26/11/2020, Pepe Escobar, Asia Times
“Deste tudo que me lembro, lembro-me bem de que baixava entre terras de sede que das margens me vigiavam.” “O Rio”, João Cabral de Melo Neto*
A vida dele foi uma ópera pop contínua eterna. Da Somália a Bangladesh, não há quem não conheça os contornos básicos de sua história – o pibe de Villa Fiorito, bairro pobre de Buenos Aires (“Sou da favela”), que elevou o futebol ao status de pura arte.
Ser rei dos gramados é uma coisa. Jogar no cenário global, sem pausa, é coisa completamente diferente. As multidões instintivamente decifraram o que viram – como se o homem emitisse um zunido mágico numa frequência mais alta, acima do Império dos Sentidos.
Os italianos, que sabem bem de gênios estéticos, veriam nele um Caravaggio: entidade pagã selvagem, humana – demasiado humana – alojado entre o claro e o escuro, luzes e sombras, chegando sempre aos tons mais profundos, sempre e sempre, como foi virtualmente toda a vida que viveu em público: o balé inebriante de todos os demônios da alma em explosão, escândalos familiares, divórcios, rios de álcool, drogas, fugindo sempre de cobradores de impostos, himalaias de pó colombiano, mil vezes a um passo da morte e da perpétua alegria.
Personificou o entroncamento de Cumes Olímpicos com A Trágica Farsa – farra andante – e driblante – das mais selvagens contradições entre o bem e o mal. Foi como aquele rio de T.S. Eliot, “a strong brown god – sullen, untamed and intractable” [“um deus marrom forte – amuado, indomado e intratável”.
O falecido grande Eduardo Galeano pintou-o como divindade pagã, como qualquer de nós: “arrogante, mulherengo, fraco… Todos somos assim”. El Pibe foi o deus sujo consumado – “pecador, irresponsável, presunçoso, beberrão.” “De modo algum poderia voltar à multidão anônima de onde partiu”.
Hipnotizou o mundo com a camiseta azul celeste da seleção argentina, mas pode-se dizer que sua obra prima ele a encenou em tempo real no Napoli FC – quintessência do futebol da classe trabalhadora italiana. Instintivamente, mais uma vez, alinhou-se ao lado dos azarões, dos desprezados, o banquete dos mendigos, e, como David nascido justiceiro, massacrou os Golias do norte – Juventus, Milan, Inter.
Jamais deixou de se ver, ele mesmo, como criança do barrio. E assim forjou a própria política – o instinto sempre o fez apontar na direção da justiça. Sempre caminhou pelo lado progressista da história – tatuagem de Che no braço direito, tatuagem de Fidel na perna esquerda.
El Comandante Fidel foi como um pai substituto. (Outro sinal dos céus, ambos morreram na mesma data, com quatro anos de diferença.) Abraçou Hugo Chávez, Evo Morales e Lula. E declarou “Sou palestino”. Contra o império até o fim.
Por justiça poética, a Mão de Deus teve de aparecer, no mesmo jogo, entretecida com o gol mais espetacular da história. “De que planeta vieste?!” gritou o lendário narrador uruguaio, numa rádio argentina. O próprio deus sujo reconheceu adiante que foram dois cruzados no queixo dos britânicos, pelas ilhas Falklands/Malvinas.
Em “10.6 Seconds,” naquele fatídico 22/6/1986 no Estado Asteca no México, Hernan Casciari, escritor argentino empreendeu nada menos que uma atualização de “O Alef”, de Jorge Luis Borges, aquele Buda de terno cinza. A lenda afinal gravada em pedra – ecoa para a eternidade:
“O jogador sabe que dera 44 passos e 12 toques na bola, todos com o pé esquerdo. Sabe que a jogada durará 10,6 segundos. Até que acha que é mais que hora de dizer ao mundo quem ele é, foi e será até o fim dos tempos.
* Epígrafe acrescentada pelos tradutores.
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga