Israel há uns quinze anos atrás. Desci no aeroporto Ben Gurion e fui para Tel Aviv. E me apaixonei pela cidade cosmopolita, agitada e inclusiva. Me hospedei perto da praia, num ponto onde crianças e adolescentes surdos se encontravam para conversar. Meninas de hijab conversavam com meninos de kipá. E, volta e meia, soltavam as gargalhadas sonoras e estridentes dos surdos. Pura poesia.

De Telavive fui para Jerusalém. E descobri que havia um abismo entre as duas cidades. A chamada “Cidade Santa” tem o odor e o sabor do ódio. E este sabor-odor está em todas as partes. O templo do Santo Sepulcro é controlado por sacerdotes de seis distintas Igrejas Cristãs. Suas brigas e disputas são seculares e praticamente não há diálogo entre os “pares”. Uma das correntes (se bem me lembro, a Católica Ortodoxa) controla o acesso ao Sepulcro propriamente dito. Antes de ingressar no espaço exíguo os fiéis-turistas são instados a comprar uma vela. Logo, são empurrados para dentro e, em poucos minutos, puxados para fora, com vistas a permitir o ingresso dos que aguardam na fila. Tal como o espaço, o local para as velas é ínfimo e está sempre lotado. Deduzi que as mesmas velas são vendidas várias vezes ao dia. Tudo pelo amor cristão.

A cidade antiga é marcada por ruas estreitas e pela abundância de casas assobradadas e pequenos edifícios. Quase não há lugar para transitar. Com uma única (e honrosa?) exceção: a praça do Muro das Lamentações. Me surpreendi com o tamanho da praça e resolvi ler sobre o “causo”. Descobri que, anteriormente, no local havia um bairro palestino. Todos os moradores foram deslocados e suas casas foram destruídas. Sem que tivessem recebido qualquer indenização.

Ao final do dia de sexta-feira, a praça em frente ao muro fica lotada para comemorar o início do Shabat. Mas, quando estive lá, uma área específica era resguardada para os soldados, que chegavam fortemente armados, oravam por alguns minutos e davam início a uma espécie de dança de guerra, gritando, pulando e ostentando seus rifles e metralhadoras. Não entendi nada do que era dito. Tentei filmar e fui impedido pela vigilância local. Só tive uma certeza: eles não estavam recitando o Quinto Mandamento.

Toda a visita por Jerusalém foi marcada por diversos eventos similares, alguns dos quais me causaram profundo mal-estar. Não sinto qualquer vontade de retornar a esta cidade. Mas devo admitir que o que eu vi me ajudou a entender o que viria adiante.

Pululam ofertas de viagens turísticas guiadas para Belém, o Mar Morto, Jericó e Hebron. Mas eu resolvi ir de ônibus de linha; um meio de transporte que só é utilizado pelos palestinos. Cruzei o muro que Israel construiu em torno da Cisjordânia com meu passaporte brasileiro. E fui tratado como inimigo: só aliados dos palestinos fazem o trajeto em ônibus comuns. Chegando em Belém, após uma rápida caminhada entre a Igreja da Natividade e o Mercado Central, parei num café para analisar como poderia visitar Hebron. Logo sentou-se ao meu lado um jovem perguntando se eu precisava de um guia. E começamos a conversar. Ele era professor de História. Mas também trabalhava como guia para pagar as contas. E me levou para ver o que eu não gostaria de ter visto. Mas que precisava ver.

Judeus e muçulmanos acreditam que o túmulo de Abraão e Sara se encontra em Hebron. Para impedir que os palestinos monopolizassem o acesso ao mesmo, Israel instalou uma “colônia vertical” na forma de um enorme edifício ao lado do túmulo e em frente ao Mercado Municipal. Temerosos de agressões dos palestinos aos moradores da colônia, Israel cimentou as portas de todas as lojas do Mercado ancestral voltadas para o edifício. E fez o mesmo com as portas de entrada das casas próximas. Hoje, os mercadores expõem seus produtos na rua e os moradores das casas usam as janelas para acessá-las.

Toda a área aberta do mercado está coberta com uma tela para impedir que os transeuntes sejam atingidos pelo lixo lançado das janelas pelos colonos judeus. A tela está impregnada de detritos. Mas eles não são suficientes para impedir a visualização de miras laser no seu corpo. Olhando para o alto, consegue-se observar de onde elas vêm: da cobertura do edifício, lotada de soldados da IDF.

Meu guia me convidou para conhecer a Mesquita ao lado do túmulo de Abraão. Mas os soldados israelenses controlam e proibiram o meu ingresso alegando que eu não era muçulmano. Sem alternativas, fomos ao campo de refugiados próximo. Segundo fui informado, este é o campo de refugiados mais estruturado de toda a Palestina. Eu não alcanço imaginar como serão os demais. O nome daquele lugar deveria ser FOME.

Enquanto caminhava pelo local, fotografava e/ou filmava cenários. Num certo momento, fui cercado por um grupo de pré-adolescentes que me roubaram o celular. Meu guia interveio sem sucesso: os garotos alegavam que eu deveria agradecer por não ser espancado, pois era evidente que eu era um espião de Israel. Foi quando o funcionário da ONU chegou ao local e acalmou os meninos. Mas a tensão foi grande e cheguei a sentir medo. Até que olhei nos olhos daquelas crianças. E vi o mesmo que Chayut: medo, revolta e desesperança. E chorei como a criança que roubou o Holocausto de Chayut.

Organizando as ideias que saíram do lugar

Passei boa parte dos dias que estive em Jerusalém na livraria de Mahmoud Muna, a Educational Bookshop. Mahmoud é uma pessoa admirável, culto, inteligente, atencioso e surpreendentemente alegre. Quando saí de Jerusalém, carregava uma pequena biblioteca comigo. Foi em sua livraria que comecei a ler o clássico de Ilan Pappe, A limpeza étnica da Palestina. Já na Jordânia, visitando Petra, cheguei nas partes mais horripilantes do livro. Eu havia sobrevivido ao relato do morticínio na evacuação de Haifa. Mas o massacre de Tantura me embrulhou o estômago. Demorei para voltar a lê-lo.

Não obstante, a leitura de Pappe me abriu uma nova senda de interesse: como foi que figuras como Chayut e Pappe transitaram da militância sionista para a crítica do Estado de Israel? Como foram as dores dessa transição? Como as suportaram, enfrentaram e superaram? Que circunstâncias lhes permitiram dar um passo tão difícil e tão raro entre judeus, sejam israelenses, sejam da diáspora?

Para entender isso, li inúmeros textos e assisti a um número ainda maior de vídeos. E não demorou para perceber que esse processo guarda similaridade com aàquele descrito por Thomas Khun em A Estrutura das Revoluções Científicas. Os que abraçam o velho paradigma não desconhecem as falhas e inconsistências do mesmo. Mas procuram caracterizar suas deficiências como “exceções”, como problemas ainda não resolvidos, mas passíveis de solução dentro dos padrões vigentes. Mais: tal como em Khun, os debates acerca dos problemas e inconsistências do velho paradigma realizam-se apenas entre os defensores do paradigma dominante: não há espaço para o ingresso de críticos radicais E fica o aviso: aquele que insistir em “acordes dissonantes” corre o sério risco de ser expulso da comunidade e passar a ser tratado como um lunático, cujos textos não merecem ser, nem lidos, nem publicados.

O mesmo se dá no debate acerca das origens e do desenvolvimento e do conflito entre judeus-sionistas e palestinos. Só que, nesse caso, o “Colégio Judaico-Sionista” não é um grupo científico-acadêmico, que pune os trânsfugas com censura e cancelamento. O Colégio Judaico-Sionista conta com instrumentos muito mais eficazes para dificultar (e, no limite, impedir) a crítica à “História Oficial”. São essencialmente três os instrumentos mobilizados. Apresentamo-los abaixo.

O Estado de Israel e seus peculiares Aparelhos Ideológicos

A versão sionista oficial do conflito entre judeus-israelenses e palestinos é sustentada por um Estado organizado, que assumiu como uma de suas tarefas centrais manter e ampliar o apoio da opinião pública interna e externa a Israel. A forma mais simples de entender as práticas de difusão e inculcação da versão  oficial do conflito junto à opinião pública externa  é assistindo as duas séries produzidas pela rede Al Jazeera sobre o lobby israelense junto à grande imprensa, Universidades e representantes dos principais partidos nos Estados Unidos e no Reino-Unido. São 8 capítulos detalhando os instrumentos de combate a agentes e organizações que fazem a crítica do sionismo e do Estado de Israel. Dentre estes instrumentos, salienta-se:

1) a articulação e financiamento dos mais diversos comitês e associações em defesa de Israel (pretensamente “espontâneos e independentes”). Seu financiamento envolve, para além do custeio das operações, o pagamento de salários, soldos, bolsas, presentes e viagens para os líderes das “ONGs” (sempre off-off-off-records, claro);

2) pagamento de auxílios diversos para campanhas e iniciativas sociais de políticos afinados com causa israelense (além de presentes, patrocínio de viagens de férias, e etc. e tal);

3) apoio informacional a jornais e jornalistas influentes, com a disponibilização just in time de versões “fidedignas e documentadas” sobre temas de interesse. Este apoio é fornecido preferencialmente pelos comitês em defesa de Israel organizados de forma “livre e espontânea” nos mais diversos países. Simultaneamente, as Embaixadas e Consulados promovem visitas de jornalistas e influencers a Israel, com direito a: a) cursos sobre a cultura judaica e a história do país; b) hospedagem e alimentação; c) visitas a pontos turísticos e saídas noturna. Mas o maior “mimo” dado aos jornais que não se deixam cair em antissemitismo é a garantia de propaganda de empresas israelenses e multinacionais com interesses na defesa do Estado de Israel; e last but not least

4) espionagem, monitoramento e hackeamento de agentes civis antissionistas nos mais diversos países e utilização das informações de forma extraordinariamente seletiva com vistas à difamação dos oponentes. Oponentes que – como a série da Al Jazeera revela – vão de Jeremy Corbyn (ex-líder do Partido Trabalhista inglês) a Marcelle Obeid (Presidente da Associação de Estudantes em Prol da Justiça na Palestina no Campus David da Universidade da Califórnia), dentre inúmeras outras figuras dos mais distintos escalões e expressão social.

Ainda mais sofisticada é a política de inculcação ideológica junto às comunidades judaicas. Ela apenas se inicia pelo controle estrito de currículos e materiais didáticos em escolas judaicas, seja em Israel, seja no exterior. Um aspecto central desta política educacional é evitar qualquer questionamento à historicidade e cientificidade dos relatos bíblicos. Acima de tudo (mas não só, como veremos adiante) porque é a Torá que sustenta o “direito inviolável e inquestionável dos judeus à Terra Prometida”

Tão importante quanto a defesa da Torá como fonte histórico-científica é a sustentação e financiamento de uma ampla rede de “formação cultural” extra escolar. Esta rede passa pela criação e apoio aos mais diversos espaços de socialização, tais como clubes de lazer, acampamentos para jovens, associações comunitárias, grupos filantrópicos, grupos de leitura e debate da história de Israel e da literatura judia, etc. Esta rede é monitorada de perto por agentes dos consulados de Israel nos mais diversos países. A este respeito vale muito ouvir o relato dos jovens Aaron e Daniel Maté no vídeo-debate donde extraímos a primeira epígrafe acima. Ambos descrevem a atenção especial que recebiam dos tutores nos acampamentos sionistas dos quais participavam em função de sua compulsão crítica, herdada do pai, conhecida “ovelha negra” da comunidade judaica canadense. No caso de ambos, o excesso de atenção, vigilância e doutrinação acabou “saindo pela culatra”. Mas os filhos de Gabor são exceções à regra. De forma geral, a repetição persistente de uma determinada versão da história acaba por torna-la crível. Como bem o ensinava Goebbels.

O Trauma Real e a Cultura do Trauma

O segundo elemento de resiliência da “versão oficial sionista” do conflito palestino é aquele que me parece ser o mais eficaz para garantir a unidade de leitura e ação no interior da comunidade judaica. Este elemento envolve o permanente resgate e, no limite, o culto do “trauma judaico”.

Não pode haver a menor sombra de dúvida de que o povo judeu sofreu inúmeras perseguições ao longo do tempo e que muitas delas foram excepcionalmente violentas e traumáticas. O Holocausto nazista é apenas a versão mais recente, mais sistemática e mais violenta de todas as perseguições sofridas ao longo da história. Mas, de forma alguma, foi um evento anômalo. Desde a Antiguidade, o precoce e radical monoteísmo judaico alimentou a percepção de que se tratava de um povo muito estranho e perigosamente altivo. Para que se entenda adequadamente este ponto é preciso entender que a mitologia greco-romana não era apenas politeísta: ela era sincrética: absorvia as deidades dos povos periféricos e exigia que estes também adotassem as deidades greco-romanas dentro do seu panteão. Este passo era considerado um sinal importante de disposição para a integração e a solidariedade política e cultural.

Ora, dentre todos os povos sob tutela greco-romana (desde Alexandre até a derrota do Império Romano do Oriente pelos árabes muçulmanos), o povo judeu foi o que mais resistiu às políticas de helenização e sincretismo impostas pelo Egito Ptolomaico, pelos Selêucidas e pelo Império Romano. A revolta dos Macabeus contra Jasão no século II A.C é fruto, justamente, de suas concessões ao sincretismo. A primeira guerra Judaico-Romana do século I DC também deitou raízes em embates religiosos. Assim como a revolta de Bar-Kokhba, em 132 D.C contra o Imperador Adriano, que aprofundou a diáspora judaica iniciada nos primeiros anos do Império Ptolomaico.

Espalhados pelo Mediterrâneo e com uma sólida rede de conexões familiares e comunais assentada, justamente, na peculiaridade de sua religião, os judeus passaram a se especializar crescentemente em atividades comerciais e financeiras. Este processo atingirá seu ápice nos séculos III e IV, quando o cristianismo ganha crescente e expressão até tornar-se a religião romana oficial com Constantino. Ora, uma das principais diferenças das religiões politeístas e monoteístas é que as primeiras são sincréticas e inclusivas. As segundas são dogmáticas e excludentes. De sorte que, com a consagração do cristianismo como religião de Estado, os judeus passam a sofrer críticas e ataques ainda mais acerbos por sua recusa em abandonar a religião mosaica.

Na medida em que o Império Romano do Ocidente entra em crise, as trocas comerciais diminuem em intensidade e se aprofunda a produção autárquica (para o consumo da comunidade). Nestas circunstâncias, a aquisição de bens de maior complexidade produtiva, que não podiam ser produzidos em pequenas comunas, tornava-se cada vez mais difícil. Seus preços se elevaram em termos relativos enquanto as receitas monetárias dos compradores caiam em função da autarquização produtiva. Nesse processo, qualquer pagamento de juro por empréstimos contratados no passado parece uma exorbitância. Mercadores e financistas passam a ser vistos como agentes exploradores. E se os exploradores são “estrangeiros”, que não comungam da religião dominante, não reconhecem Cristo e descendem daqueles que mataram o Salvador, então não há porque honrar os compromissos assumidos anteriormente: o melhor a fazer é negar as dívidas e expropriar os exploradores.

Essa leitura crítica ao judaísmo vai emergir na Idade Média. Mas ela vai ser levada ao seu limite extremo no início da Idade Moderna, após a Revolução Comercial, quando as demandas de crédito são fortemente ampliadas e a rentabilidade dos negócios é errática. O Mercador de Veneza, de Shakespeare, traduz de forma cristalina a percepção dominante no período sobre os seguidores da religião de Moisés. Mas se o bardo nos presenteou com uma comédia (de gosto bastante discutível, no que diz respeito à caracterização de Shylock), os reis ibéricos nos “presentearão” com a nova Inquisição, com a expulsão dos judeus, e com a morte dos recalcitrantes. Afinal, o cristianismo é a religião do amor. Não é mesmo?

Poderíamos seguir apresentando os diversos momentos e movimentos da violência cristã contra os judeus até a emergência do Holocausto nazista. Mas nosso objetivo aqui não é fazer um relato da história do antijudaísmo. Apenas queríamos deixar claro que, nem desconhecemos, nem subestimamos, a longa história de perseguição ao povo judeu. Esta história é real e justifica o “trauma coletivo” da comunidade judaica.

O problema é que, como muito bem lembra Gabor Maté na epígrafe com a qual abrimos este texto, uma das principais características do trauma é que ele apaga as diferenças entre passado, presente e futuro. Cada vez que nos deparamos com eventos similares àqueles que geraram o trauma, os percebemos como mera repetição. E reagimos de acordo. Ainda que, eventualmente, não se trate disso.

Creio que esse ponto ajuda muito a esclarecer porque a imensa maioria dos judeus reagiu ao 7 de outubro com tanto medo e tanto ódio. Não se trata de subestimar a violência perpetrada pelo Hamas. Trata-se de tentar entender o desespero e o desejo de vingança que acometeu a tantos. O 7 de outubro foi lido como mais uma manifestação do antijudaísmo disseminado nos corações e mentes dos goyins. Em dois textos anteriores publicados na RED (aqui e aqui) procurei demonstrar o equívoco e os perigos associados a essa leitura a-histórica dos fenômenos. Voltarei a fazer algumas considerações sobre isto ao final deste artigo. Antes, porém, precisamos analisar com mais cuidado as peculiaridades do trauma coletivo que aflige a comunidade judaica.

Dissemos acima que o fundamento ancestral do antijudaísmo foi a precocidade e radicalidade do apego deste povo peculiar ao monoteísmo. Pergunta que não quer calar: este fundamento persiste? … Parece-me evidente que a resposta só pode ser negativa. O islamismo é a religião que mais cresce no mundo e é tão monoteísta quanto o judaísmo. Muçulmanos e judeus ortodoxos pretendem (com alguma razão) que o monoteísmo cristão é, no mínimo, estranho. E, de fato, a Santíssima Trindade é uma charada. Mas mesmo admitindo que o monoteísmo cristão seja algo “capenga”, é preciso entender que, com o Cisma Ortodoxo e com a Reforma Protestante, o cristianismo perdeu qualquer capacidade de se apresentar como a “verdadeira fé”. E isto na medida em que ele se tornou uma plêiade de igrejas e seitas que apresentam tantas controvérsias entre si como com as demais religiões “do Livro”. Hoje em dia, a sustentação do cristianismo é indissociável da defesa do ecumenismo e da tolerância religiosa.

Como se isso não bastasse, o número de judeus ateus e agnósticos é elevadíssimo nos dias atuais. Excetuando-se os ortodoxos, a grande maioria dos judeus tem uma relação tênue com a religião de Moisés. Na verdade, o sionismo, desde as suas origens na Europa do século XIX, é um movimento nacionalista laico e discretamente (quando não abertamente) antirreligioso. Por mais surpreendente que isso possa parecer, atualmente o principal sustentáculo religioso do sionismo não se encontra no judaísmo, mas naquelas vertentes evangélicas e neopentecostais do cristianismo que veem no retorno dos judeus a Israel um fator capaz de acelerar o novo advento de Cristo.

Igualmente bem, não há como pretender que o “antissemitismo moderno” (se é que ele existe) assente-se em alguma forma de racismo. Até porque já está provado que os judeus não conformam uma raça ou etnia específica. Há mais proximidade no DNA (diploide e mitocontrial) de palestinos e judeus sefarditas do que no DNA destes últimos e os judeus asquenazes. O que determina, então, que os judeus se percebam como um povo diferenciado e pretendam que os goyins os vejam como tal?

Do meu ponto de vista esta percepção se assenta no trauma e seu culto. O trauma judaico é absolutamente real. E deve ser compreendido e respeitado. Mas, ao lado do trauma real viceja uma “cultura do trauma”, enraizada na mitologia judaica e sistematicamente promovida pelo Estado de Israel. Expliquemo-nos.

A despeito de todos os esforços de pesquisa (fartamente financiada pelo Estado de Israel), até hoje não foi encontrada uma única prova histórica ou arqueológica da escravização no Egito ou do Êxodo. Sequer existem evidências da existência dos reinos de David e Salomão. O que a arqueologia conseguiu demonstrar foi tão somente que, entre os séculos XI e IX A.C., Jerusalém não passava de uma vila sem qualquer expressão econômica ou militar. Inicialmente pretendeu-se que as evidências arqueológicas tivessem sido destruídas pelo tempo. Até que começaram a aparecer artefatos de barro e pedra tão rudimentares que só serviram para comprovar a existência, no período dos propalados reinos, de uma comunidade bastante pobre de pastores, agricultores e produtores de artefatos extraordinariamente simples. Os únicos traços de um palácio no território palestino foram encontrados na região que corresponderia ao Reino de Israel (por oposição ao Reino de Judá) e não há qualquer dúvida de que sua construção ocorreu séculos após o período que a Bíblia atribui a David e Salomão (a esse respeito, veja-se A Invenção do Povo Judeu, de Shlomo Sand).

Não obstante, os judeus insistem em tomar sua mitologia como história.  O que tem um desdobramento muito interessante. Toda a mitologia judaica está assentada em ciclos de sofrimento e redenção. Do Jardim do Eden à queda no mundo do trabalho; das primeiras comunidades fraternas ao Dilúvio; da língua comum à Torre de Babel; da venda de José por seus irmãos à escravidão no Egito e, posteriormente, ao Êxodo; do glorioso reino de Salomão à escravização na Babilônia por 70 anos, antes do retorno à Terra Prometida. A mitologia judaica é uma versão romanceada do mito do Eterno Retorno. Ouso mesmo pretender – na contramão das interpretações dominantes – que o pessimismo e a descrença em qualquer redenção final expresso em Eclesiastes está longe de ser um “desvio heterodoxo”: ele apenas explicita e sintetiza aquela que é a mensagem maior da Torá: estamos destinados a repetir erros, a pecar e a sofrer.

Ora, essa mitologia é impregnada nos membros da comunidade judaica desde a mais tenra infância, e acaba por reforçar, reificar e sacralizar as experiências traumáticas reais derivadas de séculos de incompreensão e perseguição. Todo e qualquer trauma carrega perturba as referências espaciais e temporais. É como se tudo estivesse se repetindo da mesma maneira e da mesma forma. Mas o trauma real dos judeus ganha um reforço mitológico que o torna uma espécie de “destino previamente traçado”. De uma perspectiva rigorosamente religiosa, este destino é imposto pelo Senhor sempre que seu povo sai da boa senda e deixa de obedecer aos seus mandamentos. De uma perspectiva laica, o destino é imposto pelos homens, que têm aversão a tudo o que é diferenciado e único e, por extensão, tem aversão à peculiar cultura judaica. Não importa se abraçamos a perspectiva religiosa ou laica. O único que importa é que a recorrência da perseguição – vivenciada de forma trágica da Inquisição ao Holocausto – está anunciada na Bíblia e é uma parte central da educação recebida em casa. Desde sempre o recado dado é o mesmo: nós só podemos contar com nós mesmos. Os demais, por mais solidários e humanistas que pareçam ser não se identificam conosco, não carregam a nossa sina, e podem se voltar contra nós a qualquer momento sem qualquer motivo aparente.

Surfando na Islamofobia 

A Islamofobia é tão antiga no ocidente quanto o próprio Islã. E isso não é gratuito. Na emergência da nova religião na primeira metade do século VII a hegemonia política e militar no eixo “Mediterrâneo-Crescente Fértil-Golfo Pérsico” era disputada pelos Impérios Bizantino (cristão) e Persa (zoroastriano). Em menos de meio século, a expansão do Islã levou à queda do Império Persa e à expulsão dos Bizantinos de todo o Oriente Médio e do Norte da África. Menos de um século após a criação da nova religião, o Islã havia penetrado no norte da Índia, conquistado a Península Ibérica e ameaçava a cristandade no sul da França, da Itália e nas ilhas do Mar Egeu.

Ainda não há consenso acerca dos determinantes do acachapante sucesso político, militar e cultural do novo credo. Mas abundam evidências de que a resistência dos territórios conquistados foi mínima, em função de algumas peculiaridades do islamismo, envolvendo: 1) a grande tolerância para com as chamadas “Religiões do Livro” (a Torá), vale dizer, para com o Judaísmo e as distintas vertentes do Cristianismo; 2) o respeito e preservação dos padrões de gestão e das leis dos povos conquistados; 3) o caráter liberal e pouco opressivo da política de exação fiscal; 4) os padrões particularmente igualitários e inclusivos de estratificação social (quando se toma por comparação as sociedades cristãs, persas e hinduístas, estratificadas em castas e estamentos); 5) a rápida incorporação dos convertidos à Umma, vale dizer, à comunidade muçulmana, com os mesmos direitos iguais dos árabes; 6) a distribuição liberal e relativamente equânime dos espólios de guerra entre todos os participantes das conquistas; e, não menos importante, 7) a consagração precoce e revolucionária dos direitos das mulheres à propriedade, à herança e ao divórcio por decisão unilateral.

Não deixa de ser interessante observar que as características do islamismo que a historiografia moderna identifica como o “segredo do sucesso e do rápido espraiamento do novo credo” estejam em total contradição com a leitura hoje dominante no Ocidente sobre as características dessa religião particular. E essa contradição não é gratuita. Da mesma forma como as recorrentes perseguições assombram os judeus, induzindo-os a precaverem-se com os goyins, a rápida expansão do Islã gerou um trauma nas sociedades cristãs. Um trauma que – a despeito das Cruzadas e da prolongada dominação colonial e imperialista – ainda persiste. O Islã não é apenas a religião que mais cresce no mundo: ela fundamenta e organiza parcela não desprezível da resistência do “Sul” à hegemonia do “Norte” desenvolvido. E o faz, inclusive, ocupando fisicamente espaços que, do ponto de vista de cristãos e judeus caucasianos, não lhes caberia ocupar.

A reação a este persistente assédio traumático foi a construção de uma caricatura de péssimo gosto: o muçulmano padrão que habita a cabeça de homens e mulheres do “mundo livre, iluminista e cristão” é fundamentalista religioso, odeia o ocidente, tem prazer em matar e em morrer pela sua causa, é machista, misógino e homofóbico, é intolerante com as demais religiões, e é avesso ao progresso científico e filosófico, pois acredita que o Corão explica tudo o que é necessário saber sobre o Universo.

Apesar dessa caricatura do “muçulmano típico” ser uma construção ideológica voltada que busca legitimimar às inúmeras “cruzadas contra o infiel”, (inclusive aquela cruzada em curso, hoje, na Faixa de Gaza) ela encontra-se amplamente difundida. E é tão “verdadeira” quanto pretender que “cristão típico” seja o neopentecostal que aceita tudo o que o pastor lhe diz, acredita que o mundo foi criado há 5.500 anos atrás e que Darwin é filho do demônio, apoia Israel e o genocídio palestino, é homofóbico, favorável à pena de morte, contrário ao aborto, queima templos de religiões politeístas e apoia a ultra direita e os partidos neofascistas mundo afora. Qualquer católico, luterano ou ortodoxo cairia na gargalhada lendo algo assim. Ainda que muitos achem “razoável” pretender que o muçulmano padrão milita no Estado Islâmico. Por quê?

Por diversos motivos. Não temos condições de explorar o tema aqui com a profundidade que ele merece. Mas duas determinações são fundamentais: esta leitura é extremamente funcional para legitimar, tanto o Estado de Israel (e sua política de Apartheid e exclusão dos palestinos), quanto as guerras imperialistas levadas a cabo contra os países muçulmanos (especialmente, contra os produtores de petróleo). Desde o século XIX até os dias de hoje estas guerras imperialistas são apresentadas como movimentos civilizatórios de construção da democracia, de libertação das mulheres e de combate ao fundamentalismo e ao terrorismo imanente ao islamismo. Para que se possa ter uma visão de quão difundida está a caricatura monstruosa apontada acima, acredito que valha a pena assistir às preleções de Brigitte Gabriel, uma libanesa cristã maronita emigrada para os EUA que dá aulas sobre os fundamentos religiosos e a história do islamismo. Suas “aulas” só não são risíveis – tamanhos os absurdos proferidos por minuto – porque são perigosas: sua desqualificação do islamismo é tamanha que aqueles que a levam a sério sentem-se autorizados extirpar este mal da face da Terra pelo bem da humanidade. Não gratuitamente, fui apresentado à “professora” por uma amiga judia que tentava me explicar porque Israel era obrigado a fazer o que fazia: com “esse tipo de gente”, não há outro tratamento possível.

A tragédia de Gaza: os judeus estão diante de uma escolha de Sofia?

Do meu ponto de vista, a resposta a esta pergunta é: sim e não. Se reconhecemos que o comunalismo judaico é peculiar, assentando-se sobre o trauma das inúmeras perseguições sofridas e na percepção de que, a cada novo “pogrom”, os judeus só podem contar com eles mesmos, a questão de como se posicionar diante da tenebrosa ação militar de Israel em Gaza envolve, sim, uma escolha de Sofia. Reconhecer e denunciar a dimensão genocida das operações em curso resultará, inexoravelmente, em cancelamentos e críticas acerbas da grande maioria da comunidade judaica. Esta já é uma grande dor para qualquer pessoa. Mas é uma dor ainda maior para aqueles que construíram sua identidade a partir do peculiar sentimento de pertencimento que caracteriza o judaísmo.

De outro lado, negar as evidências, calar-se sobre a tragédia em curso, tentar caracterizar a ação militar de Israel na Faixa de Gaza como “normal e adequada” exige muito mais do que a flexibilização (e, no limite, o abandono) dos mais elementares princípios éticos e morais. Em um vídeo extremamente tocante em que relata sua experiência em Auschwitz, Hajo Meyer defende o ponto de vista de que aqueles que exercitam, aplaudem ou se calam diante de práticas de genocídio perderam qualquer capacidade de empatia, pois veem o outro como um “sub-humano”. O problema, diz Meyer, é que a desumanização do outro pressupõe a nossa própria desumanização. O que só é possível quando abrimos mão de toda a autonomia moral e nos submetemos à “lavagem cerebral” imposta por lideranças políticas que – como Hitler e Netanyahu – apresentam transtorno de personalidade antissocial. Não gratuitamente, Hajo Meyer dedicou os últimos anos de sua vida à defesa dos direitos humanos dos palestinos. E não gratuitamente veio a ser cancelado por muitos de seus pares.

Em suma: quando se olha para a tragédia humanitária em curso como mais um evento do traumático “eterno retorno judaico” em seus quatro tempos – dádiva divina; queda em pecado; punição e perseguição; arrependimento, perdão e redenção – não há como escapar da encruzilhada acima: calar-se com vistas a manter os vínculos com a comunidade ou vociferar contra os crimes em curso e sofrer com o cancelamento e a crítica dos pares.

Mesmo não sendo judeu, ouso pretender que a segunda opção – abraçada pelo Profeta Ezequiel às vésperas do cativeiro na Babilônia – seja a menos penosa: antes sofrer por isolamento do que sofrer pela culpa da omissão; antes ser incômodo do que autômato; antes perpetrar acordes dissonantes do que cantar loas à iniquidade.

Mas acredito que seja possível dar um passo ainda maior e mais ousado e escapar da ambivalência. Este passo não é simples, nem pequeno. Ele só pode ser dado quando se alcança superar o trauma real (baseado nas perseguições passadas) e a mitologia do trauma (consagrada pela Torá). É preciso entender que o atual conflito entre sionistas e palestinos NÃO tem qualquer relação com as perseguições de Adriano, Torquemada ou Hitler. Não se trata de intolerância religiosa ou etnicismo de palestinos, árabes e/ou muçulmanos. Como insistem em nos lembrar Ilan Pappe, Gideon Levy, Gabor Maté, Shlomo Sand, Masha Gessen, Judith Butler, Norman Finkelstein, Breno Altman e tantos outros intelectuais judeus mundo afora, se há intolerância religiosa, etnicismo, preconceito cultural e desumanização do outro no conflito entre palestinos e judeus sionistas ele tem origem nos judeus. E não nos palestinos. Com isso não queremos negar a aversão dos palestinos aos judeus. Evidentemente há reciprocidade. Mas com uma diferença crucial: a aversão dos palestinos não advém de qualquer pré-conceito; mas de conceito. Desde 1948 que os palestinos são tratados como cidadãos de segunda classe em Israel, na Cisjordânia e em Gaza. E este drama se agudizou nos últimos meses. Por quê?

A particularidade do momento em que vivemos sequer é de que a violência agora é maior do que jamais foi. Creio que isto também é verdade. Mas não ousaria asseverar: os massacres de Haifa e  de diversas aldeias palestinas em 1948 foram brutais. A diferença crucial encontra-se no fato de que os massacre atuais estão sendo filmados, reproduzidos na internet e observados pelo mundo todo. E o mundo todo volta-se, cada vez mais, contra Israel. E contra todos aqueles que aplaudem ou se omitem diante da tragédia.

Até mesmo os governos dos países aliados mais “fiéis” a Israel – EUA e Reino-Unido – começam a criticar a ações em curso, premidos pela opinião pública e pelas eleições de 2024. Isso significa dizer que, ou o governo de Israel cessa as agressões, ou o Estado de Israel corre o risco de ser cancelado do concerto das nações. Isto pode vir a acontecer? Sim. E esse nem é o problema maior. O problema maior é que Israel só irá cessar o morticínio se for pressionado pela comunidade judaica da diáspora. Qualquer omissão, nesse momento, pode ter resultados catastróficos. Se há algum risco da retomada do antijudaísmo mundo afora, este risco encontra-se aí: no silêncio e omissão daqueles que poderiam pôr fim à tragédia em curso. E aqui é importante entender uma peculiaridade da “mitologia cristã”: Caifás, o sumo-sacerdote do Templo em Jerusalém, solicitou a pena de morte para Jesus Cristo após este invadir ao Templo e expulsar todos os mercadores. Mas poucos cristãos lembram seu nome ou o acusam de qualquer crime. É Pilatos que recebe o opróbio geral. Pois poderia haver impedido a crucificação. Mas preferiu lavar as mãos.

*Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica e Professor do PPGDR-Faccat.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição do Oriente Mídia

Fonte: red.org.br

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